LADO B

 

 

 

Ela tinha 17 anos, um RG falso e um namorado. Eu tinha 20 anos e nenhuma identidade. Mas tinha um carro. O RG falso, ela usava pra ir a motéis com o namorado. Mas passou a frequentá-los comigo também, eu e meu carro 1.0 naqueles anos 90 em que a fé se alternava entre Nirvana e The Jesus and Mary Chain. Eu era assistente de marketing em uma agência e ela era estagiária de vendas, ela e seus cabelos castanhos e levemente ondulados, olhos claros minguantes e uma boca carnuda rompendo com o padrão europeu. Eu dirigia, ela guiava.

 

"Pega a marginal Tietê. Já foi pra Freguesia do Ó?"

 

Nunca tinha ido. E muito menos a um motel. Mas não diria nem uma coisa nem a outra pra ela, embora desesperado em tempos de guia de ruas em papel e caminhões em pânico na via expressa.

 

"Sei onde é", menti, tal qual um RG falso.

 

Ela acabou me dando as coordenadas pra chegar ao lugar, eu a todo momento me justificando como pessoa com pouco senso de direção. Pura verdade, e não apenas geograficamente, no caso.

 

Enfrentei com pretensa naturalidade as preliminares as de pedido do quarto, estacionamento do carro, subidinha da escada de acesso sem o menor romantismo, eu indo atrás com a visão do rebolado da calcinha dela, tudo ao contrário do que eu previra com ela, quando cogitara aquela aventura sexual em busca de algum amor naqueles olhos distantes.

 

Entrei no quarto e me senti em um estúdio de filme pornô americano, um troço que eu nunca engoli (sem paralelismo com as substâncias abundantes nesse tipo de filme). Eu queria estar no meu quarto, ou no quarto dela, mas razões distintas para cada um de nós impediam tal cenário. Ela tinha namorado, eu tinha uma mãe em casa naquele exato horário.

 

As preliminares de fato foram confusas. Demos risada, falamos da agência, fizemos piada com a decoração e com a banheira de hidro (elas existiam mesmo!) ─ "Devem ter gozado muito aí dentro, você quer entrar?", ela disse. O próprio namorado dela já devia ter gozado ali, e isso me perturbou consideravelmente. Eu nunca o tinha visto, mas por alguns instantes ele se materializou por completo na borda iluminada da Jacuzzi, recebendo das mãos compridas dela o carinho que ela nunca havia me dado. Entre eu e ela era tudo somente sexo e amizade, como cantava a Bethânia, e eu não estava nada feliz.

 

Fiquei sisudo. "Quero não", falei, sem graça.

 

"Então vem cá", ela disse tirando a saia jeans muito curta e a camisetabege e revelando um conjuntinho de calcinha e sutiã quase infantis, brancos com bordados azuis, despretensiosos, como se eu ali parado fosse mesmo nada mais que um brinquedo.

 

Permaneci imóvel por mais alguns bons segundos. Ela insistiu: "Vem".

 

Não tinha como não ir. A imagem que agora se me apresentava, em carne, osso e mamilos, vinha desconfigurando nas semanas anteriores alguns padrões do meu software sentimental como um vírus plantado por um hacker. Fui.

 

A pele macia e muito branca, o perfume aplicado em doses maciças ─ presente do namorado? ─, o olhar enfim vidrado, o complemento até então invisível da tatuagem abaixo da nuca, e a partir da imagem e dos cheiros e do tato e dos sentidos todos, toda a perdição condensada em uma frase inusitada, a voz dela simulando o êxtase de uma personagem de folhetim barato: "Me morde, me morde como se eu fosse um pedaço de carne".

 

Claro que, pra mim, ela era muito mais que um pedaço de carne. Era outra coisa. Para ela eu não era, enfim, nada muito além de um petisco, e quem me comeu foi ela, quem me cravou dentadas com uma fúria juvenil foi ela, e eu via entre os movimentos daquele corpo possuído flashes dos olhares tristes dos irmãos Reid, os músicos do Jesus and Mary Chain, entoando os versos de "Just LikeHoney": "I´llbeyourplastictoy, I´llbeyourplastictoy".

 

Naquele começo dos anos 90 as bandas gringas costumavam lançar os chamados singles, ou EPs, ou compactos, com uma música tirada do álbum maior e outras duas inéditas, obscuras, que só os colecionadores e conhecedores assíduos teriam. No Brasil esses mini-CDs custavam caro, eram importados, e não existia a mamata de baixar música na internet. Do Jesus mesmo eu tinha comprado alguns, vários deles depois reunidos num único disco da banda, o "BarbedWireKisses ─ B-Sidesand More". Eu corria atrás desses singles como corria atrás dela ─ em busca de uma raridade.

 

Assim como os irmãos Reid em suas canções de dilaceramento existencial, eu tinha um quê de entrega autodestrutiva. Um clipe de guitarras distorcidas e armas reluzentes e sangue rodando em uma tevê velha na madrugada, e anos depois os vídeos do Jesus em fitas VHS e aquela noite no Studio A ─ era esse o nome do motel, Studio A ─ iriam embolorar na mesma medida, embora vez ou outra eu ainda pense nela. Os VHS não converti pra DVD, trampo demais.

 

Depois das mordidas, trepamos. Loucamente. Sem camisinha. Esfregando as carnes podres da desilusão. Mas, antes que eu gozasse, um desvario me tomou. Pensei em outra canção do Jesus, "Tasteof Cindy", que no álbum "Psychocandy" aparecia em versão soterrada por guitarras distorcidas, e depois surgiu como lado B de um single em belíssima versão acústica, voz e violão.

 

"Shehas me, we twist thesunandsea", diz a letra. Pra depois complementar com versos que dizem que Cindy olha através dele (do vocalista), que ele tenta e tenta, mas quando ela fala docemente é algo como uma faca cravada na cabeça dele.

 

Eu havia tentado. E minha última esperança foi gozar dentro, plenamente.

 

Ela gritou. Foi como uma lâmina trespassada de fronte a fronte, e caí em mim. Ela caiu em prantos, um choro convulsivo, inconsolável.

 

Já no carro, perguntei onde queria que a deixasse.

 

"Vamos parar primeiro em um orelhão, preciso ligar" ─ eram os anos 90.

Eu do lado dela, em pé encostado no orelhão, pude ouvir que pedia para o namorado buscá-la na faculdade mais à noite. Sim, ela tinha matado aula pra transar comigo.

 

Enquanto eu morria por dentro e dirigia até a São Judas pra deixá-la, pus pra tocar no som do carro um CD do Jesus. "Já ouviu isso?", perguntei. Eu sabia que não. De qualquer forma, fiz questão de dizer que era um disco que pouca gente tinha, era importado blablabla.

 

"Eu não te amo", ela disse de repente, na deixa do riff distorcido da guitarra. Ela não precisava ter dito.

 

Meses depois de não nos vermos mais ela me ligou. Contou que estava grávida. Supus que não fosse meu quando disse que "teria os olhos azuis do pai". Fiz algumas contas, após perguntar de quantos meses estava, e concluí que de fato não podia ser meu. Anos depois, por circunstâncias que não cabem aqui, soube que tampouco era do namorado do orelhão.

 

Tanto choro à toa. E àquela altura o RG falso nem tinha mais serventia. Eu tampouco. Mas eu estava aliviado. Não era mais a versão com guitarradas psicóticas de "Tasteof Cindy" que eu ouvia. Era a versão acústica, quase desconhecida, pacificado pelo conformismo e pela distância. Nunca teria dado certo, ela nem gostava de Jesus, e eu tinha sido apenas um lado B obscuro e raro na discografia dela, em uma tentativa pouco verossímil de identificação. Não demorou muito também pra que as bandas parassem de lançar singles. Não faziam mais sentido, tudo começava a ser disponibilizado na rede, tudo mais fácil, mais acessível, menos custoso. Era o fim do tempo das descobertas.

 

 

 

 

 

 

 

TESTE DO SOFÁ

(OU: A VOLTA DOS TELETUBBIES)

 

 

 

Às vezes é difícil saber-se vivo. Já li que quando morremos passamos um tempo fazendo as mesmas coisas, não sei muito bem como isso funciona no mundo límbico-plasmático. Mas tenho uma boa ideia de como acontece no mundo de todo dia, este aqui mesmo.

 

Este que botava eu, pai e mãe, semivivos, na frente da televisão em tempos de Roque Santeiro, a última novela que vi, e isso não nos replays da vida, na exibição original dos anos oitenta mesmo, em pleno renascimento pós-ditadura. Seria o personagem de José Wilker, o "santo", o ente libertário a combater o coronelismo de Sinhozinho Malta, interpretado por Lima Duarte, em um contexto político e social mais amplo?

 

Tempos quase metafóricos, a realidade em si, se os comparamos aos dias de hoje, esse pastiche da democracia revivida naqueles meados dos 1980. Estaria a democracia morta e vagando apenas por não saber que morreu? José Wilker, sim, está morto e não comenta mais o Oscar. Lima Duarte, dizem, está vivo, bem como a Regina Duarte (a "mocinha" de Roque Santeiro), que não andou falando besteiras como a Glória.

 

Ah, as pessoas na sala de jantar, já cantavam a bola os Mutantes muito antes da queda da ditadura. Nos hospitais as pessoas tomam soro acomodadas em poltronas que ocupam salinhas que parecem a sala de estar de suas próprias casas, com caras de enjoo que parecem as caras que exibem em suas próprias salas, e nessas salinhas dos hospitais, em que vez ou outra alguém mais nauseado chama o Hugo (Carvana? Pera, ele morreu, em 2014), em geral há uma TV ligada. Ou mais de uma.

 

Lembrei-me de um artista de música eletrônica que se apresenta com um capacete em formato de TV. Será que ele não tem mais cabeça? Ou entendeu, melhor que todos, as circunstâncias em que vivemos?

 

Grande avenida paulistana, dia desses. A cena ─ aparentemente real, ou seria um set de filmagem? ─ mostrava uma família "estabelecida" ─ pai, mãe, duas crianças pequenas ─ em um aparentemente confortável (porém puído) sofá de tecido verde-musgo (lembrou-me o sofá que eu dividia com meus pais para assistir a Roque Santeiro). Eles não assistiam a nenhum programa da grade televisiva, contudo (aliás, interessante a expressão, metafórica mesmo, grade televisiva).

 

As costas do sofá se apoiavam na fachada de uma loja abandonada ou algo assim (a crise, ah, a crise). O sofá estava virado de frente para a rua. E é na rua que aquelas pessoas cravavam os olhos, atentas ao espetáculo nada forjado da realidade sem filtro.

 

Será?

 

Ouvi dizer, e aqui pode ser factoide, que algumas pessoas andaram implantando tubos no peito. Aqueles tubos dos velhos aparelhos de televisão. Insatisfeitas com suas próprias vidas, elas correram pra velhas lojas de reparo (alfaiates de eletrônicos) em busca dos velhos tubos de raios catódicos, as válvulas que davam vida aos antigos televisores. Já que os novos dispensam esses aparatos, era preciso dar algum uso àqueles tubos. Reciclá-los. São esses os tempos, afinal, não? De reuso. Reuso da água. Reuso de práticas que pensávamos em desuso. Reuso da pulseira de metal de sinhozinho Malta? Democracia em reuso ou em desuso?

 

Parece que estão dividindo as ruas em feudos. Em alqueires de terra. Lotes. De novo.

 

Voltemos à família de mendigos no sofá. De costas para a loja que faliu (e onde não poderiam comprar nada anyway), eles olham para as ruas com expressões de incredulidade. Porra, mas são as ruas! São as pessoas em si. A realidade em si. Por que tamanho assombro?

 

Será que...

 

Será que a espetacularização...

 

Saiu...

 

Dos televisores??

 

As coisas começam a fazer sentido nesse Poltergeist fenomenal. Ou a perdê-lo completamente.

 

Será que a família de mendigos imagina que está diante de uma grande representação? Tá, isso já foi dito antes, tô me lembrando do Guy Debord. Mas não como agora.

 

Esse realismo-naturalismo de fachada de agora.

Caminho mais um pouco. E eis que, em uma suposta manifestação na Paulista, encontro aqueles que parecem pensar ser os novos donos dessa realidade a imitar o discurso que atravessa as telas de plasma e parece manipular os passageiros dos sofás via controle remoto.

 

Encontro...

 

Os Teletubbies!

 

Então era verdade.

 

Alguns humanos implantaram de fato os velhos tubos de televisores em si mesmos.

 

E agora, bonecos de cores sortidas ─ verde, azul, amarelo ─, subvertem a lógica histórica em um discurso infantilizado, como se tentassem convencer crianças de dois anos de idade a dar um tchau para o sol e balbuciar conceitos que desconhecem.

 

Não duvido que a família de mendigos grite vivas para esses replicantes coloridos ao vê-los passar como em um desfile de Sete de Setembro, Dia da Independência.

 

Hein?

 

Sim, os Teletubbies acreditam nos desfiles de Sete de Setembro e no Dia do Índio.

Saio correndo. Pra casa.

 

Tchau, Teletubbies.

 

Queria uma casinha de cachorro pra meter na cabeça, já lembrando de um outro personagem,este de desenho animado.

 

Estar, ou ser vivo, a essa altura, talvez não passe mesmo de aderir a uma operadora de celular. Basta, aliás, observar um casal qualquer em um restaurante qualquer. Os dois estão frente a frente, mas um não olha para o outro. Eles têm algo melhor: seus smartphones.

 

Talvez a vida tenha mesmo perdido a graça sem os filtros.

 

Será que estamos todos mortos e apenas seguimos fazendo as mesmas coisas por hábito? Será que passaremos a andar por aí com controles remotos nas mãos, pra zapear quando não estivermos gostando do programa? Ou durante os comerciais? Tudo, agora, é um grande comercial? Talvez os controles remotos sejam as armas químicas do futuro. Armas eletrônicas. De choque. Algo assim.

 

Mas tudo isso já foi dito antes. Passa agora na minha cabeça (jargão predileto dos futebolistas) outro filme: "Muito Além do Jardim", em que Peter Sellers interpreta um jardineiro que confunde a realidade com o que passa na TV.

 

Uai, mas não fazemos exatamente a mesma coisa nas redes sociais, a nossa "grade televisiva" contemporânea?

 

Tudo já foi dito antes. Mas tá sendo dito de novo e de novo.

 

Ainda que seja assim, não quero me transformar em Teletubbie. Ser a criança que, ao lhe perguntarem de onde vem o leite, responde: "da embalagem tetrapak", dando tchauzinhos para o Sol.

 

Acho que estou desenvolvendo agorafobia. Medo de sair de casa. Ou melhor: medo de sair do meu próprio sofá. Ao menos nele quem dita as regras sou eu.

 

É, então, nele que me jogo, exausto, ao chegar da rua.

 

Ligo a TV de plasma.

 

E reconecto minha distopia à do mundo.

 

 

                  

 

 

 


 

 

 

 

 


Edson Valente (São Paulo - SP) é jornalista, escritor, poeta e cinéfilo. Escreveu Refluxos (Contos - Ateliê Editorial, 2010), Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Poemas - Pátua, 2014) e Raiz forte (Contos - Patuá, 2015).