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era 1997

uma enchente nos escorreu

pelos dedos entrelaçados

da lama daquele ano

daquele ano do silêncio

dos vidros em estilhaços e das manhãs

as manhãs de 97

se você ainda pudesse ouvir

o que gritam aquelas manhãs

a água subia as escadas

nós em ciranda

dedos entrelaçados escravos de jó

em 1997

a água avançava

mas o nosso silêncio

ensurdecedor

o nosso silêncio era maior

que a água que 97

você com os dedos

ora frouxos, ora presos

e eu com minhas unhas curtas

a querer fincar na pele

o que você não sente o que

não te bate

com a água no joelho

nossos pés dançaram submersos

acima da escada brincamos de deuses

eu Iemanjá, ainda sem saber

era 1997 não 79

quando você ainda não poderia saber

que triste deus seria

das enchentes e dos silêncios

dos estilhaços e das lamas

daquilo tudo que a água leva

em seu balanço

que vai e vem

sobe escadas lava tudo

lava um ano

sem nada conservar

 

eu não te encontrei no mar

você é da casa

e eu te deixei lá

 

você se lembra?

 

 

 

 

 

 

_

 

 

são as coisas em cima da mesa que

não conversam

o cd do seu pai, já sem encarte

a conta de água gotejando

atrasada

o vazo vazio onde nem as flores

puderam murchar

e as chaves

as chaves espalhadas em cima da mesa

as chaves que abrem portas alheias

não conversam

e aquilo que as une, você sabe

é apenas um aro de metal, você sabe

se não fosse o aro o metal

talvez estivessem perdidas em gavetas

alheias à mesa com coisas

coisas que não conversam

 

às dez da manhã de amanhã

você ainda não sabe

mas não fará sentido

o pão dormido e as torradas

o jornal e o escárnio

do jornal e o nosso, não fará sentido

como coisas em cima da mesa

ficaremos até o meio dia

administrando nossos dedos

células mortas mastigam mudas

as palavras que não fazem sentido

em um dia azul como as crianças

e os parques de diversão

 

nas férias vamos para a praia

onde o azul irá ferir nossos olhos

ao falarmos

das coisas do mar

daquele barulho da concha

que também é azul

naquele verão, que ainda não chegou

tudo era azul, e mesmo assim

nossos olhos pegaram fogo

e se eu parecer vermelha

(ou verde, amarela, florescente)

eu terei que dizer:

seus olhos funcionam mal

como uma máquina antiga

que não funciona mas que

guardamos

como a prova de que fomos ets

habitamos um mundo

que não cabe mais no presente

mas que nos grita querer existir

como se a ferrugem

da máquina, de você

denunciasse a condição:

extraterrestres são verdes

mas eu sou azul enferrujada mas azul

porque do quarto de despejo

onde as coisas conversam

sobre o futuro em esquecimento

sem saber já ser agora

sou máquina

sem manejo manual de instruções

sou máquina

 

e daqui, desse canto da casa

(você precisaria saber mas está

atrasado)

a porta aberta não me diz nada

só de dentro conservamos

o azul da casa das coisas

da máquina

só de dentro se pode ver

a cor do dia de amanhã

 

 

 

 

 

 

_

 

 

aprendemos da pedra e do feijão

do tempo e da espera e

de quando em quando

a tempestade encruzilhada

o corpo estilhaçado e a dúvida

porque o que ensina destrói

constrói sobre destroços e reconstrói

com corpos despedaçados, aparentemente

despedaçados

 

quantos livros de poesia você já leu?

quantos poetas você chama de preferido?

eu vi uma redoma cercada de espinho

não havia pedras e o feijão era duro

e minha mãe é da cidade você não sabe

eu nem me lembro das canções de ninar

mas

quantos cantos ancestrais você já ouviu?

quantas vezes seu corpo vibrou e você soube

a corda da cítara não pode estar muito esticada

nem solta demais

é uma matemática ancestral que nos diz

dos cantos, da casa, dos cantos da casa

do feijão e do corpo quando se cata

pelo chão memória dos que pisaram

em um dia atrasado para o serviço público

mas

 

quando você disse ser poeta?

foi do feijão da barriga da mãe do batuque no quintal?

e eu não entro na redoma que pode ser apenas

um jardim sensorial, sentidos

dispersos corpos estilhaçados

mas quando o vento passa carrega

eu tenho memórias que me ensinam

porque elas não são palavras

porque elas caminham

pela minha mãe e sua vida urbana

pelas pedras portuguesas em terras

brasileiras

pelo feijão que fica não é de exportação

 

foi dela que aprendi e ela não dá respostas

como a palavra que não ensina

mas destrói e com os destroços

respondo,

dia a dia

não saber do vento

mas ele passa buracos abertos

marca o corpo que aprende

e reaprende

quando você disse não saber das coisas?

eu não sei e por isso não tenho medo

o prédio desabado não tem porque temer

a tempestade de amanhã

 

 

 

 

 

 

_

 

 

eu queria te contar

daquele tempo de baú

escondido nos afetos

que não se pode abrir

o que não se sabe

com cheiro de manga e gengibre

mas não havia gengibre

era só a manga e a chuva e o sol

no quintal o varal estendido e as roupas

desbotadas do uso

a mancha da manga

(e mancha?)

que não me deixa esquecer

os pés descalços o short curto

os fios de cabelo

e da fruta

que caía

do pé

para nossa cabeça

nossas mãos gosmentas

nossas bocas laranjas em um dia azul

e o halo de gengibre

que não havia

mas poderia ter sido

(como crescem eles?)

a manga vem da mangueira

que toma o espaço e o tempo

domina tudo e o pueril

os pés descalços nucas suadas

já se perdem na memória

o cheiro ainda está lá

a mangueira também

só nós rotas

de pés calçados e calças jeans

vamos ao supermercado

onde há gengibre

mas as mangas

elas vêm em caixas

não são baús

estão abertas e sem cheiro

e você não lembra

porque o que te comia

foi devorado pelo tempo

 

 

 

 

 

 

_

 

 

em paris tem umas feiras que vendem

de tudo um pouco

xícaras com asas quebradas

garfos sem dentes

e sapatos sem par

acho que os turistas gostam porque é

francês e isso já parece bastar

aos turistas que vão às feiras

as feiras que vendem de tudo em paris

e vendem fotos

fotos de pessoas que não conhecemos

e nem vamos fotos de

lugares que podem ser

na frança ou no brasil

ou em moçambique ou em angola

sim eu gostaria que fosse lusófono

essas fotos desses lugares

podem ter pessoas, como quatro

moças sentadas em um jardim em preto

e branco

ou essas fotos podem só ter lugares

como um santuário, agora apenas aberto

para visitação

um quarto com uma cama de solteiro

uma cadeira marrom de madeira em branco

e preto

poderia ser o quarto do van gogh

mas aí a foto da feira

valeria milhões, então ela é apenas

uma foto de um quarto com uma cadeira

onde você poderia estar no tempo em que

as fotos em preto e branco eram apenas

fotos

e você poderia odiar aquele lugar

e eu espero que você seja lusófono

para poder sentir saudades de um outro lugar

que você viu em um quadro, ou mesmo em uma

foto na casa de um amigo

casa não fotografada esquecida

e então se um dia eu for à frança

e for a uma feira em paris

dessas que vendem de tudo e então

a gente poderia se encontrar e torcer

eu não falo francês.

 

 

 

 

 

 

_

 

 

estamos ambas

suspensas em madeirites

deitadas por entre fios

abertas como aquela porta

caladas olhamos uma

e outra vez

olhamos uma a uma

as sardas que apanhamos

no último verão quando

você me contava

do rio nos anos 70

dos chopps à revelia

dos tempos das mudanças

em taxis e como

tudo estava imóvel para ambas

quando eu não era

e você podia ser

agora já não somos

intactas

no nosso emaranhado

agora seguimos

não olhamos para o lado

a vertigem exaspera o dia

e ficamos

uma e outra com a

certeza da casa no barranco

em um dia de chuva

 

 

 

 

 

 

_

 

 

não há um rosto um retrato

não há por quem chorar

os peixes comemoram

audaciosos

abraçam os camarões em

pecado só resta a panela

agora vazia

com sobras de temperos

com bordas de gordura

salgadas como o mar

onde o peixe foi rei

o camarão maestro

onde não se fala em poema

para quem não tem rosto

são apenas mãos

talvez calejadas talvez com rugas

de um sol que não morre

e por isso não chora

nem se regozija contra os peixes

que vêm do mar

e não voltam

ficando sempre à espera

dos outros peixes e dos

camarões agora em festas

 

a panela está fria

de Dona Maria não se falou

aquela sem rosto

aquela só mãos

para quem não fazem poemas

só o mar

 

 

 

 

 

_

 

 

era tempo de quintal

tempo das árvores

quando eu ainda queria saber

o que aquelas pessoas

de fora

do portão pra fora o que

se pensava enquanto eu

de dentro

no quintal de pés descalços

no meu quintal tinham duas árvores

um coqueiro

uma mangueira

manga é doce cai nos nossos

pés são fáceis de escalar

naquele tempo de quintal

eu amava a mangueira

enquanto lá fora eles

pensavam em coisas que eu

não poderia saber

e quando me disseram:

— vamos cortar o coqueiro

eu não liguei

ele não me dava manga

nem perfumava minhas mãos

já agora laranjas

nós matamos o coqueiro

para ele não nos fazer mal

nós matamos o coqueiro

 

no meu quintal não havia maldade

de dentro era estação de manga

mas e eles o que acharam

eu tive um sonho

um filme e eles

carregavam o coqueiro para

fora ele era meu

e eu agora sei

dos fios entre os dentes

— há árvores de 500 anos

você diz

mas não o meu coqueiro

pelo qual não chorei

não choraria

nem pela casa ou

pelo quintal

é tempo de mangas no supermercado

 

 

 

 

 

 

_

 

 

agora do lado de fora além

da janela da cozinha eles

tateiam o chão de seda enquanto

aqui pisamos seguimos

pisando em tesouras abertas

tesouras abertas em chão de vidro

no de seda eles de fora da janela

tateiam o branco transparente

e eu não sei a cor

mas nossos pés sobre

tesouras abertas no chão

de vidro marcham ou marchariam

se soubessem enquanto pisam

mas eles tateiam de olhos

bem abertos enquanto nós

aproveitamos o passeio

o passeio sobre tesouras abertas

 

um dia me disse o

meu amigo sobre as coisas

prosaicas e uma nova palavra

eu queria passar

um café enquanto meus dedos

apontavam para a janela e eu

o meu amigo e a nova

palavra esperávamos o café

enquanto isso os dedos

daqueles que tateiam eram

como fios em novelo

e nossos pés ainda hoje

sangram debaixo da mesa

 

 

 

 

 

 

_

 

 

e eu também quero falar

sobre a minha avó e os seus

pés atravessando o corredor

estirados na horizontal, apontam

da sala para a cozinha, apontam

para um outro lugar

de onde eu não vim apontam

os pés atravessados de minha

avó

e quando digo que

eu também quero falar

sobre a minha avó e as suas

unhas vermelhas

você pensa na sua avó

que pode ser apenas

o cheiro da comida a fala

doce dos dias de domingo

ou todos os cacos da ausência

solapada na garganta

mas falar da minha avó

não é falar da sua

ainda que a sua senhora seja

de São Paulo e dos carros

das falas ásperas e dos

telefonemas de quando em

quando e do tempo em que

os aviões e os seus pés eram

completos mistérios destinados

a apontar para o cômodo

frio das comidas por telefone

ainda assim

eu preciso falar sobre a minha

avó

que carregava no nome

a inflexão do ar poluído

a tristeza das paredes de chapisco

e o retrato de seus avós

de quem não quero falar

são apenas retratos agora

que apontam para a

minha avó e emudecem

frente ao relógio parado

de um tempo que não é

deles e eu apenas posso

falar sobre minha avó e o seu

nome

que não é o meu mas

não deixa de ser quando eu

me estranho no espelho e sei

nem tudo que reflete

me diz do tempo de agora

dos aviões em silêncio

o reflexo fica estático e agora

me diz mais que o retrato

esmaga meu nome como

um rosto na parede de chapisco

mas isso é sobre como

eu preciso falar sobre a

minha avó e o seu nome

que encerra as arbitrariedades

dos signos e dos parentescos

da parede e da cozinha

de são paulo e daqui

e escrever já não é um retrato

e sim um reflexo que aponta

para o fato do nome do tempo

da sua rua e da sua cozinha

que não nos diferencia e agora

quando preciso falar sobre a

minha avó e seu nome

escrevo no espelho de batom

para não me esquecer

Maria Célia

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Fernanda Vivacqua nasceu no Rio, mas desde criança vive em Juiz de Fora (MG). Atualmente, estuda Letras, na Universidade Federal de Juiz de Fora, e compõe o corpo editorial das Edições Macondo. Sem primeiro livro, Maria Célia, está no prelo.