A notícia sobre a chegada do bebê criou um clima de euforia na mansão dos Guerra Barbosa. Cláudia Prócula mandou comprar flores e as colocou em vários vasos pela sala, na porta de entrada, no corredor dos quartos. Até nos banheiros. Theophilo tentou esboçar uma reclamação dizendo que tanta flor poderia fazer mal para a criança. Mas preferiu se calar.

No dia seguinte, logo ao amanhecer, Cláudia abriu todas as janelas. Queria que o sol entrasse nos cômodos. Mandou a criadagem refazer a limpeza de tudo, apesar de a faxina geral ter sido realizada nos dois últimos dias.

O quarto-capela foi ornado com dois enormes arranjos de flores do campo, as preferidas da mulher. No pequeno retábulo espalhou sua coleção de terços. Aos pés de Nossa Senhora de Fátima colocou um terço especial, trazido recentemente de uma viagem ao Vaticano. Tinha as contas feitas de pétalas de rosa enroladas manualmente por freiras e uma cruz em ouro maciço. Ajoelhou-se no genuflexório, levou as mãos espalmadas a se juntarem na frente dos lábios e orou fervorosamente. Agradecia o que considerava ser uma das maiores graças que obtivera em vida, depois de ter escapado da infecção que lhe acometeu durante o parto dos gêmeos há quase três anos.

 

*

 

Desde que o marido dissera estar disposto a adotar uma recém-nascida, Cláudia começou a preparar o enxoval. Arrumou o quarto da menina especialmente para esse dia. Afinal, sua chegada equivaleria a um nascimento. Vivenciou até uma "gravidez ultrasônica" naquela noite de sexta-feira quando Theophilo anunciou que tinha boas notícias sobre o bebê, que chegaria à casa no dia seguinte. Sonhou acordada em seu quarto.

Sentiu o ventre contido com o corpo de uma menina de tez branquinha, cabelos loiros e olhos claros, como era seu menino quando nasceu. Imaginou a barriga crescendo. Chegou a vestir uma bata que utilizou quando teve o outro filho. Foi à frente do grande espelho de cristal em sua suíte. Desfilou orgulhosa, acariciando a barriga. Depois colocou uma almofada sob o pano para simular a gravidez. Não conseguiu dormir direito, tamanha era a euforia. Até que finalmente o dia amanheceu.

Assim como a noite de sexta para sábado, as horas daquele dia 20 de junho teimavam em se arrastar demoradamente. Tomou o desjejum de forma frugal. Quase não tocou na comida do almoço. Depois nem quis o chá da tarde. Permanecia sentada no sofá da sala o tempo todo, olhando para a porta de entrada, com os ouvidos atentos para qualquer movimentação. Uma vez ou outra levantava-se e ia até o quarto da recém-nascida conferir se estava tudo arrumado e pronto para a ansiosa chegada da nova moradora da casa. A menininha dos Guerra Barbosa.

As horas passavam lentamente e ninguém aparecia. O entardecer apresentava um lindo por do sol, que iluminava os janelões da mansão, transpassava os vitrais e chegava aos pés de Cláudia sentada no sofá. Moedas de luz tocavam suas pernas. Ela enxergava isso como um aviso de Deus. Um aviso bom de que um grande futuro alegre e cheio de vida estava por vir. Mas nada da menininha ser entregue.

Theophilo conseguiu convencer Cláudia a se recolher aos aposentos. Prometeu que assim que tivesse alguma notícia ou a criança chegasse, ele mesmo correria ao quarto para chamá-la. A muito custo a esposa aceitou a proposta. Colocou a camisola, ajeitou os cabelos e deitou-se na ampla cama, em meio aos lençóis de linho egípcio. Mas não conseguiu pregar os olhos. Estranhava que alguém pudesse levar um bebê tão tarde da noite para sua casa.

O grande relógio da sala, trazido da Turquia, soou as 12 badaladas noturnas. Era meia noite. Cláudia resolveu descer até a cozinha e tomar um chá. Sentia um desconforto na barriga, vazia de alimentos. Ao passar pela sala viu o marido tomando seu uísque e falando ao telefone. Preferiu não dizer nada, como de costume.

Caminhou até o armário da dispensa, abriu uma lata estampada com desenhos nas cores vermelho, azul e branco. Pegou um punhado de erva inglesa e colocou numa chaleira para ferver com água. Depois sorveu cada gole com pensamento fixo. Tentava imaginar a sua menininha. Findou o conteúdo da xícara e voltou para o quarto. O marido continuava ao telefone. O copo na mão.

O relógio marcou duas horas e a campainha da rua tocou. O portão foi aberto pelo segurança. Um veículo preto entrou pelo caminho de pedra em meio ao jardim. Cláudia pulou da cama e se dirigiu à janela. Não ousou abri-la. Espreitava pelas frestas e só conseguia ver parte da cena.

O carro se aproximou do terraço. Do banco de trás desceu um homem com uma espécie de embrulho nos braços. Pelo cuidado com que carregava, ela imaginou ser sua ansiada menininha.

Colocou o roupão de chambre, calçou os chinelos e atravessou rapidamente o corredor com sorriso estampado no rosto. Parou momentos antes de ser vista da sala. Ficou atrás de um enorme pilar de mármore, olhando, com a respiração sobressaltada. Ouvia vozes de homem. Dois, em tom bem baixo. Escutou passos se dirigindo à porta da sala e o bater da pesada madeira. Sentiu coragem para correr as escadas abaixo. Desceu degrau a degrau numa velocidade nunca antes exercida. Já na sala abriu os braços e correu em direção a Theophilo, que segurava um bebê.

Cláudia olhou atentamente e viu que a criança estava embrulhada numa toalha de banho. Havia algumas manchas de sangue no tecido claro, o que a deixou desesperada. Pegou o embrulho e colocou sobre o sofá. Abriu a toalha, um pedaço de pano para cada lado. Viu a bebê, de tez branca, mas, ao contrário do que imaginava, com cabelos escuros. Não era loirinha. A ponta do cordão umbilical estava amarrado com um barbante. A mulher fechou a cara. Talvez um pouco decepcionada. Por fim, concedeu que seu sonho havia se realizado. Era sua menina. Iria criá-la, educá-la e transformá-la numa freira. Era sua filha. Cláudia Prócula e Theophilo agora tinham um casal de filhos.

Aos poucos, o impacto provocado pela toalha puída e manchada de sangue foi se desfazendo. Enquanto se dirigia para o quarto, a criança começou a chorar. Uma criada chegou à sala. Cláudia ordenou que fosse chamar a governanta, para que pudessem banhar a nenê. Também mandou a empregada esquentar água e fazer uma mamadeira. Várias caixas do melhor leite em pó que existia no mercado haviam sido compradas pelo marido.

O trabalho de lavar o corpinho da criança, curar o umbigo e fazer toda a assepsia necessária tomou boa parte da madrugada. Após o banho, o cheirinho de sabonete inebriou a nova mãe, que depois passou talco e colocou a fralda, o pagãozinho e todas as roupinhas com detalhes cor de rosa. O bebê ficou com uma cara angelical.

A empregada chegou com a mamadeira, que a menininha sorveu sofregamente, esfomeada que estava. Cláudia não esqueceu de fazer a filha arrotar antes de colocá-la no berço. Foi quando Theophilo entrou no quarto.

Ela volveu o corpo dobrado por sobre a caminha, virou-se para o marido, fez o sinal de silêncio e depois correu para abraçá-lo e agradecer. Apertou o corpanzil do companheiro com força, que retribuiu o chamego. Olharam-se e sorriram. Saíram do quarto, deixando a nova moradora dormindo. Para a empregada, agora alçada ao posto de babá, fizeram mil e uma orientações.

Recolheram-se à suíte eufóricos, tamanha a felicidade. Mas os largos sorrisos cessaram quando Cláudia deu vazão à sua curiosidade. Queria saber quem trouxera a criança e de onde ela viera. O marido, como sempre, procurou não ser rude para evitar discussão. Foi lacônico. Respondeu que a bebê fora trazida por um amigo e era oriunda de uma família pobre, sem condições de criá-la.

 

*

 

Já deitados lado a lado na cama, a esposa pergunta para o marido se havia pensado em um nome para dar à filha. Diante de sua negativa, ela sugeriu então que a batizassem de Verônica.

— Por que Verônica? — perguntou.

— Porque Verônica significa portador da vitória, a verdade. Foi Verônica que, comovida com o sofrimento de Jesus em seu calvário até o Gólgota, ofereceu seu próprio véu para que o filho de Deus pudesse limpar o rosto encharcado de suor e sangue. E essa menininha é nossa vitória. Nossa conquista de um sonho quase impossível de ser realizado. Nossa fé em Deus possibilitou isso. Agora temos um casal de filhos. Nossa família é a melhor do mundo. Considero essa criança como portadora da nossa felicidade.

Theophilo aceitou a sugestão. Disse que na segunda-feira iria até o cartório na Rua da Mooca para registrar a filha como Verônica Guerra Barbosa.

— Está satisfeita?

A esposa moveu a cabeça de cima para baixo, em sinal de consentimento. Ele se virou de lado e dormiu rapidamente. Cláudia ainda demorou muito para pegar no sono. Antes fora até o quarto do bebê. Abriu a porta, olhou-a rapidamente e depois voltou para a cama.

 

 

 

[Trecho do romance Depois da Rua Tutoia. Jaú/SP: 11 Editora, 2016]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Eduardo Reina. Atualmente é coordenador do Departamento de Imprensa da Artesp. Trabalhou em vários jornais, revistas e periódicos, rádios e televisão em São Paulo e no interior, desde 1983. Atuou como diretor de redação, editor, colunista e repórter. Também foi assessor de imprensa de entidades, empresas e sindicatos. Ganhou vários prêmios de jornalismo como o Abril, o Estado e o Imprensa Sindical. Este último lhe proporcionou fazer curso de complementação na Organização Internacional do Trabalho (OIT) na Suíça, em 1993. Em 2010, seu blogue venceu o prêmio Estado. No mesmo ano também foi menção honrosa no prêmio Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Autor do livro de contos policiais No Gravador (2003). Integrante dos livros O Conto Brasileiro Hoje, Volume 5 (2007) e Contos e Casos Populares (introdução de Paulo Freire, 1984). Também atuou como ghost-writer em livro-biografia nos últimos anos.

 

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