Zarabatanas

 

 

Ninguém esperava mais

por esses cabelos imensos

por esses olhos de fera

esse meu ar de arco e flecha

Zarabatanas eu faço

com mãos de índio bravo

ponho o curare na ponta

paraliso os ventos errados

e só atraio belos raios

 

 

 

 

 

 

O espantalho

 

 

Ao meu redor cresce verde a lavoura

e eu sou de seca palha

 

Ao meu redor homens se movem e trabalham

e eu resisto imóvel ao meu ofício triste

 

Estou cercado de arame por toda parte

por toda parte assusto pássaros que amo

 

Meus braços estão abertos para o espanto

não para o trabalho ou abraço

 

Meu corpo de palha seca

nunca sentiu a volúpia dos bichos

 

Vivo abismado e só

escancarado sob a luz dos astros

 

 

 

 

 

 

O chafariz

 

 

Parece que saí de algum sonho, de alguma caverna

de algum lugar inóspito e aquecido

Imobilizado feito os corpos de Pompeia

virei uma estátua de cinza

 

Sou uma miragem entre os edifícios

mas tenho a realidade dos fantasmas

a errância dos bardos

a necessidade dos mendigos

 

Minha imobilidade é um artifício

 

A todo tempo oscilo

entre a inércia do meu corpo

e a fluidez do rio que abrigo

 

 

 

 

 

 

Lira de Eurídice

 

 

Vem de dentro de mim

uma música

atravessando estradas, campos, lares

 

Quem pode cobrir de cinza

essa lira que arde?

 

Vem de dentro de mim

uma música

esbarrando em pedras

soterrando portas

destravando cidades

 

Dentro de mim

uma música

acesa

invade mares, rios, vales

 

Quem lhe ousa dar margens?

 

 

 

 

 

 

Homero

 

 

Era missão tua salvar

guerreiros do esquecimento

e depois palavras do abandono

Cantar amores e mortes

com esplendor e encanto

 

Trouxeste-nos  auroras e deuses

sangue e pranto

 

E era missão tua

abrandar nossas mágoas

com teus cantos

 

 

 

 

 

 

Penas de uma casa em cinzas

 

 

                   "Traga-me um copo d'água, tenho sede".

Gilberto Gil

 

 

É óbvio que anoiteceu

está registrado em fotos

em minas, em mapas

Não posso trazer de volta o passado

imitando a voz dos mortos

Não posso devolver sua mãe,

sua filha, sua falta

O que há por dentro são gambiarras

madeiras úmidas, telhas e vidraças quebradas

A vida gotejando no balde

e a caixa de amianto vazia

de onde espero toda água possível

para o chão limpo e claro que preciso

 

 

 

 

 

 

O carteiro e a poeta

 

 

Não quero deixar de conhecer

Pasárgada, Shangri-lá e Atlântida

ainda bem que daqui de casa

posso ir até lá com asas

ou a nado

vou pela rota contrária

oceano pacífico e feroz

ouço todo dia sua voz

antiga e total

nem preciso de satélite

lá mesmo não preciso chegar

e são tantas cartas, contas, telegramas

há mil anos e séculos

e esperei tanto, tanto, tanto

aqui nesse Rio de Janeiro

que acabei me apaixonando pelo carteiro

 

 

 

 

 

 

Um pomar no escuro

 

 

Marimbondos estalando pelo corpo

cacos de vidro verde sobre o muro

mínimos guardiões desse desejo

de furtar teus frutos

e desabotoar essas paredes,

calhas, luzes, rochedos

que dividem e separam

minhas chamas das tuas

 

 

 

 

 

 

Imigrantes

 

 

No hemisfério norte

era novembro ainda e ela  disse que ia embora.

Voltaria ao seu país, à sua terra, aos seus navios e barcos

Como quem não quer nada ele perguntou:

Por que não aguarda o  verão?

Ela aguardou:

semanas, meses. anos

Até hoje não decidiram quando é exatamente o verão

nem primavera nem inverno nem outono

nem sul nem norte

nem se existe realmente um país para onde voltar

Desnorteada e sem geografia

respirou

cedeu ao jogo do amigo

toques, massagens, abraços

e tombou inteira em suas mãos

 

 

 

 

 

 

Poema líquido

 

 

beijo com cajuína tão bom quanto café

longe dos palcos e das máscaras

da ostentação das luzes fotográficas

beijo secreto entre as paredes do banheiro

água de chuveiro

fluida, leve, fugaz, sem vínculo, passageira

ninfa

misteriosa e escondida sob longos cabelos

aquáticos e lunáticos

corpo de índia descalça

correndo e nadando pelo mato e pelos rios,

mulher preciosa e calada

muito, muito rara essa minha nova amada

 

 

 

 

 

 

 

Resgate

 

 

como queria sequestrar você

cativeiro silencioso dentro dessa cidade, sem luxo,

sem imóveis, pensões, hotéis

sem sauna nem piscina,

nem bancos, nem contas, nem afazeres domésticos

sequestrar para dentro de mim

para dentro dos meus versos

onde posso te esconder

anônimo amor cego

segredo velado por meu zelo

guardar-te de tal jeito na bagunça da gaveta

que ninguém poderá ver

como queria sequestrar você

para o caos dos meus cabelos

todos os meus cheiros

para o furor do meu excesso de pelos:

buço, busto, axilas, pernas, novelos

 

 

 

 

 

The old and the sea

 

 

Aos poucos foi chegando

deixando a escova de dentes

esquecendo o colar naquele

lugar ermo em frente ao mar

 

Como um gato recém admitido na casa

perambulou por ali, pelos antigos móveis

saltando em cima da mesa, pela máquina de escrever

cheirando a comida feita com tanto gosto

pelo caçador

 

e foi experimentando seus voos

seu jeito de imperador

sua calma, a maturidade da idade e das perdas

 

chegou com muito jeito, nada feriu,

nada esmurrou

suavemente caiu nesses braços abertos

de homem aviador

que lhe deu alturas nunca antes vistas

homem-peixe

que lhe trouxe profundidades

nunca mais escavadas

 

e mergulhou em seus vinhos, seu rum de pirata,

sua barba branca, suas facas e navalhas

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Iracema Macedo nasceu em Natal/RN. É professora de Filosofia no Instituto Federal Fluminense. Publicou quatro livros de poemas: Lance de dardos (2000), Invenção de Eurídice (2004), Poemas inéditos e outros escolhidos (2010) e Cidade Submersa (2016). Também publicou sua tese de doutorado: Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos (2006).