TALVEZ EU TE ODEIE — Um conto de Natal

 

 

Pai, resolvi deixar por escrito porque na verdade não teria coragem de lhe dizer nada disso. Até porque, tudo o que tenho a dizer não cairia bem em período natalino, acabaria em mais uma discussão nossa.

Um dia na casa de tio Glauco você bebeu demais e soltou sua culpa, dizendo que falhou quando se separou de mamãe e me privou de ter um lar direito, uma família normal. Aquilo doeu, pai, doeu sim. Quando, aos quatro anos, o pai vai prum lado, a mãe pra outro com você escanchada na cintura, e você vê o pai ficando pra trás, dói sim. Um dia, na aula de química, eu descobri algo parecido. Dois elementos incompatíveis dando uma reação. É meio isso. A gente é feita de duas substâncias que de repente não se afinam e você é rachada ao meio de uma hora pra outra. Foi como me senti. Os dois elementos que me constituíam não dão mais liga.

Mas, pai, isso passou, já faz tanto tempo que nem dói mais e posso dizer que as dores se revezam num trabalho de equipe, de modo que nunca nos abandonam. Eu cresci e aprendi a ver você em raros fins de semana. Você chegava no meio do almoço e já na segunda feira saía para a redação do jornal e logo na terça viajava outra vez pra cobrir incidentes estúpidos de bombas e greves pelo mundo. Dentro de mim, uma bomba de amor se apagava aos poucos. Foi assim que aprendi que nossa história era feita de passagens rápidas.

Agora você chega pra mais um Natal e pensa que vai me levar pro meio dos tios, onde todos vão lhe dirigir perguntas caprichadas, entre as quais você me atiraria um beijo de longe. E não pense que nunca gostei disso, meu pai. Ao contrário, eu ficava cheia de orgulho, mas é que chega uma hora em que a gente cansa de viver de teasers, cansa de esperar o filme na íntegra. Eu quis viver seus ensinamentos, lhe mostrar que aprendi direitinho todo aquele intensivão de instruções que a vida inteira você me passou. Você nunca me ensinou a andar de bicicleta; eu já tinha oito anos quando você soube disso e me encontrou na pracinha com minhas primas. No dia em que aprendi a andar, milhões de crianças tentavam também, todas contavam com a mão do pai segurando o selim. Eu assistia àquilo e sentia uma dor fina danada. Mas aí, eu me equilibrei e consegui pedalar e minha alegria por isso foi maior; e de novo esqueci sua ausência.

Agora é Natal mais uma vez e eu já há muito, claro, desvendei a lenda do Papai Noel, e aos poucos fui vendo que a lenda é você, pai. Antes, eu esperava os dois, e em muitos Natais, só o bom velhinho deu sinal. Dessa vez vai ser diferente, pai, não estou no seu aguardo e não sei se volto tão cedo porque de fato aprendi a fazer concessões a vida inteira, mas também, pro bem e pro mal, aprendi a me esgueirar pelas sombras e remansos, fugir de conflitos e deixar que os silêncios imperassem. E sendo assim, prefiro não planejar retorno, não quero sermões nem saias justas entre a gente. Claro que este Natal não vai ser comum e cheio de risadas, mas isso tudo precisava acontecer. É como me sinto viva; saio da condição de cenário e finalmente me transformo em sujeito; paro de morrer a todo momento pra finalmente sentir medo da morte; às vezes essa é a condição necessária pra que de uma vez por todas sejamos alguém.

Não quero que se assuste com nada disso, pai, nem mesmo em saber que talvez eu te odeie, porque não há contradição entre dizer isso e dizer que te amo.

Entrei aqui em seu apartamento pra deixar essa carta. Espero que dentro do possível receba-a bem e saiba que jamais vou esquecer seu sorriso, mas não vou perdoar suas faltas, embora eu saiba que tudo o que não vivemos é fruto de suas limitações; é como você conseguiu ser.

Ontem à noite, passei na casa da minha avó, o balancinho da árvore estava quebrado. Entendi que era mesmo a hora de eu partir.

Não seria honesto escrever tudo isso e lhe omitir que além de mim, também não vai encontrar o tio Glauco. Ele fugiu comigo.

Pai, Feliz Natal; não sei bem o que isso quer dizer, mas Feliz Natal.

 

 

 

 

 

HONDA FIT PRATA

 

 

"Acho que preciso de silêncio, recuar um pouco, ficar no meu cantinho comigo mesma. Isso significa nos vermos menos, talvez". Foi assim que ela me disse 'enjoei de você'. Não queria me perder de vista, dizia gostar de nossas conversas. Acho que eu trazia um toque de maciez à sua rotina de Ciências Exatas. Mas apesar disso ser um elogio ou quase, não dei a mínima pro que ela falou; o que tava valendo era o pedido dela; ficar isolada, menos contato.

Paramos de nos ver, simples assim.  Ela enviava um bom dia logo cedo pelo chat, e lá pras dez, onze da manhã, jogava mais um ossinho pra eu roer; comentava qualquer coisa boba. Entre um cliente e outro que eu visitasse, ficava observando o celular pra ver se ela não falava algo sobre nos vermos. E assim eu seguia pelas avenidas da cidade. Não bastassem as placas de limite de velocidade, semáforos, faixas de pedestres sem semáforos, pedestres fora da faixa querendo atravessar onde lhes deu vontade, agora algo mais pra eu atentar. Ficava correndo os olhos nos carros, pelos três retrovisores procurando ela. Todo Honda Fit prata era ela se aproximando, eu pensava. Brotavam do asfalto; a cada dez minutos, dois Honda Fit prata cruzavam meus olhos.

"Parece que não dormiu bem", foi o que disse um dos clientes que eu visitava. Mas não era só dormir mal; era também comer mal; e se não vinha comendo bem, bebia mal, duas cervejas me derrubavam e eu seguia assim, meio zumbi na manhã seguinte.

O problema não é viciar numa mulher; você se enterra nela e vai vivendo assim feito um verme, fugindo de tudo, porque só ela lhe interessa e isso parece o melhor dos mundos. A questão é quando ela quer descartar você enquanto finge que aquilo é só uma fase. Aí você, que já está enterrado, fica a meio passo de se tornar um cadáver. Vai vendo que aquilo que ela chamou de fase começa a durar demais; é quando você vê as coisas como de fato estão: você a perdeu. Falta sono, fome, e uma nuvem cinza lhe serve de chapéu, onde quer que vá. Em poucas palavras, você tá na merda.

Comigo foi assim. Depois de uma semana, comecei a cair na real e só me restou uma porcaria de esperança de encontrá-la no trânsito. Quem sabe ela não fraquejasse ao me ver e lembrasse de nossas maratonas de sexo. Nesse sentido, tava fazendo minha parte; ficava atento a todo Honda Fit prata da cidade. Não pensem que só vocês me acham um idiota; eu também me achava, mas, fazer o quê?

Duas horas da madrugada, eu acordava e olhava o celular, alguma chamada perdida, quem sabe. Eu era capaz até de retornar uma chamada àquela hora. Até iria ao encontro dela, se ela estalasse o dedo pra mim, mas isso nunca veio. De vez em quando, inventava de dirigir à noite. Poucos carros pelas ruas; só os mortos se arriscavam. Numa noite daquelas, olhei os rostos nas esquinas; as meninas eram mais felizes; a lanchonete que nunca fecha estava cheia delas. Parei lá pra comer algo. Duas putinhas comiam seus sanduíches antes do próximo cliente. Olhavam pra mim e pro meu carro estacionado. Entre uma dentada e um gole no guaraná, dava até pra olhar pra mim e me achar um cara com a vida ganha, mas a verdade é que não dá pra saber de nada olhando pro carrão na porta da lanchonete; ao contrário, ele é quase sempre uma forma de me autoindenizar pelo desnorteio que vivo, que vivemos, tendo ou não levado um fora. A fome não veio; tomei duas cervejas e voltei implodido pra tentar dormir.

Os dez primeiros dias se foram e agora eu torcia apenas pra esquecê-la. Não encarava mais o bom dia via chat como uma possiblidade de voltarmos. Com o tempo fui conseguindo reagir bem aos contatos dela. Não posso dizer que parei de ver o Honda Fit prata pela cidade, estaria mentindo pra vocês. Saía à noite e os via tanto quanto de dia. Aí torcia ao contrário, pra que não fosse ela porque, bem, sabemos porque.

Na verdade, estava indo tão bem de quinze dias pra frente que poderia jurar que se a encontrasse, eu a trataria como uma velha amiga. Mas ninguém é ingênuo o suficiente que num passe de mágica não possa se tornar um superingênuo.

Há quem diga que sua parceira não busca em você um príncipe encantado, mas o conforto e o sossego que a senilidade sugere. Uma coreografia, que acena pra terminar justo no ponto onde começou na pista de apresentação. A gente se perde do pai, da mãe na segunda infância. O resto da vida não serve pra mais nada, senão pra tentar encontrá-los, em cada canto do salão de dança.

Será que não veem que tudo o que fazemos na vida diz respeito a isso? O carro, o vinho, a legitimação, o sexo matinal, o sol que no dia seguinte já não é o mesmo sem o sexo matinal, a xícara de café forte e cheio de requisitos, o tira-gosto vagabundo, o amendoim pechinchado pra provar que entre você e o infeliz pode haver diálogo, as historinhas de esperteza, os tapinhas nas costas, os amigos mais velhos que você herdou do pai, a moto pros fins de semana, o roupão pra ser usado no verão infernal que o aguarda, as promoções de jeans na entressafra das estações, o programa pra baixar filmes mais rápido, as fotos que publicou na rede mostrando suas férias mais que justas, as dores nas costas que o aproximam da morte, assim como a insônia, assim como as hemorroidas, assim como uma cena feito aquela numa tarde inocente de domingo. Tudo denuncia nossa rendição completa a essa orfandade. E no caso dela tava claro, ela queria o conforto do pai, essa coisa de fechar a coreografia do jeito que foi aberta.

A cidade já tava mergulhada nessa moda de feirinha pra gente antenada. Não havia oxigênio ali, a humanidade inteira queria ser vista entre as barracas. Consegui estacionar com muito custo a 500 metros da praça. Pensava em comer algo, tomar uma cervejinha e ir embora logo, mas a verdade é que não deu tempo pra nada. Tudo veio à mente, o sexo, as piadas, os porres que tomamos juntos e com finèsse ensaiada, as relações pregressas que ela relatou e que engoli em seco, aquela viagem pro litoral norte que nunca fizemos; tudo. Tudo veio como um filme quando a avistei ali, dividindo um sorvete com aquele senhor de cabeça branca.

Acho que vocês entendem agora o que quero dizer com coreografia terminando onde começou. Estavam lá, dois cisnes de rosto colado lambendo o sorvetinho. Ela mal sabia que eu os via a poucos metros, tava ceguinha de amor. Não sei porque exatamente e de forma tão brusca ela trocou essa coisa de 'feitos um pro outro' ― e todos esses mimos que diziam da gente ― pelo romancezinho com o velho; mas deu pra notar que ela tava feliz e confortável, se beijavam como quem ama, riam e riam de tudo. Era até bonito de ver, se não doesse tanto.

Mais estúpido do que isso de ver o Honda Fit prata por todo canto foi seguir assim. Não sei o que eu diria se finalmente a visse no trânsito. Acho que diria que a vi por aí, diria com olhar cínico, pra me proteger e pra não mostrar que sofria os infernos. Segui vendo o carro dela como antes, maldição, um mês, dois.

Mas tudo passa, tudo melhora ou piora, a gente nunca sabe; e numa feirinha daquelas que acabei passando a frequentar foi que conheci outra mulher, a melhor dos últimos tempos, a definitiva, como todas são enquanto elas nos amam. Dizia já me conhecer de longe, e por isso passei a ouvir toda aquela baboseira reeditada; 'foram feitos um pro outro, sem dúvida'. Um dia, já vivíamos o auge de tudo, ela me apresentou como 'um amigo'; aquilo foi como um chute entre as pernas. Foi aí que entendi tudo e deixei de ver pelas ruas o Honda Fit prata; exatamente depois do que ouvi.

Era uma segunda-feira ensolarada, as ruas borbulhavam de gente desde cedo quando um Peugeot 208 branco passou a povoar meus olhos e os três retrovisores.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Dênisson Padilha Filho (1971) é baiano. Escritor e roteirista de audiovisual. É mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. Autor de Trilogia do asfalto (Editora P55, 2016, contos). O herói está de folga (Kalango, 2014, contos), Menelau e os homens (Casarão do Verbo, 2012, contos e novelas), Carmina e os vaqueiros do pequi (2003, romance) e Aboios celestes (1999, contos). Participou de algumas antologias e tem textos publicados em diversas revistas literárias. Foi vencedor do Prêmio Internacional Cataratas de Contos- 2015. Mantém a coluna Conto Afora em seu blogue.