©miki takahashi

 

 

 
 

 

 

 

Nebulosa nº 5

 

 

édipo estremece às 3 a.m enquanto invadem alcova adentro eu e sete corcéis velozes troféus divinos enquanto seu desejo é não sendo uma espécula camada grossa de silfas batendo as asas devinitre vitrilus venerando o corpo da conversa desastrória entre si e seus deuses num palavrório fechado a fel e fosso lacrado a fé e gozo atado a mando do espectro fantástico desta madrugada mas desiste de se expor à venda pois já rodou em seis o relógio quem hoje procura a casa acha um número inexistente embora a rua seja aquela embora seja esse chumaço de caracóis nazarenos mal cabendo em valas rasas rio abaixo perdendo-se três litros de tardes para o meio dia mesmo sem falar falará sim herói falacioso de mistérios memoráveis sobre alexandrinas galerias soterradas de gente em pé pedindo passagem entre os súditos levando pedras em caixas de sapato para erguer noutra resma a mesma farsa e calcular premissas somas rimas de três desastres tão raros quanto álbuns de fotografia em mil novecentos e dois esta noite chega a queimar os tentáculos do sujeito crespo com a voz num fio borbotão vermelho pedindo a volta d'el rey de la habana película fina troca um ontem amargo crepitando entridentes borbotões de serpentes num besdiário de comoções chegam até mim and he trembles 3 o'clock segundo os escritos seguindo o combinado contanto que ninguém o toque ou arranhe os miolos ajuntados num prato com profecias obtusas como um ângulo de 45 graus respeita a envergadura das asas do morcego que negocia e barganha o aluguel do destino azarado lembra aquela vez teus olhos baratinhas helenas farelos de dentes na testa logo no ventre inflou a criança esquecida nos lençóis de uma estrada qualquer rumo à cidade quête onde a diária é mais de seiscentos deixando saldo positivo para a velha vetusta colecionar lepidópteros parecidos com morcegos no sossego mas os bestiários ao pé da mesa roíam gafanhotos numa besourite aguda os dentes com cistos e na língua várias pústulas um xamã curando a vila inteira de campanários que voam entre laranjas e ovos quebrados lembra tanto teu cabelo rainha hoje estão salvando um de nós entrei para a história como vítima assim arrefece a seiva do teu leito caminho rumo a dois novembros atrás e a umidade constante protege os olhos de ressecamento ou algo assim de agora em diante lá atrás está escrito lá atrás está dito com ou sem sentido em engrenagens sabotagens conspiradores para escapar da faca escrevem telegramas no espelho de trás para frente em alfabeto grego detratores virão dirão esculhambar ainda mais e sempre a sina arguta de um pé-rapado indigente que poderia ser tão seu amante marido infante tão eu homem ao avesso sem nós

 

 

 

 

HAMPTON PARK

 

 

Ninguém diria que me viu comendo dez dólares e, em seguida, cheirando um livro novo, na estação Nova York.

 

Diria, sim, você é isso, e aquilo, pouco a pouco sou outro e ninguém viu você cavando fundo a neve já preta, escondendo um maço amassado de notas amarelas. Sufoco.

Hoje em dia dez dólares compra livro (de bolso), DVD (sessão da tarde), pulseira (faux-bijou) e moleskine (10cmx10cm). No tempo das diligências era recompensa por cabeça de bandido ou mesmo um puxadinho, miles away from hier.

 

Você entra no duty free e sai amarelo, carregando sacola de roupa na mão direita e, na esquerda, os Experimentosdo Montaigne.

 

Qual a primeira linha de metrô do mundo? Disputam Londres, Paris, Buenos Aires e, de uns meses para cá, Tóquio. Deus, avião e relógio de pulso são brasileiros, instâncias de aprisionamento e desforra, basta escolher.

 

Em North Charleston faz 29ºC e só posso invejar a esbórnia (sua e das crianças) verão; às margens do Ashley River conheci um poeta amargo — só sabia dizer não — que, comovido com meu dépaysement, convidou-me para um passeio. Falou iídiche, ucraniano e brasileiro, um porre.

 

Hampton Park aqui é nome de hotel, condomínio de luxo e suíte de motel barato. Acredita? Ontem você recebeu meu postal (10/05) e provavelmente não se deu conta do alto relevo formado pela neve derretida. Isso se houvesse neve! Raspei gelo do congelador e inventei batidinhas de limão, sabor câncer.

 

Não tenho mais medo da morte e preciso agradecer-lhe. Faz semanas que ensaio essa resposta, mas os dias têm sido tão belos que os olhos doem com a palavra escrever. Tenho procurado inspiração. Por que não têm mulheres nas notas de dólares? Em algum lugar essa injustiça deve estar sanada. Deus queira.

 

Hoje tudo mudou, expressão e direito ao voto. Problema é essa cotação que nos prejudica. Dois idiotas daqui equivalem a quatro daí. O excesso de publicidade em cima das armas é imenso. Com algumas moedas almoça e janta uma tonelada de transilvânias, Moby Dick ficaria envergonhada.

 

Em 1968 embarquei no último voo exclusivo para homens, cortesia da United Airlines, Nova York — Chicago. Apenas duas mulheres a bordo (aeromoças). Você não ia gostar de me ver : ité – ité – ité.

 

Bir Hakeim fica longe de nós dois e não sabemos pronunciar este nome. Pode ser o deserto, contrastando com as amoreiras sibilinas de Hampton Park, ou pode ser nossa suada semana de férias, torcendo as mãos num frio de lascar.

 

Vamos decorar o nome de todas essas estações? Quem acertar tudo, ganha! Pode ser? Era tão simples fazê-los calar e dormir ao nosso lado, empurrando aos socos o banco da frente, quebrando todo o decoro de uma terra pontilhada por ité, ité, ité.

 

Roy e Charlene estão casados há dez anos, low income parents. Ele, franzino e destemido; ela, roliça e adormecida. Dois filhos, uma hipoteca e trinta anos para liquidá-la. Herdar dívidas, leilões e penhoras, não sonhei com isso e quero o divórcio. Charlene era estoica, mas naquela noite estraçalhou os ombros do marido com os dentes. Desde então não houve mais discussão e, se não me engano, estão na parcela 112. Poor Roy.

 

Ninguém se espanta com a história da modelo que deu corpo às estátuas de NY e morreu louca, à la Claudel. Internou-se por espontânea vontade em um asilo, ela e a mãe, onde viveu por mais cinquenta anos; enterrou-se sem uma plaqueta de mármore sequer, embora seu rosto esteja em tantas delas.

 

Adoro o transporte público do primeiro mundo, é bom, é cheiroso, cheio de gravatices. Andar de bike às margens dos rios de cinema, fazer piquenique nos parques clássicos (vinhos, queijos e pães, esse povo sabe o que faz!), comprar quinquilharias nos bairros boêmios e ter arroubos juvenis: amor, vamos viver de arte? Adoro a ausência de olho no olho, para que esse excesso de intimidade? Depois reclamam que e de.

 

Vivemos em uma latitude sinistra de fria e há décadas não fabricam agasalhos com forro de lã. O verão é sempre uma chatice, todos saem de casa com a cara branca e isso tem se tornado moda até fora da estação. Uma ONG estabeleceu componentes químicos considerados cancerígenos em bloqueadores solares e um deles, combustênio SNN-10, é extraído de uma estação nuclear desativada, ao lado de Hampton Park.

 

Nessa bucólica vila temos ouvido coisas, os cães eriçados farejam os dejetos à meia-noite. Ontem mesmo um ruído agudo me arrancou da cama no meio da madrugada e eu fiquei em silêncio. Você lia sempre brochuras aquareladas, fadas virando sereias, a pequena adormecia fácil. Amanhã tentarei conversar com ela. Desde que mudou de colégio não sente mais fome e volta tarde para casa. Agora calma, vocês falam demais, preciso ir.

 

Nada contra, mas bem longe de mim, não precisa de tanto alarde, você só escreve ou trabalha, em casa cada um faz o que quer, a culpa histórica não é minha, hoje são outros tempos, naquela época se pensava assim, antes tarde do que nunca, bandido bom é bandidoso, se tudo der errado eu vou pra Califórnia, começa assim e depois piora, precisa cortar o mal pela raiz, quem sai aos seus não degenera. Quando é possível, sim, vou com o maior prazer. Quem não se compadece da dor de uma mãe?

 

Todos vão dizer que sabem, mas no meio dessa algaravia, o chumaço caído, nas frestas de pátina, de um banco vazio, ninguém vai ter visto, toneladas de empecilhos, em Hampton Park.

 

 

 

 

SEM BREMEN

 

 

Um moço sem braço deseja ir a Bremen e assim começa uma grande história.

 

Bremen, Brema, Bremeno, Brémy, Βρέμη, Бре́мен, ब्रेमेन, ブレーメン e variados. A despeito das pronúncias impensáveis, registra apenas um endereço: 53° 4' 33" N 8° 48' 27" E.

 

O mapa da Alemanha assemelha-se a um protozoário de pés falsos (não flagelado), desses que a gente experimenta na microscopia escolar. Dependendo da perspectiva, Bremen pode ser tanto vacúolo contrátil como pulsátil. Berlin, invariavelmente, é o núcleo.

 

Mesmo assim, o moço foi.

 

Com um gênio difícil, exortava os amigos ao ódio. No saguão central, às 14:30, ninguém fez conta da despedida histérica: maldizia a vida por não levar malas, puxando uma em cada braço, mas apenas mochila.

 

Bocejos, engasgos. Um embaraço para dar abraços, medo de fermentar-lhe a ferida (o toco restante era envolvido por uma pele translúcida e finíssima, quando ele não percebia fitávamos com atenção o ecossistema em miniatura).

 

Partimos.

 

Partiu o projétil kamikaze e sua revanche prometida.

 

Foi notícia, fuxico, riso, pito, troça, esbórnia, concórdia, diz que diz do bobs da vizinha até o projeto de lei barrado  pela justiça – amplos direitos de abortar. De todo modo, nosso povo era de um contentamento sem tamanho. Não tanto por sermos sinceros mas porque a convivência com o moço — alto, branco, brasileiro nato e de ascendência birmanesa — havia se tornado insustentável e vinha prejudicando o crescimento do país.

 

Será que ele consegue abraçar esta oportunidade?

 

No outono de 1943 foi inaugurado o subcampo Bremen-Farge — filial de um outro notório, Neuengamme, em Hamburgo — onde Dr. Heissmeyer brincou de Frankenstein com quatro crianças judias.

 

Pouso tranquilo. Vamos às revistas.

 

O moço detestava ser contrariado. Abrindo a carteira com os dentes, jogou nos pés da imigração notas de cem e um discurso macarronesco sobre os direitos das minorias, números de emergência e conselhos de ética. Falava com uma fome varada e ninguém ousou interrompê-lo. Como não havia intérprete que desse conta do recado, esperaram hipnotizados o fim do parlatório.

 

Todavia, não escapou do procedimento padrão. Aqui não havia exceção, a lei era para todos. Despiu-se a contragosto. Trazia uma ave de rapina tatuada no toco esquerdo e despertou os fetiches do moço metido a brigadeiro-bossa. A cocagem impertinente fez o moço sentir-se violado, feito brinquedo novo fora de caixa.
Seguiu-se nova enxurrada cacofônica.

 

Um molho de palavras atropelando dialetos menores — cerzidores de cânhamo precisam voltar para casa e não têm dinheiro, uma família de camponeses teve os filhos degolados no alojamento para refugiados — mas ele é imenso e ocupa mais espaço que o longo caminho traçado até aqui. Ele é intenso e esbravejava. Nós não sabemos dizer não.

 

Bremen é a décima cidade mais populosa da Alemanha. No último recenseamento atingiu os melhores índices de qualidade de vida no país, perdendo apenas para a capital. Bremen é uma manhã sem graça de domingo mas nos agrada por não oferecer perigo.

 

No bairro medieval de Schnoor o moço recomeça a vida com o jovem brigadeiro aeronáutico. Mundo calmo de delícias e sem vaidades. Findos  atritos desnecessários, agora ele passa o dia em camiseta sem manga, trabalhada em seda. Desaceleramento necessário, afinal nem as Autobahns são ilimitadas como parecem.

 

Um silêncio mútuo ocupava a casinha gótica, era como se eles não existissem. Salvo pelas discussões etmo-bizantinas em que se metiam madrugada adentro:

 

— Por que em alemão "braço" e "coitado" são a mesma palavra?

 

— Por que em francês eu preciso de braços para beijar?

 

No século XIX dois irmãos descreveram diversos arquétipos alemães, dentre eles a história medieval de um burro, um cão, um gato e um galo, que abandonam os donos para serem livres em Bremen.

 

O brigadeiro fincou os dois pés no chão, lambuzou-se em demasia e perdeu o emprego, assim termina uma grande história.

 

Contas acumuladas, ostracismo social e rusgas domésticas levaram nosso prussiano Ícaro às profundezas. O moço acaricia-lhe sem jeito e promete revanche, promete vitória. Ensaia novamente os discursos da chegada, acrescentando os resultados da vasta pesquisa linguística desenvolvida nos últimos anos. Grampeia certificados, cartas de recomendação, prontuários e laudos médicos, tudo na esperança de salvá-los do naufrágio iminente.

 

Confiante, ele vai. Foi.

 

E o que se segue não faz sentido detalhar: o moço não sabia mais falar a língua rapina dos primeiros dias. Tergiversava, empacava nos momentos difíceis e nem a raiva inflando o toco anêmico garantia-lhe alívio. Dessa vez os encarregados não temeram. Acolheram as queixas e protocolaram, preguiçosos, as solicitações, certos de arremessá-las longe antes da pausa-café.

 

Entre 1939 e 1945 a Royal Air Force lançou 12.831 bombas em Bremen mas a última, do dia 30 de março de 1945, deixou uma Frau Leona em frangalhos, só os cotoquinhos. Anos depois seu neto ensaiaria uma frustrada vingança, juntando-se ao exército inimigo.

 

O brigadeiro derretido no sofá é puro desolo e desespero.

 

Espera seu moço chegar e vencem juntos duas garrafas de pinga. Força do hábito e cautela, mantém-se sóbrio e leva o companheiro nos braços até a mesa de jantar. Com a serra mais bela, tinindo, talha fino um traço entre Bremen e Hamburgo.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Clarissa Comin é doutoranda em Estudos Literários na UFPR e professora de língua francesa. Em parceria com Julia Raiz escreve semanalmente no coletivo literário Totem & Pagu. Tem traduções e textos publicados em revistas como Qorpos, Mallarmagens e Enfermaria 6. Nasceu em Fortaleza e reside em Curitiba.