©julia borissova

 

 

 
 

 

 

 

Strawberry fields forever

 

 

Vovó morreu num dia estranho. O mesmo céu de manhã e à tarde. Assobio de vento e redemoinhos de terra. As ruas tinham a cor desbotada de um filme distópico. Um instante esticado no tempo, interminável.

Havia gente demais no salão. Muitos estavam ali em busca de papai, que vinha de Brasília, onde teve uma reunião importante com um deputado. Mamãe tentou falar com ele, a ligação chiada, e conseguiu entender que estava a caminho em voo fretado.

Papai era o prefeito da cidade e vovó, que sempre se recolhia ao quarto nos jantares com gente estranha na casa, agora não podia mais fugir. Quase todos os intrusos velavam a ausência de papai, não a de vovó. Os abraços frouxos e os pêsames oferecidos como um bom-dia, um boa noite, uma formalidade.

Por volta das nove, moças de uniforme branco e vermelho adentraram o salão. Serviram café e salgadinhos, convocadas sabe-se lá por quem. Talvez acostumadas aos treinamentos das festas de aniversário e bailes, não conseguiam evitar os sorrisos. Pela janela, entravam vozes de homens e mulheres batendo papo e falando ao celular no jardim. Tudo isso influenciava na atmosfera. Vovó jazia num antro de impostores.

A farsa contaminou tudo. Tornei-me, eu mesmo, o espectador de uma encenação desastrosa, e suspeitei que atravessaria o primeiro funeral de minha existência sem verter uma lágrima. Assumi um papel entre tantos: o neto cabisbaixo e melancólico, filho mais velho do rei. Reproduzir a versão branda de um sentimento na hora em que devemos experimentá-lo significa enterrar fundo uma verdade sobre nós. Talvez para não mais encontrá-la. Este sou eu: um jovem com um vazio imenso na cabeça se enterrando vivo no canto do salão.

Mamãe estava de óculos escuros, rosto limpo e seco, Matheus não entendia muito bem o que acontecia e perguntava se vovó estava dormindo. Nas cadeiras ao lado oposto, as irmãs de papai, minhas tias, choravam com franqueza e desolação. A irmã de vovó, minha tia-avó Dolores, assoava o nariz e limpava os olhos com o mesmo lenço.

A chegada de papai ao cemitério não foi diferente de sua chegada em outros locais públicos. Abraços, apertos de mãos, tapinhas nos ombros. A diferença estava na economia dos gestos, a lentidão e a sutileza nos cumprimentos. Quando ele chegou até vovó e envolveu as mãos pequenas e esqueléticas entre as dele, temi uma quebra violenta no seu comportamento. A ação de uma droga pesada que só a morte de um ente querido é capaz de injetar nas veias de uma pessoa calma. Cortei a respiração, apreensivo. O seu pranto, se viesse, faria desmoronar a minha farsa?

Nunca tinha visto papai chorar. A marca de sua presença no mundo era o riso, dele e quem mais estivesse ao redor. Tinha criatividade fora do comum para extrair graça de incidentes banais, mas era melhor no jeito debochado do que contando anedotas. Ainda assim, insistia. Quando mamãe e eu não dávamos um riso sequer no jantar, ria por nós e dizia que no gabinete o pessoal tinha adorado a piada.

"É a vantagem de ser prefeito. Todo mundo vai rir sempre", eu e mamãe pensávamos, trocando olhares, mas não dizíamos.

A voz mais forte em nossa casa é a de mamãe. Coisa de sua família, ela sempre fala, de raiz italiana e sangue fervente. Papai tem voz baixa e serena. Quase nunca ouvimos um grito sair de sua boca. Duas ou três vezes, em um momento turbulento da gestão, ao telefone, e uma vez comigo, quando lhe respondi atravessado alguma coisa. Elevou a voz, ficou vermelho, mas depois me chamou para conversar e se desculpou. Tentava largar o cigarro no período e a abstinência mexia com seus nervos.

Nem uma lágrima de papai sobre o corpo de vovó. Segurou os braços duros, alisou seus cabelos, beijou-a na testa, disse que ela estava com uma carinha boa feito uma princesa adormecida e que acordaria num lugar melhor, com o beijo dos anjos. Fiquei me perguntando o que ele sentia de verdade. Se estava tentando manter a sua imagem de político tranquilo, de grande equilíbrio emocional, ou se estava travado, como eu, diante de tantos observadores indiferentes.

Os afagos eram leves, calculados. Um misto de tristeza e otimismo que me remeteu a um resultado negativo na penúltima campanha. O discurso aos cabos eleitorais, no comitê, e os aplausos no final. Talvez já não soubesse mais sofrer ou abrir mão da esperança.

Saí do salão quando notei um mal-estar interno; a visão zonza e a respiração afobada. O salão era um lugar feito sob medida para os mortos. Fechado, escuro, com poucas janelas e muita gente. Lá fora, pude respirar melhor, mas o vento bateu frio no peito e quase retornei.

"Aonde você vai?"

Era a voz de Matheus, às minhas costas.

"Vou fumar um cigarro. Está muito frio, volte para dentro. Você vai gripar".

"Não tem nada para fazer lá".

"Isso é um cemitério, pequeno. Não tem nada para fazer aqui fora também."

Caminhamos entre as lápides do parque; os nomes e os números talhados em ferro. Matheus logo encontrou o que fazer. Agachava-se e saltava de lápide em lápide lendo os nomes em voz alta. Mamãe lhe ensinava o alfabeto com revistas e jornais, aplicando lições de uma a duas horas por dia. O resultado era aquele: antes da alfabetização escolar, o menino conseguia juntar sílabas.

Tentei colocar algum desafio na brincadeira. Levei Matheus até a parte antiga do cemitério, feita por imigrantes alemães. Como imaginava, ele logo se irritou.

"Não dá para ler essas palavras. Essas palavras não existem!".

Acendi o cigarro e dei uma risada. Baixa o bastante para não chamar a atenção de um casal que andava nas proximidades. Mal havia colocado o cigarro na boca e me sentia mais calmo. A tonteira havia desaparecido e o ar transcorria dos pulmões ao nariz sem se comprimir na garganta. Matheus me distraía. Funcionava melhor do que o cigarro. Nada sabia da morte, e seu comportamento fora de lugar, divertido e alheio, me fazia esquecer alguns minutos a razão de estar ali.

Terminada a graça da leitura, subimos até o setor reformado do cemitério. Diferente de outras áreas, era uma região arborizada e colorida. Entre as sepulturas, cultivavam girassóis e cravos. Ao fundo, pinheiros e árvores maiores; uma enorme mangueira, bastante carregada, espalhando frutos no chão. Matheus apanhou um deles e logo o deixou cair, enojado. A parte recostada na grama estava podre. Descobriu da pior maneira, afundando os dedos na fruta.

A alguns metros de nós, três homens abriam uma cova. Faziam o trabalho com bastante rapidez e concentração, e aquilo me perturbou. Talvez fosse a nova morada de vovó.

Jogada na terra, da mesma forma que a manga, ela apodreceria, com a diferença fundamental de que a manga era livre para se decompor a céu aberto. Os nossos mortos são autorizados a existir apenas como retratos dos vivos. Devem ser enterrados antes que abandonem esse papel, antes que a morte se revele por inteiro e desmanche tudo.

Puxei Matheus e voltamos ao salão. O velório chegava ao fim, com as pessoas rezando ao redor do caixão. O padre falou alguma coisa sobre a ressurreição de Lázaro, a de vovó e a de todos nós. Fez elogios à alma que estava sendo entregue, à sua generosidade com os irmãos e a igreja, rogou que Deus a aceitasse. João Mathias, um velho amigo de papai, que agora ocupava na prefeitura o mais alto cargo de confiança do município, disse um amém muito convicto e não pude evitar uma reflexão difusa e melancólica sobre os QIs da vida e da morte. Sem uma boa recomendação, João Mathias não estaria na prefeitura. Sem uma boa recomendação, a barca de vovó tomaria o rumo do inferno.

Antes do fechamento do caixão, um momento deprimente. O padre convidou as pessoas a se manifestarem. A darem, também elas, sua recomendação a Deus sobre a falecida. Temi o discurso de papai, que jamais se negava a um, mas ele se apressou em demonstrar a vontade, muito adequada a um filho, de despedir-se silenciosamente, abaixando a cabeça, fechando os olhos, entrelaçando os dedos. A calma no seu rosto era assustadora.

Manifestaram-se alguns, e eles mal conheciam vovó: gente que esteve com ela raras vezes. Tentei ver naquilo uma atitude bonita, de gentileza sincera. Mas o sentimento durou até a segunda vez em que o termo "senhor prefeito e família" reverberou no salão. Outra vez, papai era o centro das atenções. As palavras nada tinham a oferecer a vovó.

"Que você, senhor prefeito, encontre força e fé para continuar esse belo trabalho à frente da cidade. O povo está contigo". Sim, um comício fúnebre. Desejei que vovó fosse enterrada logo. Que não a obrigassem a presenciar aquilo.

Quando os discursos findaram e alguém entrou com o carrinho de metal, suporte que levaria vovó à sua cova, e o padre sinalizou o fechamento do caixão, e uma revoada de pombas atravessou a vista na janela dos fundos, corri até vovó e pus em sua testa um beijo molhado de saliva e lágrima.

Enquanto fechavam o caixão, papai abraçava mais um filho da puta: um filho da puta retardatário e de terno cinza. Não fosse papai um homem tranquilo, o homem mais tranquilo do mundo, eu diria que sua dor era menos que uma dor real, era uma dor prática e comedida feito o saquê de açúcar refinado distribuído com o café. Uma dor apresentável e distante, cheia de etiqueta.

 

***

 

Vovó enterrada, deixamos o cemitério.

Por muito tempo o carro flutuou na estrada, o carro e seus ruídos mecânicos. Todos nós num silêncio que era menos tristeza que cansaço. Velórios sugam a energia dos vivos, multiplicam a fome e o sono.

Eu daria meu cochilo, não fosse o sorriso de papai no retrovisor. Sim, um sorriso. Ele acabava de ver algo que não estava na avenida: uma lembrança engraçada de vovó. E comentou-a, fazendo-nos recordar os detalhes. Quando nos demos conta, se é que nos demos conta, abrimos uma sessão de piadas nostálgicas.

Vovó era uma senhora de personalidade teimosa e intensa. Uma luta, levar Dona Marta a agir a contragosto, fosse ainda pelo seu bem. Lembramos de quando o médico suspendeu a cafeína e ela armou um verdadeiro tráfico de pó na casa. Chegou a montar uma rede de colaboradores no bairro, com gratificações e regras de sigilo. Escondia os pacotes e esperava o momento oportuno de coar. Um dia, quando cheguei mais cedo da escola e senti o aroma, roubei a garrafa de café e ela me perseguiu — o chinelo em punho — pelas ruas do bairro.

Em outro episódio, vovó recusou as flores dos bajuladores da prefeitura na câmara municipal no Dia das Mães, dizendo não gostar de flores e não ter onde colocá-las. Fazia isso sem noção das coisas, uma franqueza ingênua e desconcertante.

Gostava de me ajudar nas tarefas escolares. Dela, quando cursei o fundamental, recebi as primeiras colas. Lembro bem. Mamãe tomando a tabuada e vovó escondida atrás da máquina de lavar, soprando os números.

Ela tinha uma espécie de detector de gente chata e não socializava com boa parte dos visitantes que frequentava nossa casa. Metia-se no quarto e ligava a tevê no último volume. Quando não a tevê, o toca-discos. Vovó era desprovida de algo em torno de 60 por cento da audição. Quando ouvia música, a casa tremia.

Evocamos essas lembranças. Depois papai ligou o rádio do carro e sintonizou na Antena Um. As baladas fluiram com a leveza das canções de ninar. Senti o sono chegando e dormi. Despertei no meio de Angie, dos Rollings Stones. Mamãe cantava junto, papai sério e com os olhos baixos, sonolentos, Matheus ainda dormindo, exausto.

Vieram mais lendas do rock. Bob Dylan, Queen, David Bowie e Beatles. Tocava Strawberry fields forever quando começamos a perder velocidade.

"O que aconteceu? ", perguntou mamãe.

"Preciso mijar."

"Mas logo aqui, meu bem? Não faz isso. Que porcaria."

"Estou muito apertado".

Papai abriu a porta e saiu. Mamãe balançou a cabeça e olhou a estrada, nervosa. Na avenida as manchas passando em lampejos. Concentrei-me para saber se devia esvaziar a bexiga e calculei: dava para chegar em casa sem desespero.

Restava-me ser mais um Beatle, cantar junto Strawberry fields forever. E cantei, ao menos tentei cantar. A energia recobrada no cochilo era pouca, não me levou ao refrão. A língua arrastava as frases como pedras.

Terceira parte da música e nada. Então ouvimos. Uma interferência. Tomando o espaço que era todo ele a suavidade dos Beatles. Primeiro o ganido, depois os soluços.

Olhei para trás e vi papai encurvado, as mãos nos joelhos, as costas tremendo.

Mamãe impediu meu reflexo de abrir a porta:

"Deixa ele.".

"Eu..."

"Deixa seu pai aliviar um pouco. Ele precisa disso".

"Tá bom."

Lá fora o mesmo dia sem brilho, os carros levantando a poeira da falta de chuva. Sobre nós o céu mantendo o dia em segredo: as nuvens negras, homogêneas, sem frestas.

"Quantas horas, mãe?"

Mamãe pegou o celular no porta-luvas.

"14 horas."

"Ainda?"

"Ainda".

Voltou a impressão de que o dia não teria fim. Nem o dia, nem o choro de papai, nem a soneca de Matheus, nem o olhar apreensivo de mamãe, nem Strawberry fields forever, que ganhou a votação dos ouvintes — na melhor de três — e recomeçou.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima, Minas Gerais, em 1986, onde reside atualmente. Em 2009, publicou seu livro de estreia, Ideias Noturnas sobre a grandeza dos dias (Novo Século). Com o conto "Sombras", venceu o concurso literário Brasil em Prosa 2015, organizado pelo jornal O Globo e a Amazon. Publica regularmente resenhas e artigos em sites de literatura. É um dos organizadores do programa de entrevistas Literatura no Boteco. O conto "Strawberry fields forever" integra o livro Naufrágio entre amigos (Editora Patuá, 2016).