a T.S. Eliot

Algumas palavras choram, como nós. Meus olhos caminham pela vastidão do teu nome. Não há refúgios. A terra aberta em polpa, pisamos como grãos de macieira, tentando encontrar um colo, um lábio que nos fecunde. Queria nascer verso. Me fizeram poeta. Da pós-modernidade, pendurado em varais de corda, espero o sol, como um menino sonha com o brinquedo. Chego a consolar-me em Dostoiévski. Só existe uma pergunta em toda a filosofia: se Deus existe ou não. A terra devastada poderia ser apenas um poema. Faria mais sentido. O coração, como um deserto, cria um deus que não habita a poesia. Onde venta a verdade, os moinhos são imaginários.

 

 

 

 

 

 

sentidos

O tempo devora certezas. Perde a vida quem busca nela um sentido. O que a vida guarda é beleza. A palavra, há algum tempo, é quem me empresta a alma. Tenho um par de corações nos olhos. Sou feito do tecido das nuvens. Matéria que esconde em si a consistência das asas. Não padeço do condão da ruína. O homem que acumula destinos padece. Algumas coisas nasceram para crescer. Eu persigo a destecer a vida. A me amiudar. É a saudade quem nos atravessa sem olhar para trás. Não há nada que esteja à minha frente. Estendi-me até onde ninguém mais possa enxergar. A volta é a filha do amor, que há tempos busca um sentido para si.

 

 

 

 

 

 

a Charles Baudelaire

Marte é menos estranho do que minha pequena biblioteca. Embalo meus livros para que adormeçam e se revelem nos sonhos. A racionalidade como uma escala da fantasia. Minha psicóloga diz que os submarinos não morrem, apenas se escondem melhor. No fundo, mesmo na engenharia que me funda como poeta, somos o extremo do sonho, o concreto da utopia. (Ao final dos meus anos, espero sair com vida. Como uma caixa de música sobre o móvel, há tempos esquecida.) Os homens guardados em retratos me pedem conselhos. Observo quadros urbanos, como um flâneur parisiense. A mulher que passa como uma lanterna, na noite atormentada de sons e olhos mudos, rouba-me a única palavra possível.

 

 

 

 

 

 

escritura

Com a poesia, nunca teremos a certeza de voltar para casa ou, até mesmo, como se volta. Talvez, depois de um verso, fiquemos na rua, entre o sonho e a decepção, entre a espada e o medo, entre a morte ou um passo de dança. Quem toca um poema, quem pisa o fundo de si, afasta-se da palavra branca, mansa, infensa. O que a vida subtrai, a poesia oferta com sua feroz fatalidade de encontros, percalços, deformações, curvas. A linha reta é a menor distância para a morte. Viver é escrever, de trás para a frente, a lonjura dos instantes.

 

 

 

 

 

 

ranhuras

Esses gritos que martelam sobre o corpo, deformando a sombra do poeta, reinventam o contorno da condição humana. Longe da falência do pensar, o instrumento também se serve das mãos vazias para encontrar a sua música. O vazio é uma antítese do encontro com o nada. Veste-nos um verso, de alguma esperança, a camisa vazia da pele. Negar a dor é perder a vida. É fingir que não seremos esquecidos. Mas, quando há rastros de um poema, o tempo hesita em fazer da poesia um barco que ficou amarrado ao passado. Sem memória, as águas nunca saberão da travessia, mas do podre da madeira que, pouco a pouco, morrerá. (Uma ilusão colhida no tempo certo pode se revelar a mais lúcida verdade.) É para isso que eu escrevo: aos poucos, ranhurar na morte uma ilusão.

 

 

 

 

 

 

poema a dois

Tudo em mim é partida. O destino passa pelo que os olhos não alcançam. A vida parecerá ter algum sentido quando descobrirmos que a psicologia é um estudo dos corpos. O extremo dos corpos, que só a língua, em vertigem, pode alcançar. A palavra corpo cabe na minha boca. Mas me perco no deserto ao sul dos seus cabelos. Toda a sua angústia cabe no meu ouvido. Meu coração também tem útero. E guarda sua saliva, que fecunda este poema.

 

 

 

 

 

indizível

A luta corporal ensaia ao ardume do sol o teórico fracasso das sombras. Qual a função das mãos de um poeta na sociedade moderna? Vou cavando buracos onde

enterro palavras a golpes de ironia. Nem toda lucidez é vida. Nem todo assombro

é loucura. A melancolia é nome que se empresta a custo. Tenho vendido promessas

disfarçadas de sarcasmo. Sem ingenuidade não se chega a nada. A presença ainda é para mim um conceito vazio. Para crianças e poetas, a pedra nunca foi um objeto inanimado. Para crianças, o escuro é o começo do medo. Para poetas, a claridade

é o absurdo da ocultação.

 

 

 

 

 

 

sobre asas e estrelas

Nada é mais assombroso que o silêncio de um nome ainda vivo. A poesia é minha juventude morta de verdades. Psicologia da palavra como sentença de guerra. O ferimento mais vivo de todo coração inabitado. Logo, o olho é o espelho, e o espelho é a forma (o olho que nasce do abismo, e ao abismo tudo retorna). Tenho, na minha teoria dos horizontes, uma sentença universal: não é o real do voo que oferta ao pássaro a beleza do céu, é a decisão de ir ao encontro das asas. Pelo verso que visito ao fim das horas, fica-me cada vez mais claro que, dentro de todos os mundos, nenhum lugar é findo. Por isso caminho, porque busco, mesmo no abismo, a estrela que ainda vai nascer.

 

 

 

 

 

 

alucinação

O olho copia tudo o que vê. São mais felizes os que enxergam na ausência. A espera aguça a visão. Ver é tão sério como voar. Voar é o que mantém muitos pássaros (e poetas) vivos. Entre o fundo e as estrelas, há maçãs que comprovam a gravidade da lei. Não há espaço entre o passo e a fera. Sem olhos, a espera é fuga e escuridão. Olhar é como dominar o difícil ofício de domar cavalos. O ponto de vista da lógica é o chão. João escreveu poemas de pés no chão. O chão nunca curou sua vertigem.

 

 

 

 

 

 

ao silêncio

A poesia constrói labirintos possíveis, mas sempre labirintos. A verdade confina sonhos, adoece a parte limpa da vida. O fundo, antes sem fim, agora reflete a superfície morna das lentas feridas da realidade. A cura está no que não cicatriza. Permanece aquilo que se agarra nas veias e cresce para o lado de dentro — o que a sociedade cega pelo lado de fora. Antes da morte dos corpos, de carne e de vidro, cortar o pulso implacável do tempo, estancar as cordas do último poema e reconsiderar que a vida, sem poesia, me lembra Barthes: somos, todos os dias, atacados a golpes de pequenas solidões. Hoje, diante da lucidez amarga da angústia, o fluxo de pensamento não sabe o que os meus olhos gritam. Embora me doa, sempre mais, a boca cheia de silêncios.

 

 

 

 

 

 

flor impossível

É inverno para os olhos. Meu peito constela uma fome de sol. No cimo da noite, bebo a gota madura colhida de tua rosa escura, espada desfolhada em lâmina. Não há olhos para um pássaro que passa em silêncio. De tua taça escorre a branca blasfêmia, entre teus lábios, limpos como o linho. Golpeio o ar, flor impossível, entre a rama úmida, rasteira, quase pele. É inverno e perco os sonhos que me orbitam em desordem. Como o caos de uma garganta profunda, em que meu corpo atravessa, desritmado pela doença incurável de produzir assombro e êxtase. O mais natural dos bichos deitado sem campo, dentro do tempo que produz os nossos corpos. Hoje — não me interessam anjos e galáxias. Hoje — desprezo a tua alma. Hoje — é o teu corpo de poesia a boca que me escreve melhor.

 

 

 

 

 

 

ser só

A minha poesia nasce do que me emudece. E forjaram no homem a própria ferramenta de sangrar. O êxtase não está na presença de deus. Mas na clausura rompida, como uma cela aberta no peito. Nascemos em cárcere privado. Andamos, parimos e padecemos, como anjos soltos, entre grades e paredes, tingidas de carne, ossos e sangue. O suicídio mata sempre a pessoa errada. Amar é correr o risco de ser livre. E forjaram no poeta a triste liberdade de ser só. Não há retornos. Meu girassol canta todas as manhãs os galos mudos de João Cabral. A flor mais lúcida nasce na adversidade. Não plante espelhos para cultivar verdades. A palavra só existe onde o silêncio permite.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


João Augusto é poeta e jornalista (e não o inverso). Nasceu em 04 de julho de 1974 em Bebedouro/SP. Desde os sete anos, mora em Ribeirão Preto. Casado com a professora de Educação Física Elaine, seu primeiro e único amor, pai da Letícia e do Gabriel, suas maiores criações.