Cinê privê

 

Na fala proibida de um filme mental
serpenteia o camaleão:
Da encruzilhada de ser todas,
meu tesouro seria ser sua
e de todos, pra sempre —
só sua e também
de todos.
Na doença vulgar do verso
sobrevive a proibição cruel
do Deus
que é um
e que nos quis dois:
Inevitavelmente
casarei meu amor contigo.
Na mente, o mantra:
sua,
mas puta
de todos.

 

 

 

 

 

 

Date de poeta

 

 

Quando conheci Odorico
Loucamos véus brancos
E nus artísticos. Deu
Brisa breve entre os lábios
À análise métrica das bandas
Da bunda redonda.
Sobre o veludo da voz
E o vermelho no ventre,
A matiz de cores na partitura
Dos gozos harmônicos
E estri-dentes.
Cantamos sobre ruídos
E as palavras dos sons
Que rimam, ou que deliram,
Sob retalhos de flor da pele.
Entre tapinhas e solfejos,
Mordidas e apertões
Usamos os bordões
Da selva epilética do sexo.
Na linha da horizontal
Houve poesia.
Não se falou sobre amor:
esse escândalo.)

 

 

 

 

 

 

Razul

 

A razão
É uma das grandes besteiras,
Droga perigosa
No trabalho,
No trânsito,
Na transa.
A razão é a besteira
Mais estúpida e burra,
A besteira que mais briga.
Por isso ando cada vez mais
Pedra pelada —
Grunhidos, gemidos
Vinho e leite, pão e pau:
Eu vim foi pra me divertir

 

 

 

 

 

 

Porrada

 

I

Nosso soco amoroso:
Saudades transatlânticas
E medos marítimos
Cujas bordas estão pintadas
De vento e de frio.
A dor do soco bebe o escuro
Sem sombra de anestesia cavalar:
Ou você entra
Ou eu saio.
As miragens que comportam
As estrelas da porrada
São mistérios adoecendo,
Não cabem nas camas das tardes:
Careceriam de madrugadas.

 

 

 

II

Em meus sonhos
Oásis são cavalgados
Por poemas.
Sobre a realidade
De estar sozinha
Nocauteada pelo amor.
Sobra a imensa vontade
de ser socada de novo.

 

 

 

 

 

 

Receita de strip-tease

 

 

1 – massa!
A dura verdade
É que pouco importa
O que se vai tirar.
Im-portam os olhos:
Janelas des-caradas
Do corpo.

2 – re-cheio: ...
A dança é balanço,
Rosa-dos-ventos:
Venta brum lado, pro outro,
Brisa sobe-e-desce,
Frisa desce-e-sobe.

3 – ao forno!
Esnobe,
Segrede ao ouvido
Endurecido:
"Tease é provocar,
Meu amor".

 

 

 

 

 

 

LILITH&ouroboros

 

 

                            para Ginsberg

I

 

os poetas afinal são grandes mentirosos e

não o amo mais. seu cais horizontal e

seu convite forte me levaram de quatro

ao banheiro suja e verdadeira o sotaque

mineiro ferindo aquático tudo que era frio

a lua e o vento brindando o fim de noite

e os movimentos repetitivos de guerra

antes que os corpos se rendessem amorossos

à ressaca da cama onde deixamos de existir

meus olhos serpenteando — espaço, corpo, copo

seus olhos parados serpentes livres lúcidos

a certeza dos olhos dizendo venha prove o fruto

venha sentar em nuvens que pegam fogo

vamos ali onde a vida bebe um pouco a morte

e todas as músicas falavam de amores estúpidos

e todos os poemas falavam de amores ridículos

 

 

 

II

 

me apaixonei que nem bruxa: cisne confuso, tigre

obstinado, anciã delinqüente, urso misterioso,

dragão abandonado, rã indecisa, cobra aprendiz por

noites seguidas fui o centauro que viu estrelas e

as denunciou bruto e santo vívido como bronze

fazendo de ouro cada célula que te carregasse.

também me apaixonei trágica e simples das estórias

de amigo e biografias dos artistas e santos o corpo

de paixão moldado pela coberta japonesa que

ele baralhou no meu lençol sem perguntas sem

apontar saídas ou maquinar 'você como está?

sente frio? fica quantos dias? gostou?' me apaixonei

e as mãos escreviam quando ele saía e amava

sua casa enquanto ele morria um pouco mais

aguardando fervorosa a pele empapada de saliva

as brumas do seu pau na calcinha em abraços eram

suas mãos que me ativavam EU-APAIXONADA

conduzidos por um carro de bois desconhecido

barulhento insone trêmulo e ofegante como

um burro — fui arrebatada — isso não se repete

guilherme um dia também já foi alavancado

e sentiu partes do seu corpo serem puxadas

pela lua do outro seu mar de dentro levitar

e nessa eternidade bruta ele tenha sido doce

e os olhos tenham mudado de cores talvez

os olhos de estio secando o rabo de sereia

 

muito antes de ser meu mestre e meu animal

 

 

 

III

 

guilherme foi o meu animal: ele me botou de joelhos

e me ensinou o amor que magnetiza os hemisférios

faz mola travessia e fronteira ponte perversa desde

que conseguiu abrir o jardim secreto sou porta

inevitável girassol vassalo do seu umbigo bonito

reto expansivo: sou sua flor e sua puta solar.

guilherme você é o verão do ódio e do sonho tudo

que não era eu estava em você maravilha energética

e fomos tão delicados com as rotações e ciclos lunares

e eu soube tão bem ser corpo e alma em nossa carne

que você chorou como eu ao desmamar de minha cidade

o Rio que era como o mundo que você era por dentro

o rio de horizontes marítimos como os seus sonhos e

me disse 'o tudo são momentos' virou já frio e se foi

sabemos que nem os mortos esfriam tão apressados

mas saber não basta: você foi meu primeiro animal

eu te disse: 'diz-me ó amado da minha alma, onde

apascentas o teu gado' você relinchou por três dias

e todo dia eu mergulho no mar onde você é cavalo

e vejo Vênus encarniçada sobre sua presa a ausência

de medo própria de um deus ou de um animal

enquanto você me diz coisas amargas como os frutos

que você inventou gozando no meu corpo no teu

corpo que eu tateava cega como quem cura

 

 

 

IV

 

hoje você diz: poderia dizer "gostosa"

sabendo que falo do teu texto moreno

e não da sua boca colada ao meu rosto

e quatro anos depois ainda estou florida

sabendo que não nascerão as cerejas

há movimentos surdos na minha alma

prolongando a ereção dessas emoções

você poderia dizer: é bonita a poesia

pena que a poesia não é a mulher

de pernas rabo memória poética

cujo ventre canceriano jazz sem tempo

teu nome noturno  tua face alfabética

quatro anos duas tatuagens cinco encontros

e eu inventei tua beatificação mas foi meu

corpo que serviu a água do molde

foram suas as margens a direção do leito

você foi o mar de Minas foi o verbo

desde então o você que uso é um você por

quem me apaixono e eu sou o você apaixonado

poeta ou cisne ou tigre ou urso ou rã ou cobra

mas fora do poema sou eu ainda mulher

 

e não texto

 

 

 

V

 

e penso: fazíamos o melhor dos amores

mas eram os poemas que falavam disso

 

 

 

 

 

 

ALIMENTO

 

 

giuliano foi meu segundo animal:

tirou leite nos dentes deixou

no meu corpo a tatuagem

de uma flor mordida

 

cheiramos o lírio no sovaco no pé

nas mãos na virilha na alma e no cu

— estamos curados —

 

giuliano é uma via láctea

latejamos reciclamos nossos fluidos

a seiva explode latindo e não

desperdiçamos o leite a alma

também mama o olho quer leite

a buceta é o caldeirão de Barro

 

os corpos cozinham fluidos

nosso cheiro é inédito: giuliano e eu:

sob o céu único que parece o mesmo

fizemos o amor de surpresa como todos

o amor: o bicho que mais renasce

e que mais morre

 

giuliano é um cavalo leiteiro

acorda cedo a coruja espia com medo

ser animal é vida e morte me camuflo

giuliano me espicha grito a coruja dormiu.

uma égua acende a manhã e o cheiro é forte

o milagre da vida molha o caldeirão uterino

— o imenso coração do corpo — a terra gemendo

ao ser arada pelo garfo afiado uma duas

três vezes (é leite é brasa é sangue)

a terra macia e molhada respirando

criando cheiro e fazendo flores no pelo

e a dor fazendo nascente

na pedra que se fura

 

na nascente do estio

minha buceta e o pau de giuliano

brincam de Deus

 

 

 

 

 

 

ALMA-DE-GATO

 

 

Há três dias

Pulso sob a eletricidade do teu órgão

Tremendo no meu túnel aceso

 

A procissão do teu pau é meu ano novo

 

Sinto estrelas pipocando pelas paredes

Lanças com colchões nas pontas

 

Se essa rua

Se essa lua fosse tua

Te prepararia um tapete

Tântrico de pêlos e escamas

 

Se a minha buceta fosse um passarinho

Ela estaria cantando

 

como quem morre

 

 

 

 

 

 

SADE BUT TRUE

 

era um cavalo selvagem

       o que vem com o medo

       o que congela a espinha

       o que arranha o sexo

       o que segue a seco

 

sem rumo ela

gemia louca pensando

que caralhos se eu gozar

nem sei onde eu vou parar

pediu no coito absurdo

come o cu come meu cu

ele despertou o transe

comeu comeu comeu

ela gozou

 

e acordou

 

sexo anal é como um

inseticida filtro solar

ou como ser artista

 

só que é bom

 

 

 

 

 

 

POESSEXUAL

 

 

vou arquivando rascunhos

não deixo você vir porque

papel é mais seguro e plano

seguro como se fosse xixi

 

aí venho aqui e o verbo sai

vomito a gigóia gástrica e

digo o que tanto adiamos:

você é meu acento agudo

 

 

 

 

 

 

VERBOMULHER

 

 

Por isso estupro o agora

Vôo fecundar uma realidade

Extar finalmente fora

Furar um buraco que não seja eu

Enfiar num buraco não tão profundo

 

Estar sem mim

Como me encontro no mundo

O Éden é um exílio

Fora adentro, dentro afora

Escrevo pois:

furar o grande falo da vida:

voyeur implacável

 

 

 

 

 

 

Aqueles dois

 

 

Morrendo e amando

Mamando e morrendo

Como um oásis humano

Desintegrei Yoko Onno

 

Ela trocou lâmpadas por luz

Raiou no equinócio de outono

Na cabeça do dragão de papel

Eu compus minha Yoko Onno

 

Não sei onde o Eu me acha

Bem que se quis Yoko Lennon

Estrangeirar-se um no outro

 

Minha alma tem mandíbulas

Onde alguém vive cantando

 

 

 

 

 

 

[imagens ©marc lagrange]

 


 
 
Carolina T. Poeta cantora compositora carioca bruxa mística dramaturga médium mas também nascida em 1991, mestre em literaturas africanas, graduada em literaturas e professora do cap-uerj.