PIETÀ

 

 

Não sabia quando começara a verter lágrimas grossas, compridas, pesadas. Sabia que de seus olhos antigos brotava um líquido contínuo e doce, e, às vezes, salgado como se fosse água do mar. Chorava ou destilava dor? Se parasse esse fluxo, explodiria ou incharia como um balão de gás e se perderia entre as nuvens num voo sem rumo? Não sabia dizer e por isso continuava sua missão: chorar e secar até que o algodão ensopasse e a vida lhe desse uma trégua. Pensava ser impossível ter tanta água em seu corpo esmirrado. Seria um desígnio de Deus condensar em seus olhos essa água sem fim? Deveria pagar alguma promessa esquecida? Reparar algum erro ancestral? Um crime, traição, algo inominável? Por que chorava a mulher? Nenhum parto a fizera chorar assim, algum aborto teria rasgado sua alma a ponto de chorar a vida arrancada? Ou um amor afogado na taça egoísta de um orgasmo solitário? Mentiras são lavadas na água corrente? Um passo mal dado, um decote mais ousado, alguma rasura no caderno, algum deslize na cozinha? Não sabia dizer, o choro não era visto por mais ninguém além dela. Saía pelas ruas, os conhecidos a cumprimentavam normalmente. Aos amigos, ao padre não tinha coragem de confessar. Era uma coisa tão sua! Travesseiro, colchão, lençol, esses eram testemunhas do choro noturno. Um filho poderia entendê-la, mas eles estavam longe... Um marido, um amante, mas eles seguiram outro caminho quando o viço secou no seu rosto... Seu rosto seco no espelho. Ali ela via as lágrimas escorrerem, ali ela lavava o choro e secava o caminho sulcado na pele flácida. No espelho, procurava respostas e engolia as perguntas confundidas com o choro. Por quê? No espelho, via uma escrava amamentando o filho do senhor, ela também chorava, chorava leite e lágrimas, seu filho lhe fora tirado para servir na casa grande. Via a judia no campo de concentração que chorava a separação de seus filhos e o extermínio de seus irmãos. Via Maria que chorava seu Filho Crucificado. Mulheres choravam à porta das fábricas. Ofícios perdidos. Mulheres choravam nos escombros dos terremotos. Filhos perdidos. Mulheres mortas por serem bonitas demais, inocentes demais, frágeis ou fortes demais. Vidas perdidas. Todas no espelho. Ela ficara para chorar por todas elas. Nesse momento, as mulheres tomavam seu rosto e choravam no espelho. Do lado de cá, pela primeira vez, seus olhos secos se iluminaram. Ela entendera sua missão.

 

 

 

 

MUROS

 

 

Íntimo fora o diálogo. Entre eles, nenhum segredo. Um no outro. Um com o outro. Mas o tempo desmanchara a identidade do que foram, e recolher as sobras não adiantaria. Gota a gota, a dor fora destilada e, se ela ruminasse mais, só vomitaria a si própria. Expelir o que ficara no fundo foi se fazendo necessário e urgente. Consumir até a última gota o gole amargo. Verter a última gota de bile. No chão, os rastros se alongavam na sombra que teimava em não se apagar.

Ele dissera: Basta! Ponto final.

Muitas vezes, a boca do homem ameaçara libertar essas palavras secas. Muitas vezes, elas ficaram na esquina da boca contraídas. Esperavam a hora certa de explodir. O homem bomba preparara tudo com detalhes e, pacientemente, esperava a hora de detonar. A mulher, estagnada na porta, não sabia fazer outro gesto senão abanar a cabeça com assombro. Fora tão companheira, tão comedida nos gestos e palavras para não se sobressair a ele.

Seria sempre a mulher Dele.

Ela, ao lado, para amparar. Ela, atrás, para empurrar.

Ela, sempre, esperando a hora certa para dizer.

Ele foi se fazendo muro. Não ouvia, não falava.

Íntimo era o diálogo. Ela e o espelho. Ela e o papel amassado mil vezes. As cartas na mesa nunca foram postas. As palavras ensaiadas na frente do espelho nunca foram ditas.

O tempo fez o trabalho, e a muralha cresceu. Ele se foi depois do ponto final. Ela ficou com as palavras na boca. Ruminando.

Naquele dia, se decidira: embrulhou todas as palavras não ditas, pesadas como pedras, e depositou-as uma a uma, delicadamente e sem pressa, sobre a lápide onde jazia o homem. Ponto final.

 

 

 

 

MULHER DE VERMELHO

 

 

Buscou pintar-se com a cor que pulsava em seu íntimo. Procurou e, branca, vestiu o único vestido rubro que guardara para uma ocasião especial. Ela nem sabia qual, mas sentia que era agora e chegava a respirar a novidade. Andou com a certeza de que ela era só cor. Nada mais do que uma mulher rubra no meio de outras sem cor. Naquele dia, o sol não aparecera, e o vermelho sobressaía ao cinza do outono. Nela era verão, e a roupa ardia em sua pele, não um calor desagradável, e sim a vida que corria mais e mais nas veias. Rubra e quente. Precisava dar vazão a seu sentimento de pulsão. O mar a convidava, e ela entrou, e uma mancha vermelha boiou na água mansa. Tanto mar vermelho da mulher que sangrava e misturava seu sangue com a água primordial. Ela se ergueu, e a roupa deixava um rastro de felicidade da mulher inteira.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Claudia Manzolillo, nascida no Rio de Janeiro, graduada em Letras Vernáculas (Português-Literaturas) pela UFRJ, mestre em Literatura Brasileira, pela UFRJ com a dissertação "Perfis femininos na ficção de Lygia Fagundes Telles". Professora de Língua e Literatura do magistério federal, do Colégio Pedro II. Revisora de textos. Escreve ficção, poesia e ensaios. Publicou A dona das palavras, livro de contos, pela Editora Penalux, em 2015. Esse livro foi premiado no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ), em 2016.