Renúncia

 

 

O telefone havia tocado no meio da tarde. Um problema em uma nota fiscal me deixou presa por duas horas no computador e acabei almoçando uma hora depois do costume. Era uma sexta-feira e nada estava sendo fácil. Tenho que me lembrar de nunca mais autorizar a emissão de uma nota sem descriminação exata dos descontos da editora com a livraria.

Estava pagando a conta do almoço. A comida foi realmente boa e eu já me preparava para voltar e descobrir se a correção da nota havia funcionado, ou se teria de refazer as mais de nove páginas. Senti uma vibração na bolsa bem no momento em que digitava a senha do cartão. Tirei o celular, distraída e torcendo para ter digitado a senha correta, quando a vibração parou. Olhei no histórico e vi que a chamada perdida era da minha irmã. Saí do restaurante, uma referência gastronômica na Rua Fradique Coutinho, na Vila Madalena, e andei de volta para o escritório, poucas quadras à frente. Incomodada com o forte calor e com dificuldade de enxergar a tela do celular naquele sol forte, pressionei para retornar a chamada. Refletia sobre o que Aline poderia querer falar comigo já que raramente me ligava, principalmente nos dias úteis da semana. Alguém atende e na voz de minha irmã sinto um incômodo e um tom ansioso.

— Me ligou Aline? — perguntei.

— Sim, Denise. — Ela hesitou por alguns segundos, seja disfarçando a voz, limpando a garganta ou procurando palavras. — Queria saber se você pode passar aqui depois do trabalho. Preciso falar uma coisa com você.

— É importante? — perguntei num tom seco. Percebi a grosseria da minha voz e fiz questão de adicionar alguma pergunta conciliatória. — Bem, você sabe, tenho que atravessar a cidade pra chegar aí. Não quer conversar no domingo? Posso levar alguma coisa pra gente almoçar.

— Não, tem que ser hoje. Denise, é bem importante — disse lentamente e com a voz baixa. — É sobre o Gustavo.

Refleti por alguns segundos. Sobre o Gustavo? Que tipo de problema com ele poderia necessitar da minha presença? Pelo tom de voz dela percebi que, fosse o que fosse, ela não falaria pelo telefone. Segurei o celular firme, enquanto atravessava o uma rua. Olho pra cima e vejo fortes nuvens se formando acima dos prédios. Uma ambulância soa na rua paralela. Suspiro ao imaginar o humor do trânsito no próximo horário de pico.

— Está bem, eu passo. Mas vou chegar aí depois das sete, tudo bem?

— Sim, claro. Obrigada.

— Combinado, até.

Desliguei com uma estranha sensação no peito. As vezes eu costumava almoçar, seja num domingo ou feriado, na casa da minha irmã. Mas ela nunca me chamou assim, para visitá-la no final de uma tarde de sexta-feira.

Minha irmã mora com meu sobrinho, agora. O marido dela morreu dois anos atrás, quando voltava de um jogo de futebol com Gustavo. Já era tarde da noite, e meu cunhado acostumara-se a não parar em faróis vazios em ruas desertas. Havia sido assaltado três vezes e não queria que o filho presenciasse a quarta. Por azar, enquanto corria e ignorava o farol vermelho num cruzamento na Zona Sul, um esportivo o atingiu numa velocidade alta. Meu cunhado morreu na hora, prensado contra o capô do carro que o encontrou. Meu sobrinho, que estava no banco de trás, conseguiu sobreviver. Não perdeu nenhum membro nem teve nenhum ferimento externo grave. Mas a pressão em seu cérebro, quando sua cabeça bateu contra o banco da frente, fez com que uma quantidade incomum de sangue se acumulasse numa determinada parte do seu córtex. Como resultado, ele teve um AVC enquanto as equipes de bombeiros e paramédicos o levavam para o hospital. Os médicos foram rápidos, e trataram do acidente no cérebro de forma rápida e eficiente, porém não conseguiram evitar que algumas sequelas perdurassem.

Por mais de seis meses nossa família acompanhou, com apreensão e tristeza, enquanto Gustavo permanecia internado e em fase de recuperação. Quando saiu do hospital, sua mente e seu raciocínio pareciam os mesmos, mas seus movimentos e sua fala estavam muito limitados. O AVC afetou seu corpo de forma que ele teve que voltar para casa numa ambulância e permanecer deitado num leito de hospital no meio da sala durante semanas. Minha irmã sofreu bastante. Durante dias, ela permaneceu ao lado dele enquanto os médicos aguardavam para poder lhe dar alta, e tomou conta dele fervorosamente quando voltaram para casa. De início, ele não conseguia andar, falar, e nem se alimentar sem ajuda. Sozinha, ela cuidou, lavou, limpou e fez de tudo para que Gustavo tivesse sua vida normal de volta.

Os médicos diziam, entretanto, que a situação dele não era definitiva. Que com fisioterapia e fonoaudiologia ele poderia melhorar, e muito, e que a plasticidade do cérebro de um jovem de dezesseis anos era uma vantagem que nem todas as vítimas de AVC poderia se vangloriar. E assim foi. Duas vezes por semana ele ia para um instituto que ajuda crianças e adolescentes que sofreram danos cerebrais. Durante o primeiro ano os avanços foram esplêndidos. A cada semana ele aprendia um exercício novo e praticava novos movimentos. Aos poucos, ele saiu da cama e conseguiu se sentar numa cadeira. Depois de alguns meses, chegou até o ponto em que já conseguia se controlar e comer sozinho. Desde que o vi pela última vez, ele ainda não estava andando com equilíbrio, e precisava da ajuda de andadores e próteses nos pés para manter o passo, mas chorei de alegria ao vê-lo caminhando novamente. Sua melhora fez a alegria de toda a família e amigos. No ano passado, no dia do seu aniversário, todos se reuniram para parabenizá-lo pela recuperação, e foi mostrada uma sequência de fotos que narravam os estágios do seu progresso. Neste semestre, inclusive, ele voltou à escola, e imagino que vá terminar o ensino médio em dois anos.

Quando passei o crachá pela catraca da recepção, enquanto me dirigia para o elevador, retornei do meu devaneio. Chegando ao terceiro andar, me dirigi à minha sala. Todo o financeiro estava agitado. Era semana de fechamento e só restava ao setor de vendas comemorar o resultado. Deveria ser o mês em que vendemos mais livros em quatro anos. Uma grande virada depois de ficar tanto tempo acuados pela crise. Ao chegar na minha sala, ouço de uma auxiliar que a nota fiscal — aquela que atrasou meu almoço — fora recusada. Alguns descontos estavam errados e a editora simplesmente não aceitaria o valor final. Respirei fundo e me sentei. Eu teria que refazê-la. A diretora queria que aquela nota entrasse neste mês, e se não fosse aceita hoje, talvez o acerto ficasse para o mês que vem. Sendo eu a responsável pelo setor não podia deixar a tarefa com algum auxiliar, pois eu teria que responder caso qualquer um falhasse. Era o tipo de trabalho que eu mesma deveria concluir para garantir que nada desse errado.

Passei as últimas duas horas do meu horário refazendo a nota. Busquei livro por livro, tirei o extrato e examinei o desconto de cada um na época em que chegaram, coloquei os valores manualmente e calculei o valor final. Não era nada complicado, mas extremamente tedioso. Ao terminar, olhei para o relógio. Marcava seis e dezoito. Já devia ir embora. Emiti a nota e mandei por e-mail para a editora. Agora eles aceitariam.

Peguei minha bolsa e fui rapidamente até o estacionamento, deixando algumas pessoas no setor. Ao sair, como eu imaginei, uma forte chuva começou a cair. Uma chuva de verão típica. Do tipo que dura pouco, mas causa muitos estragos e congestionamentos. Dirigi até o final da Fradique Coutinho e entrei sem grandes problemas na Faria Lima. Um acidente parecia ter acontecido à altura da estação do metro. O trânsito parou e fui obrigada a esperar.

Observei o céu, ainda claro devido ao horário de verão, com acúmulos escuros de nuvens aqui e ali. A chuva começava a parar, e era possível ver os sinais de um arco-íris numa faixa entre duas massas de nuvens. Olhei por alguns segundos, tentando identificar as cores naquela tênue faixa colorida no céu. A imagem era bonita, pois os prédios comerciais, parecendo colunas de espelhos gigantes, refletiam as centenas de tons cinzentos do céu enquanto algumas cores fracas flutuavam no meio de tudo. Uma forte buzina, de um caminhão bem atrás de mim, me trouxe de volta à avenida, e avancei dois metros.

Lembrei de um livro que havia comprado na quarta feira, com a intenção de dá-lo de presente ao meu sobrinho. Olhei para o banco de trás e vi o pacote vermelho. Uma edição de colecionador do livro Cosmos, de Carl Sagan. Bem rara, pois poucos exemplares foram enviados à livraria. Lembrei, inevitavelmente, de meu sobrinho antes do acidente. Era um jovem inteligente e muito curioso. Quando criança, costumava perguntar sobre tudo, e chegava a se intrometer em assuntos que não devia ouvir, só para garantir que estava bem informado. Conforme foi crescendo, no final da adolescência, foi adquirindo um grande senso de independência. Minha irmã se preocupava, se recusava a soltar a coleira, achando que ele poderia se meter em confusões. Mas todos nós, incluindo o pai dele e eu, aconselhamos que ela devia soltá-lo. Tornara-se um rapaz esperto e muito ativo. Assim que entrou no ensino médio, declarou sua paixão pela física e matemática. Sonhava em ser astronauta e levava esse sonho a sério. Inclusive, já pesquisava sobre os cursos que existiam aqui e as chances de ele viajar para fora para estudar. Agora, com dezoito, ainda estava terminando o mesmo primeiro ano que havia deixado de lado para se tratar. Pelas poucas vezes que conversamos nos últimos meses, me pareceu manter o entusiasmo de melhorar e estudar para ser um astronauta.

De repente, enquanto o trânsito mantinha seu avanço homeopático, comecei a me questionar o que poderia ter acontecido. O que Aline estava precisando, para me ligar na tarde de uma sexta-feira para que eu a visitasse no mesmo dia?

Já eram sete e meia, o céu já estava escurecendo e eu saía do carro. A rua onde minha irmã morava era pacífica. O bairro era plano e bem planejado, perfeito para que ela pudesse sair com Gustavo na cadeira de rodas de vez em quando. Toquei a companhia e vi-a saindo da porta e vindo abrir o portão para me deixar entrar. Sorri para ela e recebi um comprimento pesaroso em troca. Com uma voz tensa, ela me cumprimentou com as sobrancelhas erguidas e os lábios contraídos. Depois de uma conversa boba sobre o tempo, ela me leva até a sala, bem depois da porta de entrada.

Sua casa não era muito grande, mas certamente era demais para duas pessoas. Nos sentamos no sofá e vi que ela já havia deixado um café separado para tomarmos. Deixei minha bolsa ao meu lado, com o pacote embrulhado numa sacola.

— Então, Aline. O que você precisa? — disse num tom amistoso que me surpreendeu, considerando o cansaço que o dia de trabalho havia me trazido.

Aline bebeu o café. Seus olhos estavam levemente vermelhos e as olheiras em volta denunciavam a falta de sono. Senti no momento uma extrema simpatia por ela e prometi a mim mesma que, qualquer fosse seu problema, eu a ajudaria na hora. Fosse dinheiro, ajuda para locomover o Gustavo para alguma consulta, qualquer coisa. Aline era uma mulher firme, séria, racional, e de todas as pessoas da família, ela era com quem eu simpatizava. Não era comum ela se abalar, e se algo tirou seu sono, devia ser importante.

— Bem, Denise, acho que a melhor forma de falar isso é sendo direta. — Ela bebeu mais um gole. Sua mão tremia levemente, e isso me deixou apreensiva. Ela pousou a xícara e abriu a boca para falar. — Sei que não parece, mas as coisas aqui não tem sido fáceis. — Ela parou novamente. Pelo jeito que pronunciava algumas palavras, parecia ter treinado um discurso para o momento. Claramente, o nervosismo a fez esquecer de suas falas e ela parecia improvisar como se não tivesse preparado nada. — A vida do Gustavo está bem diferente do que eu achei que estaria nesse momento. Ele está triste e não consegue ver alguma coisa boa no próprio futuro.

— Mas, como assim? — Interrompi inconscientemente. — É por causa da escola? Nós podemos mudar ele pra outra. Pode ser que ele se sinta deslocado ou alguma coisa assim.

— Não, não. Não tem a ver com isso — disse ela levantando a mão e buscando a xícara novamente. — Quer dizer, talvez tenha, mas não é só isso.

Um silêncio se pôs na conversa. Eu me mantive inclinada, em postura de questionamento, ponderando se ela queria que eu indagasse de outra forma. Seus olhos iam de cima para a direita, e a cada piscada pareciam mais lacrimejados. Seu olhar evitava o meu, como se não tivesse coragem de falar de tal assunto na minha frente.

— Você é a primeira, e possivelmente a única pessoa, com quem eu vou falar sobre isso. — Mais um gole. Seus dedos estavam brancos, sua mão pálida como a xícara que segurava. — Ele não está mais melhorando, entende? Como você sabe, a voz dele está praticamente perfeita, mas ele ainda não anda. Ainda precisa de ajuda para tomar banho, para se trocar e para se locomover em algumas partes da casa. Meu Deus, eu ainda tenho que ajudá-lo a se limpar no banheiro! — Nesse momento ela olhou para baixo, tentando esconder os olhos cheios de lágrimas. Senti um aperto no coração e reprimi um impulso instantâneo de abraçá-la, pois minha curiosidade me manteve parada, estática, enquanto minha irmã chorava no sofá oposto.

Encontrei coragem para falar. — Mas, a fisioterapia…

— Não vai — disse ela recuperando a voz. Ela ergueu a cabeça, resoluta. Usou as mangas longas para enxugar os olhos e se ergueu imponente com um cisne machucado e orgulhoso. — Os médicos dizem que ele chegou ao limite. Os danos do AVC foram fundo e existem algumas partes, alguns tecidos, que não são passíveis de recuperação. Ele vai continuar do jeito que está para o resto da vida, e se não fizer fisioterapia ele pode ficar pior de novo.

— Nossa. Isso é triste de saber. — Por um momento eu fiquei quieta, imaginando a dor que Aline sentia ao pronunciar essas palavras. Tentei imaginar o quanto deve ter sido difícil ouvir essa notícia do médico.

— Mas o problema não sou eu. Eu não me incomodo em cuidar dele. Mas e quando eu morrer? Quem tomará conta dele? E pior, para ele é um incômodo. Sinto a vergonha dele em receber cuidados que as "pessoas normais" não precisam. Mas, isso não é exatamente o porquê eu te chamei. — Mais um gole. A xícara já estava na metade. — A questão é: ele não aguenta mais. Nas últimas semanas ele tem ficado cabisbaixo, melancólico. A volta às aulas, por melhor que seja, mostrou para ele o quanto ele é diferente dos outros e o quanto ele está atrasado. Nesses últimos dias, ele não tem feito nada. Chega da escola em silêncio. Desce do transporte e, enquanto eu o ajudo a chegar até a porta da sala e pergunto como foi a aula, responde como se não quisesse falar comigo. Passa a tarde e a noite inteira em silêncio no quarto. Não usa o computador e não está lendo nada. Não está mais assistindo nenhum filme ou série. Está dormindo demais e nos finais de semana não faz praticamente nada. E o pior, ele não tem nem vontade de comer mais. As vezes ele janta metade de um prato. Em outros dias, ele não come nada, e só tem vontade de beber água. Não tem vontade de sair da cama e nem as respostas às minhas perguntas ele coloca um pouco de ânimo. — Ela parou. As últimas frases foram rápidas, sem muitas pausas. Estava sem fôlego e era claro que era a primeira vez que falava com alguém sobre isso. Um desabafo desolado e desesperado, e eu era a pioneira que o ouvia. Não sabia o que eu podia dizer como consolo. Imaginei que ela queria um conselho ou orientação, mas ela não parecia ter acabado. Senti que o ponto ainda não havia chegado. — Ele já sofre disso há mais de dois meses. Já levei ele ao psicólogo e ele já tomou alguns remédios. Mas depois de um tempo ele não quis mais tomá-los e eu não me sinto no direito de obrigá-lo.

Por um momento eu fiquei em silêncio, absorvendo todos esses detalhes que eu jamais tive noção. Meu sobrinho, além de ter chegado ao limite de sua recuperação, não aceitava o próprio estado. Havia sucumbido à depressão e à tortura interna e psicológica do silêncio e da estagnação, e parecia estar inconscientemente levando minha irmã junto. Meu coração se apertou, lembrando dos inúmeros dias nos últimos meses em que saí com amigos, todos inteiros e saudáveis, e bebemos e aproveitamos a vida o tanto quanto nossos trinta e poucos anos nos permitiam. Enquanto eu me divertia, aproveitava as festas pós-expediente, acordava com ressaca perguntando o quanto minha mente poderia aguentar mais, não fazia ideia do quanto outras pessoas, tão próximas quanto minha irmã e meu sobrinho, estavam sofrendo em silêncio, sem ninguém para consolá-los. Meu estômago se fechou, enquanto uma onda de vergonha e repulsa por mim mesma varriam meu corpo e conduziam meu olhar para o chão.

— Aline, me desculpe. Eu não sabia… — Por pior que a situação tivesse ficado, senti nos olhos dela que ainda não havia acabado.

— Não se preocupe. A culpa foi minha. — Sua voz se amenizara. A longa pausa e meu olhar aflito trouxeram-lhe calma. — Eu nunca contei a ninguém. Como você ficaria sabendo?

— Mas por quê? Talvez eu pudesse ter ajudado.

— Não adianta. Além do mais, todos ficaram tão contentes quando ele começou a melhorar. Ainda me lembro do dia em que ele voltou a dar curtos passos apoiado no andador. — Seus olhos se umedeceram-se novamente. A lembrança feliz, trazida num momento de tamanha tristeza, foram suficientes para carregarem-na para a angústia novamente. — Depois de tanto tempo torcendo, incentivando e chorando de alegria. Tudo se foi. Ele não vai melhorar mais e não quer aceitar isso. Não quer olhar nos olhos de quem torceu por ele e dizer que não dá mais. E o pior é que ele é o único condenado a sofrer isso. Não posso dividir esse peso, nem que eu pudesse viver para sempre e garantir que ele sempre tenha alguém que o ama cuidando dele.

Nesse momento ela parou. Ergueu a xícara e bebeu mais café, já frio. Estava relutante sobre o que devia falar. Se devia falar. Alguma coisa obscura e horrível orbitava seus pensamentos, e ela lutava contra o impulso de não revelar.

— Sabe, Denise? Não é fácil conviver com alguém nesse estado. Principalmente quando esse alguém é seu filho e você não pode fazer nada para ajudá-lo. — Ela pousou a xícara. O olhar, travado num ponto da janela atrás de mim, se demorou no infinito de sua mente abstrata por longos segundos. — Mas, o que me fez te chamar foi o que aconteceu na última segunda-feira. Ele já havia chegado da escola e foi se deitar. Notei que ele ficava parado olhando para o teto, sem dormir ou se levantar. Fui ao mercado no meio da tarde, e quando volto quase surto do coração ao ver o que ele estava fazendo.

— O quê? — Quis respeitar sua pausa, mas não conseguia controlar minha curiosidade. Já não suportava ouvir mais e queria que ela e jogasse tudo de uma vez.

— Ele estava na cozinha, com uma faca na mão e encarando a janela. Corri e perguntei o que estava acontecendo. Olhei no seu pescoço e vi uma marca, um risco. Ele tinha passado a faca ali. Se não terminou porque não conseguira ou porque eu havia chegado a tempo, eu não sei. Perguntei a ele o que estava fazendo, por que estava fazendo, mas ele não me respondia diretamente. Só me dava respostas vagas e sem explicação do que estava acontecera. — Ela parou novamente. Estava tentando não trazer as lágrimas junto com a lembrança. Falhava, claro, mas ainda era uma mulher forte e dura, e alternava entre um choro sem esperanças e suspiros fortes e curtos para recuperar o fôlego.

— E no final ele não te disse nada?

— Disse. Sim. Ontem, quando voltei para casa de uma consulta — estava com o coração na garganta de preocupação — o encontrei na cama e com mais marcas e cortes, dessa vez no ombro e na clavícula. Vi que ele estava mais receptivo e perguntei o motivo daquilo. — Seus olhos se fecharam de angústia. Aparentemente, aquele diálogo fora o mais triste e desalentador de sua vida. — Ele disse que não queria mais viver. Disse que não valia a pena continuar da forma que vivia e que sabia que o seu estado trazia tanta tristeza e apreensão a mim quanto a ele. Ele foi honesto e direto. Não parecia iludido e foi muito racional em tudo que falou. Isso… Isso que foi o pior. Eu não vi nenhuma falha no pensamento dele. Não consegui dizer nada em retorno. Tentei falar que ele podia se adaptar, encontrar uma nova forma de ver a vida, mas ele disse que não adiantava. Disse que a única coisa que o motivava durante a recuperação eram seus sonhos de voltar a ser o que era antes do acidente e seguir o sonho de estudar fora e batalhar pra ser um astronauta. Parece ridículo, eu sei. Mas aquele sonho movia ele, entende? Agora eu não tenho o que dizer. Eu percebi que estava condenada a passar o resto da vida a vigiá-lo constantemente, garantindo que sua tristeza nunca o forçasse a cometer um ato contra si mesmo.

— Mas, existem remédios para isso, não? Em casos extremos algumas pessoas são até internadas para a própria segurança. — Tentei soar racional e calma, enquanto por dentro eu estava destruída. Fluxos de pena, tristeza e arrependimento trombavam contra meu coração, em marés contínuas e impiedosas.

— Qual é, Denise? Essa não é a vida que ele merece. Não é a vida que eu queria pra ele e não sei se aguentaria vê-lo preso numa cela, dopado e controlado. Enquanto os anos se passassem, ele trocaria a vida depressiva e angustiante por uma sedada e enclausurada. — Ela baixou o tom. Voltou a si mesma enquanto tomava mais um gole do café gelado. — Ele me falou sobre isso. Nesse dia, ele disse que essa vida seria pior ainda. Que ele queria ter a liberdade de decidir o próprio destino. Que ele, e só ele, podia decidir se continuaria nesse sofrimento ou não.

— E o que você disse? — perguntei, vendo onde sua fala podia chegar.

— Eu não disse nada! Não tinha o que dizer. Eu convivo com ele diariamente, o ajudo a comer, tomar banho, andar até o portão e até o limpo quando ele se caga! Não faço ideia do quanto isso deve ser horrível para ele. E agora dizem que ele está condenado a passar por isso para sempre. O que ele deveria pensar? O que eu deveria dizer?

Estava chocada com o que acabara de ouvir. Por um lado não havia como discordar, mas cada parte do meu coração dizia que ela estava errada, que não era assim que se devia pensar nesse problema. Gustavo era um jovem que sofria muito, sim, mas nada justificaria tal ato. E sim, Aline sempre fora uma mulher lógica e pragmática, mas nunca imaginei que ela pudesse enxergar todos os assuntos desse jeito. Minutos atrás, ela estava comentando sobre como ele estava triste, agora falava, quase sem corar, praticamente endossando o pensamento suicida do filho. Me endireitei no sofá, pronta para tentar pôr um pouco de razão na cabeça dela.

— Acho que você está louca! Não é assim que deve encarar isso. Você tem que protegê-lo, dar esperanças a ele. Diga qualquer coisa, mas não deixe que ele pense assim.

— Denise, você se lembra quando, anos atrás, nós conversávamos sobre o direito à eutanásia? Lembra do que discutíamos?

— Sim, lembro, mas isso não vem ao caso. É uma situação totalmente diferente.

— Não, não é. Aí que você se engana e é onde eu estava me enganando também. Sabe, essa conversa com ele, por mais dolorosa e cruel, foi franca e reveladora. Por meses, ele nunca se abriu comigo e, de repente, ele fala o que eu nunca imaginei que ouviria. Eu compreendi, Denise. Ele está num estado que, para ele, não é nada diferente do que ficar numa cama de um hospital esperando a morte. Qual o direito que eu tenho de interferir? Você acha que eu não gostaria que ele estivesse feliz, saltando e indo de lá para cá, fazendo planos? Claro que sim, mas a realidade é bem diferente. Eu sei, porque eu a vivo todo dia.

Eu não sabia o que dizer  nem o que pensar. Quis ver Gustavo na hora. Abraçá-lo e beijá-lo. Implorar para que achasse um objetivo, um sonho. Mas sabia que eu não poderia obrigá-lo. Como dar um sentido para a vida aos olhos de quem não vê motivo para vivê-la? Ainda mais quando a vida joga sobre ele uma forte amostra do quão injusto o mundo poderia ser. Eu sabia, por já ter trazido certos livros a seus pedidos, que ele era ateu, e não acreditava na vida após a morte. Isso me mostrava que, se tudo o que minha irmã disse realmente representasse seu pensamento, ele já pensara que não teria volta. Não haveria outra chance. Ele já aceitou a derrota e pediu para sair do jogo. Nesse momento, ao entender o que Aline havia entendido poucos dias antes, caí em lágrimas. Chorei, como não chorava há meses. Minha irmã veio ao meu lado, me abraçou e apoiou minha cabeça em seu ombro. Agora eu entendia o porquê dela não chorar enquanto me proferia sua "sentença" sobre o filho. Seus olhos inchados, as olheiras sob as pálpebras, as mãos trêmulas e os lábios vermelhos. Ela não parara de chorar nos últimos dois dias, desde que entendeu o que o filho realmente queria. Por fim, quando consegui reunir forças para falar alguma coisa, disse:

— Posso vê-lo? Falar com ele?

Seu olhar sem esperanças me acompanhou por alguns segundos. Por um tempo ela ponderou, imaginando que eu poderia agitá-lo ou tentar brigar com ele. Mas ao perceber que a minha dor se igualava à dela, levantou-se e pediu que eu esperasse. Aline atravessou a sala e caminhou pelo longo corredor no final do cômodo. Ouvi uma porta sendo batida e um leve sussurro ecoar pelas paredes beges. Meu coração tremeu, ao olhar para o armário ao lado e ver fotos do meu sobrinho novo. Tão jovem, inocente e cheio de esperanças e sonhos. Por que merecia esse destino? Por que algo tão horrível foi acontecer com ele, deixá-lo incapaz de perseguir seus objetivos de forma tão cruel e abrupta? Conheço tantas pessoas — e às vezes me incluiria nesse grupo — que têm tudo, saúde, juventude e objetivos realizados, e nada fazem para aproveitar a dádiva disso. Apenas reclamam, querem mais, nunca imaginam a sorte que tem em comparação aos não privilegiados.

Meu devaneio foi interrompido quando Aline voltou do corredor. Seu semblante era calmo e triste, e imaginei que não era muito díspar do meu. Ela fez um leve gesto com a cabeça, sinalizando para que eu fosse até o quarto de Gustavo. Levantei-me. Senti as pernas fracas e bambas. Muita força esvaíra-se desde que eu me sentei no sofá, pensando que poderia ser uma conversa descomplicada. Por um momento eu hesitei. Não queria encarar meu sobrinho. Não queria olhar nos seus olhos ao saber o que ele decidira fazer, e que eu não possuía nada a oferecer de alívio ou conforto. Por fim, ergui minha cabeça e olhei no rosto de Aline. Se ela conseguiu, eu consigo. Ela era a mãe dele. Não sou capaz de imaginar a dor e o sofrimento que ela passou ao ouvir do filho posições tão flagelantes. Ela não possuía o direito de fugir e eu deveria me espelhar nela nesse sentido. Coloquei na minha mente o que minha Aline me ensinou na adolescência: nada na vida pode ser resolvido, ou definido, sem uma abordagem objetiva e direta. Caminhei pela sala, com passos cautelosos e lentos. Cheguei ao corredor e vi, de longe, a terceira porta semiaberta. Andei com rapidez e empurrei de leve a grossa porta de madeira.

Gustavo estava em sua cama, deitado numa posição sonolenta — ou talvez deprimida. Parecia que acabara de acordar, ao mesmo tempo em que estava pronto para dormir. O quarto estava abafado, porém uma nota gélida no ar parado congelou meu pulmão, conforme eu respirava fundo e tentava evitar que meus olhos se enchessem de lágrimas. O quarto era espaçoso. Em um lado, um grande guarda-roupa cobria toda a face de uma parede. No outro, a cama alta sustentava o frágil corpo do meu sobrinho. Um andador repousava ao lado direito da cama, enquanto um pequeno banco com rodas estava à disposição ao lado esquerdo. A luz estava apagada, e apenas a janela aberta, porém com a cortina fechada, iluminava o quarto num tom melancolicamente branco. Tremi ao olhar em seus olhos. Seu rosto, magro, mostrava com clareza seu estado de espírito, revelava, com uma proporção terrível, sua disposição de não viver. Manchas escuras e profundas marcavam a região em volta dos olhos, fazendo-os parecer maiores do que realmente eram. Seus lábios estavam finos e secos. O cabelo, ensebado e desgrenhado. O que mais me surpreendeu, entretanto, não foi o abatimento em seu semblante, ou o ar pesado e soturno do quarto, e sim que, apesar de todos esses fatores, sua expressão calma e a firmeza em seu olhar derrubariam qualquer diagnóstico de delírio ou de uma depressão paranoica. Aparentemente, julgando o rápido desvio do se olhar ao encontrar meu rosto, ele não queria me ver, mas parecia minimamente disposto a tentar esconder isso.

Aproximei-me da cama e examinei seu corpo que, mesmo escondido em cobertores e lençóis, demonstrava uma magreza excessiva, parecia uma sombra distante do menino altivo e animado que já fora. Chamei-o pelo nome, atraindo seu olhar para o meu, e percebi, logo de vista, que uma parte dele já morrera, de fato. Faltava uma luz, um brilho, aquele lampejo de alegria e excitação que ele sempre demonstrava quando eu chegava. Respirei fundo, novamente, tentando disfarçar meu impulso de chorar.

— Como você está?

— Mais ou menos — disse ele, virando a cabeça para a janela. Depois de me encarar por alguns segundos, notei o quê inquisidor e preocupado em meus olhos. Ao se virar para a luz, vi um rosto completamente pálido, como uma rígida e triste estátua de mármore que reflete, profunda e exasperadamente, sobre os fúteis motivos da existência. Seus olhos, abertos e firmes, encaravam a janela e seus cabelos ondulavam com a fraca brisa que o clima pós-tempestade trazia. Sem dizer nada, entrego-lhe o presente que havia comprado para ele. Ele pega-o com suas mãos finas e frágeis, olha para o livro, impassível, e suspira ao colocá-lo no lado da cama. Ainda lutava contra minha angústia, e não sabia como reagir à falta de ânimo em seus gestos.

— Escute — disse, enquanto imaginava minhas opções para iniciar um assunto. Querendo evitar um surto de choro descontrolado, resolvi tentar ser objetiva. — Sua mãe me contou algumas coisas. Coisas que você tem feito. Coisas que você pensa em fazer. Olhe, não quero te obrigar a nada mas… Eu estou aqui por você, assim como a sua mãe.

Ele se virou para mim. Uma fraca onda, uma marola sutil de emoção, percorreu seu rosto, enquanto sua boca abria na tentativa de expressar um sentimento complicado demais para uma simples frase. Eu olhei para o lado, não suportando encarar tal sentimento. Vejo na cabeceira seu videogame e sua TV. Ambos sujos e cobertos de poeira. Ouço um suspiro e viro-me para ele.

— Eu sei que as coisas não estão boas agora — disse, insistindo em ganhar a atenção daqueles frágeis olhos castanhos. — Mas, às vezes, temos que esperar para que algo dê certo. Às vezes, as coisas não são do jeito que imaginamos, mas temos que continuar tentando.

— Minha mãe contou o que os médicos falaram? — disse ele. Sua voz era ríspida e arranhada pela fraca força dos pulmões.

— Sim. E eu ainda não…

— Então — disse ele olhando para baixo. Por um momento percebi que ele inspirava com a intenção de explicar algo, mas desistiu antes que seu peito se enchesse. Virou a cabeça para a janela, novamente.

Nesse momento, senti uma pontada no coração. Algo em seu gesto seco e voz fria me trouxeram à realidade que minha irmã tentara me alertar. Não havia esperança para ele. Claro, não estava condenado a um estado vegetativo. Ainda podia se movimentar e, se ele se conformasse, poderia tentar viver uma vida normal. Quantos exemplos, de celebridades a cientistas, não vemos superando tremendas dificuldades físicas e, apesar de tudo, conseguindo vencer os desafios impostos por suas limitações. O problema era, justamente, que ele não conseguiria se conformar. Como convencer uma pessoa independente, jovem, idealista e sonhadora, a aceitar uma vida de ajudas, favores, necessitando de sua mãe ou de uma futura cuidadora. Eu não sabia, e muito menos minha irmã ou qualquer psicóloga, qual o preço que meu sobrinho pagava por ter os sonhos destruídos.

Então, pensei no que havia dito a Aline pouco antes. E se ele fosse levado a um psiquiatra e fossem administrados alguns medicamentos à força? Com certeza, seu estado de espírito mudaria, certamente seu humor melhoraria e as ideias de suicídio e um niilismo arrebatador o abandonariam para sempre — pelo menos, enquanto a droga fizesse efeito. Nesse momento, ao pensar sobre o nível de consciência e autonomia que seu olhar me passava, eu percebi que essa não era a saída certa. Qual o propósito de obrigá-lo a viver uma vida medicada, sedada, dopada, controlada por química artificial, enquanto seu verdadeiro eu grita de sofrimento e desesperança? Não, aquela vida não era certa, não para ele. Eu sofreria mais em ver uma felicidade fabricada, um comodismo controlado, uma conformidade milimetricamente induzida, do que seu atual estado. Nesse momento, e acredito que tenha sido minha última revelação do dia, percebi que não havia o que fazer. A sentença já foi dada, todos os sonhos dele foram destruídos, e ele não se sente capaz de construir novos. Qual a diferença disso e de ficar numa fila de uma UTI, simplesmente esperando que o sinal do coração pare? Quando tais condições foram impostas tão injustamente, não havia o que argumentar ou reclamar. Ou se aceita ou não. E tendo o acaso, esse maléfico jogo de dados do universo, decidido que Gustavo deveria passar o resto da vida de uma forma que ele jamais se alegraria, ele, e mais ninguém, detinha o total direito de recusar tais termos, de cessar sua existência e apelar para seu único recurso, a única coisa que poderia decidir sobre si mesmo.

Então, num gesto não planejado e totalmente impulsionada pela força brutal de minha realização, eu me inclinei e beijei-o na testa. Olhei-o nos olhos e disse:

— Eu te entendo. — Peguei em sua mão. Sua pele fria tocou na minha e senti um arrepio ao contato com sua palma ressecada. — Seja o que for, eu estarei do seu lado. Não importa o que você decida, saiba que eu te amo.

Seus olhos brilharam, e os músculos em volta das pálpebras se contraíram naquilo que parecia ser uma fraca e franca expressão de alívio. Sorrio de volta, entendendo que finalmente consegui tocar em seu coração. Faço que vou me levantar, quando sinto sua mão em meu braço. Ele me segura firmemente.

— Sabe, tia. Dois dias atrás eu tive um sonho. Vi uma criança saltando e brincando num jardim. Por algum motivo, ela entrou na casa e foi ver um programa de TV. Minha memória está embaçada, mas me lembro que ela tropeçou em algum lugar e acabou deitada em uma cama num quarto grande e branco, gemendo de dor. A porta do quarto se abre, e ela sorri achando que é o pai. Mas um ser estranho, um homem mascarado, com manchas de sangue e tesouras de jardineiro no lugar das mãos, entra correndo e começa a espetá-la. Ele ri enquanto ela chora, sem poder fazer nada enquanto as pontadas não paravam. Isso continuou por um tempo e acho que eu até gritei durante o sonho. No final, antes de acordar, eu só me lembrava que a criança estava parada, estática, enquanto a figura mascarada espetava com mais força o corpinho dela. Nessa hora, eu acordei, e senti um frio horrível. Desde então, eu não consigo parar de pensar na criança, parada e impotente, enquanto era espetada pelas tesouras cheias de sangue.

Nesse momento eu olhei fundo em seus olhos. Escutei com assombro a descrição de seu sonho e me perturbei com as imagens que ele invocou em minha mente. O que aquilo queria dizer? Seria esse o momento em que ele, assim como eu poucos minutos antes, entendera a inevitabilidade da sua situação? Por fim, com os olhos lacrimejados ele disse:

— Eu não quero sofrer assim.

Nesse momento, fazendo força para me conter e não demonstrar minha fraqueza emocional, abaixei-me e beijei seu rosto novamente. A mesma expressão calorosa, confiante e suave, preencheu seu rosto. Nesse momento, eu me levantei, virei-me e caminhei para a porta. Ao alcançar o arco da entrada, uma dúvida atinge meu coração, tal qual uma flecha disparada à distância que, desviada pelo vento, acerta um alvo aleatório. Viro-me para ele e inclino minha cabeça, tentando suavizar o tom da minha pergunta. Eu sempre soube, desde que ele começou a se interessar por livros científicos e me indicar alguns documentários, mas agora eu precisava ter certeza. Senão, talvez jamais me sentisse aliviada.

— Me diga Gustavo, você acredita em Deus ou em alguma coisa depois dessa vida?

Por um momento ele parou. Deve ter duvidado que eu estava falando sério. Assisti, com um misto de pesar e alegria, enquanto seus olhos se semicerravam e sua boca torcia levemente, transformando-se num sorriso inesperado e genuíno. Vejo um fraco brilho em seus olhos, enquanto responde num tom de indignação e ironia:

— Eu leio Sagan, tia. E se eu acreditasse nada disso seria difícil.

Eu sorri. Meu olhos se encheram de lágrimas e meu coração foi tomado de alívio e uma sensação reconfortante. No momento, não entendi exatamente, mas enquanto saía do quarto e caminhava pelo corredor escuro, percebi o quanto essa resposta me deixou tranquila. Por pior que tudo estivesse, por mais lamentável que fosse seu estado e por mais baixas que fossem suas expectativas, Gustavo não se agarrou ao sobrenatural. Permanecera racional e lógico. Entendia a própria situação e sabia, mais do que ninguém quais as consequências do que pensava e queria fazer. Ele entendia que essa vida era a única que teria, que não havia coisa alguma como uma compensação posterior pelos nossos sofrimentos. Ele sabia que não teria outra chance, e mesmo assim escolheu não continuar. A partir desse momento, enquanto chegava na sala e olhava minha irmã nos olhos, entendi o que parecia ser justo para mim.

Gustavo era um jovem decidido e inteligente, independente e muito racional. Cabia a mim apenas respeitar sua decisão, considerando que ele a tomava de mente sã. Não merecia ser dopado e forçado a aceitar uma existência infeliz, nem ser trancafiado numa sala de hospital, sofrendo ainda mais com sua condição. Apenas ele tinha o direito de decidir o que lhe era melhor, e eu senti que deveria apoiá-lo, mesmo não concordando.

Troquei algumas palavras com Aline pouco antes de ir embora. Disse-lhe rapidamente que eu respeitava a sua opinião, que compreendia e apoiava a decisão de Gustavo, por pior que isso me fizesse sentir. Ela chorou, ao se aliviar com minha aprovação. Entendi, através de algumas frases confusas e desconexas, que ela planejava sair para comprar algo na padaria à noite e avisaria o filho. Nesse momento, ela deixaria o sinal, mesmo que indireto, para que ele fizesse o que quisesse fazer. Uma caixa de remédios fortes seriam deixados na mesa da cozinha, acidentalmente. Não me demorei muito. Havia chorado bastante e não me restavam forças. Fui até o carro e dirigi, quase num modo automático, para minha casa na outra zona da cidade. Enquanto parava nos faróis e cruzamentos, questionei se um dia me arrependeria do que fiz, se não deveria ter insistido, se mais algumas palavras o teriam feito mudar de ideia; ou, talvez, se eu deveria convencer Aline a interná-lo, drogá-lo, e evitar que fizesse qualquer mal contra si mesmo. No fim, ao perceber o quão inútil era essa linha de pensamento, resolvi ignorar essas reflexões. Não havia por que adiantar o futuro nem ficar imaginando como seria mudar de opinião.

Enquanto dirigia, já perto da minha casa, meu celular toca e ouço a voz de uma menina do financeiro. Uma jovem esforçada, que entrava à tarde devido à faculdade e era a última a sair do escritório. Ela me disse que aquela nota — aquela nota infame — havia sido recusada novamente. Pouco antes das sete da noite, a editora mandou um e-mail apontando valores errados e dando um prazo até segunda, ao meio-dia, para a correção. Suspirei, entendendo que a jovem não era culpada de nada, e disse polidamente para que deixasse os documentos na minha mesa e eu trataria daquilo assim que chegasse na segunda de manhã. Eu estava tão cansada, tão exausta emocionalmente, que não consegui nem me irritar com essa notícia. Entender a mente de meu sobrinho, suas nuances e perspectivas, me deixaram mais aberta a situações mundanamente desagradáveis, como se nada pudesse ser tão ruim, tão angustiante e triste quanto o que acabara de presenciar. No fim, não vi motivo para me preocupar com aquela nota. Era um problema para o futuro, assim como a minha consciência quanto ao que concordei com meu sobrinho.

Minutos depois, eu cheguei em casa. Depois de comer algo leve e tomar um rápido banho, deito-me no sofá e dou uma conferida nas notícias dos jornais online. Fico assustada com o resultado de algumas eleições, os rumos de certos conflitos, as dificuldades que tantos inocentes estão passando em contraste com a vida média de um morador de um país de primeiro mundo. Pensando bem, talvez não dê para esperar muito desse mundo. Talvez deixar a sociedade não seja lá uma ideia tão péssima assim.

Enquanto lia artigos e tomava nota de alguns eventos, coloquei para tocar, em meu aplicativo no notebook, uma música aleatória. Selecionei a categoria de "Música Clássica", e a lista randômica me trouxe o Prelude Op.3 No.2, de Rachmaninoff. As notas pesadas e profundas de um poderoso piano de cauda invadem meus tímpanos, enquanto provocam no meu cérebro reações químicas que instigam sentimentos de tristeza e luto. Pouco antes de chegar ao ápice da peça, onde o pianista se exalta e suas emoções invadem a apresentação, de forma tão inevitável quanto um dançarino faz ao saltar e girar, o celular toca abruptamente. Pego o aparelho, olho para o nome na chamada, e vejo que minha irmã está me ligando. Atendo, tensa, com uma voz forçadamente calma e sílabas carregadas de uma relutância exasperadora. Ouço, do outro lado da linha, uma série de suspiros, uma sequência tristonha de leves expirações e gemidos de sofrimento. Era minha irmã, e estava chorando.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Diego Vasconcelos. Humanista secular, amante da literatura e aspirante a escritor. Nasceu em 1995, em São Paulo, e mora na cidade deste então, mas considera a possibilidade de mudar-se para a Nova Zelândia. Trabalha numa livraria e não fica um mês sem levar dois livros para casa, no mínimo. Adepto do racionalismo e do estoicismo, segue um estilo de vida equilibrado e minimalista. Gosta de temas que vão desde a filosofia e política até ficção científica e fantasia. Pretende montar uma biblioteca própria e publicar muitos livros.