SEBO DERRETIDO

 

 

Joaquim rejeitou, ao voltar para o apartamento, o beijo de Antônia. Joaninha brincava com bonecas, bichos de pelúcia molhados, um tubo de cola, tocos de lápis de cor e um estojo de madeira. Quando Joaquim chegou a televisão estava sintonizada em um programa de receitas culinárias. Logo depois a televisão foi desligada por Joaninha porque brincar ouvindo só a voz da gente era muito mais legal. Levou tudo o que conseguiu carregar para a única cama do quarto-e-sala.

O calor impregnava as manchas de sujeira nas paredes, tão quentes estavam que se poderia machucar se alguém encostasse em uma delas. Joaquim desistiu de ligar o ventilador, pois se esqueceu de retirar a poeira do aparelho, antes de sair. Teias pegajosas, semelhantes a flocos de algodão verde-sujo, colonizavam as hélices e o aro. Ele iria limpar o ventilador, claro que iria, se alguém o tivesse avisado...

Mais uma vez Joaquim conseguiu salvar seus autores prediletos, apesar de ter sacrificado outros pelos quais tinha uma mínima simpatia junto com aqueles que não concederia mais a oportunidade da leitura. A cada nova saída ficava cada vez mais difícil fazer escolhas. Antes de entrar no sebo, deu voltas pela avenida para que alguma ideia repentina o salvasse. Não se pode ter ideias salvadoras debaixo de um sol daqueles, se ao menos estivesse um pouco mais frio. Joaquim pensava que o frio ajudava a fermentar o cérebro de boas ideias.

Foi tão pouco o que recebeu. No dia seguinte, Antônia pagaria a conta de luz e o condomínio, restando a ele apenas uma nota de dez. Ainda havia comida para mais uma semana, dava para segurar. Dois meses antes, ele gastou aquele mesmo montante no mesmo sebo, onde adquiriu três volumes de uma coletânea de contos russos editadas nos anos 1960, em tradução indireta. Mas fingindo não o reconhecer, desta vez, o dono do sebo retirava apressado os quarenta livros da sacola de Joaquim e os examinava, sobre o balcão, com óculos de lentes manchadas por impressões digitais.

— Vai trocar ou apenas vender?

— Apenas vender.

Esguia e na ponta dos pés, Joaninha entrou na cozinha. Estava só de calcinha, a camisa e a calça da escola amontoadas sobre o chão do corredor.

— Já disse, eu não quero você aí, saia da cozinha – disse Joaquim.

Depois do primeiro gole, a menina respondeu:

— Só tou bebendo água... Não posso?

— Não interessa, peça a mim... Não me responda! Cinco anos e já está de ousadia.

Joaninha fez um muxoxo e correu de volta para o quarto. Joaquim a seguiu até a porta:

— Que muxoxo é esse... que porcaria é essa aí?

— Nada. Tou brincando — respondeu Joaninha fechando rapidamente a porta na cara dele. Tinha retirado todo o jogo de cama, Joaquim percebeu.

Deixe ela na dela, disse Antônia, saindo da área de serviço. Julgando ouvir um murmúrio vindo do quarto, um "chato" talvez, Joaquim retornou para a poltrona cujos pedaços de couro ficavam grudados na roupa. Na cozinha, Antônia colocou água e pó para esquentar na cafeteira italiana. Seria o quinto café do dia.

Essa mulher só cheira a café. Requentado.

Joaquim encontrava-se em estado irritadiço desde a última madrugada quando flagrou uma barata que saltava do lixo da cozinha, enquanto, sob a pressão do susto, o leite escorria pelas narinas dele. Correu histérico para junto de Antônia. A barata escapuliu. Antônia insistiu para que ele se acalmasse, os vizinhos iriam reclamar daquela presepada, afinal era só uma, o que é que tem, era só uma. Só uma? Até aquele momento, o apartamento era uma morada agradável para Joaquim: pequeno mas não claustrofóbico, a menos de cem passos do metrô e de um mercadinho; acolhedor com suas janelas de madeira e pisos de taco, quase imune a ruídos exteriores, e tinha ainda a vista para casinhas de telhados marrons da arborizada rua vizinha. Ele até perdoava a ausência de outro quarto onde pudesse alojar Joaninha (a filha se recusava a dormir no sofá-cama da sala e intrometia entre eles toda a noite). Aquela presença imprevista na cozinha fez com que ele passasse a perceber cada filigrana de sujeira, manchas e trilhas de poeira e de limo em todo canto, e estas descobertas o exasperavam. Você está vendo o que acontece quando se deixa os pratos sujos na pia? Para manhã, sempre para amanhã! Por que você não joga o lixo fora? Dormir era impossível, os resmungos impulsionavam os pensamentos, sempre estacionados em uma passagem da infância: a mãe munida de uma chinela diante de cinco baratas que formavam um pentágono torto na parede da cozinha atrás da geladeira. E então surgia uma lagartixa albina e mãe dispensava a chinela. E croc, croc, croc, a lagartixa mastigava uma das baratas. E depois outra, e mais uma croc croc croc, e outra e uma escapava. Somente uma escapava.

Pela manhã, Joaninha perguntou a Antônia por que papai estava gritando daquele jeito, e a mãe respondeu dizendo que os pais também tinham pesadelos, às vezes acontece, seu pai também é meio chatinho, você sabe. Joaninha concordou, papai é mesmo muito esquisito.

Joaquim estava todo orgulhoso: tinha lido cinco livros, naquela mesma semana, um recorde: os três volumes das narrativas russas, um livro de introdução à filosofia, cujo conteúdo ele pouco apreendeu, e uma coletânea de citações. O orgulho desmoronou em pouco tempo após atingir o ápice. Soube da negativa do empréstimo bancário, recebeu as admoestações de Antônia, suplicou sem sucesso aos amigos, sentou-se no chão e começou a escolher os livros que iriam embora e antes do "apenas vender" surgiu a barata e... daqui a pouco teria que sair à procura de emprego, e se não arranjasse teria que voltar para a outra cidade, onde inexiste livraria, nem sebo, nem uma papelaria sequer. Aquela cidade que não era cidade. Cidade sem livros.

Quando a decisão de ter largado o emprego parecia acertada, Joaquim, de posse de uma lista de cem livros, foi ao maior sebo desta cidade que era realmente a cidade dele, finalmente ele tinha uma cidade. Só estava começando. Estavam acessíveis os livros, e Joaquim encarava sem baixar a cabeça os atendentes descolados das livrarias e os entediados dos sebos. Das lombadas ele formava frases, frases sem sentido algum e que só pertenciam a ele, e eram tão bonitas as capas dos livros que ele comprava; tinha vontade de lambê-las. Ler o afastava cada vez mais da família, dos tabefes paternos, das reclamações da mãe sobre sua capacidade de fazer trapalhadas, e da grosseria de primos e amigos de rua.

E voltaria para lá para ouvir as mesmas frases. Frases que não mudam. Frases que mais pareciam sucessivos grunhidos. Grunhidos que eram ameaças e zombarias ao mesmo tempo.

O problema sempre residiu nos números: esquivos, trapaceiros, adversários. Um erro de cálculo e ele se via obrigado a se desfazer de tudo o que mais amava.

Como você gastou aquele dinheiro todo tão rápido? A pergunta repentina, brincalhona e repetitiva da mulher, de passagem pela sala, em busca de uma vassoura, antes de voltar para a área de serviço, escondia debilmente a nota de censura. Joaquim fingia não ouvir, um livro em mão, como das outras vezes, refugiava-se na poltrona. Antônia não entendia como a queda veio tão rápido, como apenas um ato de distração nos negócios resultou em ruína imediata. Ele nunca foi esperto. Antônia já estava na área de serviço, em seu único dia de folga tinha que dar conta sozinha da limpeza, da comida, de Joaninha, de tudo, enquanto o príncipe ficava com as pernas para cima, tirando onda de intelectual, de sabido, e poderia ao menos lavar as próprias cuecas. Antes parecia tão fácil, e Antônia realmente acreditou que a melhor coisa a fazer era suspender a busca por seus próprios objetivos, ceder a oportunidade a ele, mais uma vez... Assim o coitado pararia de choramingar e agiria enfim, depois seria a vez dela, seria até mais fácil, um levantando o outro. Escolhendo para lavar as roupas brancas, todas com o mesmo tom encardido, o humor de Antônia melhorou por um instante, quando passou pela mente a imagem dele chegando, nos dias dos primeiros acertos, e dizendo-lhe brincando, e você desconfiava, né Antônia, eu não disse que era certo, eu não te disse... e depois... a felicidade minguou, morreu, aquele momento era uma miragem, e se ela tivesse mesmo desconfiado, desconfiado de verdade, talvez não caísse naquele esparro. Antônia ficou ainda mais distante do que sonhava e ele poderia ao menos lavar as próprias cuecas.

Antônia não iria desistir, não tem jeito, aquela conversa vai ter que acontecer. Ele vai ter que aceitar, ou, talvez, nem ligue. Não sei se ele ainda se importa.

Joaninha continuava a brincar no quarto, vez ou outra, rompia o silêncio e parecia emitir ordens, com sua voz rouca, a uma de suas bonecas ou um dos bichos de pelúcia. Da sala, Joaquim tentou adivinhar o que filha dizia, mas não conseguiria sem voltar ao quarto. Foi escutar encostado à porta entreaberta. Apenas discernia pedaços de frase, na verdade uma exortação, vai menina, vai, você consegue, vai menina, vai menina. Joaquim desistiu de tentar compreender o resto e voltou-se para o livro e, antes que percebesse, antes que voltasse à poltrona tão querida, a escuridão e a névoa já povoavam a sua mente, uma nova onda de irritabilidade tomou conta de Joaquim. Via sua estupidez personificada nos buracos da estante, a ausência dos livros que jamais leria. As letras das lombadas sobreviventes formavam as mesmas frases de pilhéria que ele aguentava, triste e calado, quando era criança. Aquela humilhação tão conhecida ressurgia, um espelho a revelar qual tipo de homem ele era. Arremessou o livro contra a estante, entrou no quarto e arrancou o estojo de Joaninha.

— Que porcaria é esta aqui?

— Me dê! É meu! É meu!

— Que merda você anda fazendo?

— Mamãe!

Joaquim abriu o estojo e foi com horror que descobriu que uma barata nadava em um pote de doce de leite, cheio de cola branca. A barata procurava escapar do afogamento, debatendo-se em um toco de lápis, tentando agarrá-lo como se fosse uma tora na luta contra a correnteza do rio. Ele olhou para as bonecas e bichos de pelúcia e distinguiu no olhar de cada um o escárnio tão conhecido.

Sua porca! Uma tapa acertou a cabeça da filha. Mamãe! Mamãe! Mesmo se contorcendo, Joaninha conseguiu se esquivar do segundo golpe. Joaquim arremessou o estojo, que explodiu contra a parede. Me ajuda, mamãe!. Rastejando entre os destroços de madeira, sob o peso da cola que a tornava albina, a barata engatinhava pelo corredor em direção ao ralo do banheiro, acelerou para evitar ser esmagada por Joaquim e despareceu. Joaquim correu atrás de Joaninha, que dava pulos de gato em direção à cozinha. Em sua fuga, a menina bateu de quina no fogão e a cafeteira emborcou derramando-lhe o café, que desceu feito lava sobre o pequeno peito. Minha filha! gritou Antônia, da área de serviço. Joaninha debatia-se afônica no chão, enquanto Joaquim mantinha-se paralisado junto à porta da cozinha.

As queimaduras devastaram principalmente a parte do corpo onde os seios deflorariam deformados. Uma cirurgia de enxertos de pele estava marcada para o dia seguinte. Não havia certeza se todo tratamento seria custeado pelo sistema público, havia toda aquela burocracia, e não havia mais plano de saúde, quando deixaram de ter não havia jeito de lembrar. A fisioterapia será dolorosa e senhores vão ter que ser pacientes, ela é só uma criança. Joaquim deixou atordoado a saleta da assistente social em direção ao setor de queimados do hospital. Antônia evitou encará-lo e se entrincheirou na cadeira colocada ao lado esquerdo do leito da filha. Joaninha estava toda enfaixada e fez aquele bico tão dela, tão lindo e tão doce quando Joaquim lhe apertou dois dedos da mão direita. Joaquim esforçou-se, queria mesmo que o choro viesse.

Só conseguia pensar em quantos e quais livros seriam vendidos na próxima vez.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Flávio VM Costa (Salvador,1983). Escreveu Caçada Russa & Outros Relatos (Penalux, 2016). Com o conto "Tenente Marcus", foi um dos vencedores do Prada Feltrinelli Prize 2016. Mora em São Paulo.