Fora de Forma

 

 

Amanhecia quando os últimos precipitaram-se pela escada. Seria natural supor que logo depois fizesse o mesmo. Ao longo de todos aqueles anos poucas vezes se ausentou, e sempre que isso ocorreu tinha uma boa justificativa. Nunca havia sido punido. Demorou-se ali porque gostava de ficar só antes de vestir a farda e entregar-se àqueles oito lances de escada que unem o alojamento e o pátio interno do quartel, onde se perfilaria ao lado dos demais cadetes para formatura matinal. Restavam pouco menos de cinco minutos, e não demonstrava inquietar-se com as consequências de um iminente atraso. O toque do corneteiro advertia; no entanto, portava-se como se não lhe dissesse respeito, permanecendo ensimesmado diante da janela do banheiro a observar o mar. "É tão vasto que parece revelar algo maior que ele próprio", murmurou, não sem alguma excitação, ao notar em suas águas o reflexo do sol que se erguia no horizonte. Chegava-lhe ainda, embora cada vez mais distante, o ruído surdo e cadenciado da batida dos coturnos de seus colegas no chão duro do pátio interno. "Estão entrando em forma. O chefe de turma terminou a contagem e deve estar comunicando minha falta ao tenente". Sabia que caso se ausentasse, sem apresentar uma justificativa convincente, seria severamente punido. Ainda assim, não a tinha. Só a apresentará anos mais tarde. Até lá, seu comportamento será visto como uma estúpida afronta, como se motivado por uma rebeldia efêmera e infantil. Não era o que se passava. Era algo mais profundo e, por isso mesmo, difícil de alcançar e debelar. Tudo lhe sobrevinha com a intransigência própria do irremediável. Sua existência deixava de seguir como um toco em enchente para fixar-se num ponto distinto e imprevisto, à margem de tudo o que até então havia reconhecido como vida. A correnteza seguia, mas não ele. De onde se isolou, não sem um misto de melancolia e orgulho, contemplava a corrente pela qual seus colegas se deixavam levar. Houve quem, ao passar por ele, censurasse-lhe, amigavelmente, a demora, prevenindo-o de que seria punido e que o mais sensato seria entrar em forma imediatamente. Não lhes deu atenção. Não poderia. Não com aquele horizonte emergindo diante de si, sobre si, em si. Sentia-se envolvido, dominado por algo maior que ele próprio. Em sua solidão pressentia uma transformação indefinivelmente intensa a desvelar-se em seu destino. Aconteceu-lhe, ao contemplar o mar, o que anos depois nomearia "sentir-se ser", uma irresistível e perturbadora maneira de ver a si mesmo tomando parte no mundo e, ao mesmo tempo, ausente dele; a sensação de estar a se desviar e a se perder para vivenciar as angústias e alegrias inerentes a um tortuoso processo de redescobrir-se. Tudo ressurgia sob uma perspectiva nova. Minutos antes, parecia-lhe evidente pensar que, naquele instante, era ele, e não seus colegas, quem estava a fazer nada, apático. Ao acontecer-lhe de "sentir-se ser", principiou a lançar um olhar singular sobre os acontecimentos, não raro interpretando-os como que pelo avesso: "são eles, e não eu, que permanecem passivos". Não fazer nada passou a significar, dali em diante, uniformizar-se, conservando sua vida no fluxo a que parecia estar destinada.

 

 

 

 

Estrela Cadente

 

 

Anoitecia. Ao chegar do trabalho, refugiou-se no quarto. Não acendeu a luz. Não poderia. Vestindo um tailleur azul-marinho, espontaneamente desapareceu na escuridão, aliviada. Era como se não mais existisse. Na verdade jamais teria pensado assim, pois sempre lhe foi natural existir. Entretanto, se existia, era de maneira diluída, anulada entre os demais funcionários na repartição, em meio aos transeuntes na rua ou mesmo no apartamento que dividia com duas colegas. Opiniões corriqueiras e condescendentes, pensamentos e experiências ordinários eram tudo o que possuía e igualmente possuíam-na. Nisso consistia a estreita superfície sobre a qual sua existência ia se equilibrando. Martirizada por uma terrível enxaqueca, tateou os bolsos à procura de suas pílulas. Tomou duas quando uma bastaria. Talvez buscasse com isso aplacar também os apelos de sua vida íntima. Lançavam-na num doloroso conflito: sentia necessidade de viver o que espontaneamente brotava de si mesma, individualizar-se, mas pressentia que ultrapassar os limites daquele ambiente em que se habituou a viver era-lhe o maior dos riscos. Temia desequilibrar-se. Ligou o rádio e deitou-se à espera de algo que viesse a distraí-la enquanto as pílulas não surtissem efeito. Em vão. Revivia suas lembranças de juventude, época em que sonhou mudar o mundo, e frustrou-se ao constatar que ele é o que é e não o que ela pensava que deveria ser. Anos depois se imaginou escritora, casada e com filhos, mas para tudo lhe faltou encontrar seu jeito de se entregar. "Se tivesse dinheiro, deixaria esse emprego...", "Se pudesse ser outra, talvez...", devaneava. No fundo, tanto "se" outra coisa não refletia senão seu desejo de seguir vivendo à deriva das circunstâncias, dissipando-se interiormente. Outra pílula. Estava prestes a dormir, quando lhe adveio o receio de tornar a sonhar e, ao acordar, ver que tudo continuaria como até então. Exausta, percebia que logo não mais aguentaria esperar que o acaso a levasse a uma decisão da qual ela própria se defendia. Essa espera desesperava-a, sufocava-a. Essa espera era sua vida. Levantou-se da cama e caminhou até a janela. Acendeu um cigarro e se pôs a olhar a rua. Por um momento, uma suave brisa acariciou-lhe o rosto. Contemplando o céu, notou uma estrela cadente. Seus olhos se encheram de lágrimas quando lembrou que na infância se encantava ao avistá-las e, confiante nas palavras da mãe, sempre fazia um pedido. Nenhum se tornou realidade. "Por quê?", questionou-se num lampejo de raiva, que nunca antes se atreveu a manifestar, e baixou os olhos, resignada. Durante alguns minutos, permaneceu assim, em silêncio, apenas observando a movimentação dos pedestres e dos automóveis. "Dia após dia, vão e vêm iludidos pela ideia de que a realização de seus sonhos depende apenas de suas próprias vontades; no entanto, quantas vezes contrariam-nas coagidos pelas circunstâncias?" falava para si própria, quando, num inusitado afluxo de forças, pela primeira vez sentiu-se encorajada a entregar-se plenamente; e, sem medo de se machucar, talvez por acreditar que tudo continuaria como sempre fora, desapareceu na negrura do asfalto e da multidão que por ali passava.

 

 

 

 

A Falha

 

 

Arranhões não seriam suficientes. Somente uma falha profunda teria possibilitado que o conteúdo começasse a se tornar manifesto. Manifesto, passou a existir. Poderia continuar a não existir, e para isso bastaria que o recipiente que o continha não falhasse. No entanto, falhou. Dentre as inúmeras amostras daquele lote, não soube de outra que não correspondesse às expectativas. Foi a única que não pôde conter o que continha e, por isso mesmo, falhou. Tudo ocorreu por acaso. Por acaso falhara, por acaso passou a existir. Acaso e fatalidade. Tivesse não falhado tudo seguiria conforme: seria aprovado como os demais de seu lote. Não sofreria com constantes rupturas, nem teria sido desencadeado algo de irremediável: a dúvida sobre o próprio destino. Quando ainda não havia falhado, de acordo com a inscrição no rótulo e com o formato do recipiente que o continha, definia-se, reconhecia-se, sabia o quê era e para o quê servia; sabiam, também, os outros quem ele era e para o quê servia. Era um deles. Não se distinguiam. Como eles, fora-lhe dada uma utilidade, e também como eles isso lhe bastava para viver. Vivia em conformidade, conformado. Não atinava para o que realmente havia em seu interior, pois nunca lhe sucedera de pensar em nada além do necessário para viver — só são felizes as pessoas cujo pensamento não vai além desse necessário. Após ter falhado, passou a ser atormentado pelo desejo de ir mais além: busca encontrar por si próprio uma interpretação para o que se passa consigo. Se não houvesse falhado talvez jamais viesse a sentir necessidade de desvelar-se; não haveria a ruptura, e, não havendo, não estaria estabelecida a diferença, para além das aparências, entre ele e os outros. Apenas são felizes as pessoas que não sofreram semelhantes falhas, mas estas pessoas não existem — são impessoais. Ele falhou, e por ter falhado sabe que existe.

 

 

 

[imagens ©wayne bertola]
 
 
 
Heberti Rodrigo (Rio de Janeiro/RJ, 1976). Iniciou sua vida literária há cerca de 10 anos, pouco depois de haver sido desligado do Instituto Militar de Engenharia (IME), onde seguia carreira de engenheiro mecânico. Desde então, vive sua literatura, composta essencialmente por textos curtos e intensos. Autodidata, dedica seus dias, na cidade de Petrópolis/RJ, à sua escrita, ao blogue literário O Equilibrista e a cuidar do Theo, seu filho.