Vontade involuntária

 

 

Da vida eu quero a manteiga

E a faca sem serra

Uma combinação perfeita:

Eu quero o que escorrega

 

Quero a conexão que se ajeita

Descomplicada

A vontade nata

Quase ignorada

 

A risada dada

Depois de um copo de cachaça

Quero o que condensa

Simplesmente porque desaba

 

A calcinha gasta

A camiseta rasgada

E o olhar pro nada

 

O que fica bem encaixado,

Mesmo quando não há espaço

 

Quero o que desliza, atiça

Passa

Esmigalha

Acaba

 

A escolha involuntária

O que se assanha sem feitiço

Sem reboliço, sem juízo

 

O suor da sauna

Sem esforço da alma

 

Quero ficar emplastada

Congelada

Derretida

Imersa num pote

de gordura saturada

 

 

 

 

 

 

Indigente

 

 

Sou uma mulher orgulhosamente desprotegida

Frágil e independente

Andando seminua na metrópole

Empurrando um carro de tralhas

Com os seios doloridos de amamentar um mundo

Que não foi gerado em meu ventre

 

Sou uma indigente sem cobertor no inverno

Cuspindo nas doações e nas mãos estendidas

Sem vícios para me salvar da morte em vida

Sozinha carregando o peso da culpa

De ser uma mulher orgulhosamente desprotegida

 

 

 

 

 

 

Instruções para lavar a alma

 

 

Lavar a alma à mão

Que é de estrutura muito delicada

E assim, manchada de tantas palavras,

Requer cuidado redobrado

Para voltar a ser quietude

 

Secar a alma em solidão

Estender na linha do tempo

Do próprio quintal

Na parte que bate

Um sol coado, sereno

E faz pendurar as pálpebras

No sono dos que sabem esquecer

 

Passar a alma a limpo

Cortando os preciosismos

Os excessos prolixos

O peso dos desnecessários

Acessórios

 

Vestir a alma nua

Na sua mais nova pele

Nos olhos um brilho tranquilo

E uma vontade recém nascida

De ir brincar na rua

 

 

 

 

 

 

A saudade é uma clínica de reabilitação

 

 

A saudade é uma clínica de reabilitação

para corações intoxicados de amar.

A saudade é uma crise de abstinência.

A saudade é um refluxo da alma,

regurgitando cidades inteiras,

anos a fio, sorrisos fartos, histórias, sonhos.

A saudade é uma invenção.

Memória das células aprendendo a desmamar

e a voar com as próprias pernas.

 

 

 

 

 

 

Porta

 

 

Viver em paz é saber

Entrar nos corações

Sem precisar bater à porta

E sair dos corações

Sem precisar bater a porta

 

Que amor bom

Entra sem esforço

E sai sem fazer barulho

 

 

 

 

 

 

Estraninho

 

 

Já não sei mais em que ruas ando

Desconheço esses pés que flutuam

 

Já não sei mais por onde voo

E onde me habito:

Cabeça, coração ou umbigo?

 

Já não sei mais onde

Pousam os pássaros

Onde eu me enraízo:

Mar, cama ou moinho?

 

Da janela vejo

Sobreposições de sentidos

 

Já não lembro mais

Quais as línguas das esquinas

E os pratos e os ritos

 

Já não me reconheço

Fico

No primeiro minuto

Do despertar

 

Esfrego os olhos em vão

Todas as paredes são

Estrangeiras

 

Como se aquele pequeno espaço

Que conecta

Este mundo e o dos sonhos

Continuasse nos meus poros

Infindo

 

E mesmo sem digerir a superfície

— Na falta de familiaridade

— Na falta do óbvio

Caminho

Tateio

No escuro

Como quem se habituou

A nada se habituar

E vive a inaugurar

Mundos

 

 

 

 

 

 

*

 

Derrame-se.

Transborde-se.

Fale. Ame. Cale. Odeie.

Sinta. Tudo. Nada.

Em alto e bom tom.

Extravase-se. Dilate-se.

Exploda-se.

Até ver que suas cachoeiras

não são e nunca foram

maiores do que você.

 

 

 

 

 

 

Cindida

 

 

Tirei o corpo fora mas o coração ficou atrasado.

Dei um passo maior do que a velha alma.

Empurrei minha cegueira atrofiada no precipício

para ver se despertava voo.

Quis atiçar a vida com vara curta,

ela acordou e eu ainda tenho medo.

Meus pés são rápidos para descalçar os sapatos,

mas meus pensamentos demoram a perceber

a se deixarem esparramar na alegria da nudez.

Vestida de felicidade ainda choro.

 

 

 

 

 

 

*

 

viver

reaprendendo a engatinhar

a berrar, a chorar, a silenciar

a ver com o tato dos olhos

reaprender a mexer os membros

parar de observar

respirar

viver

lembrar da sola do pé

do topo da testa

do último osso da coluna

desarranjar os movimentos do corpo

alterar a estrutura

sacudir, bagunçar

cabelos, pensamentos, sentidos

viver

reaprender um rugido

um sopro de ouvido

um grito, um gargalhar

viver

desaprendendo a pensar

a pecar

com a cabeça

 

 

 

 

 

 

Um piscar de asas

 

 

O mundo acaba:

Entre o perigo

E o abrigo

Entre as roupas sujas

E as bem lavadas

Entre os enlaces

E as mãos atadas

Entre as tempestades

E os copos d'água

Nos resta apenas

Um piscar de asas

 

 

 

 

 

 

Sarjeta

 

 

O bom de tomar chuva

é que você pode chorar dilúvios,

correr correntezas,

rir cachoeiras.

Fazer papel de louca.

Escorrer pela sarjeta.

O bom de tomar chuva

é que você pode fazer xixi na calça.

Pular nas poças d'água.

Lavar a alma.

O bom de tomar chuva

é que tudo chove com você.

O mundo fica do lado de dentro

enquanto você fica do lado de fora,

brincando no proibido.

As águas se fundem,

os barulhos são mais audíveis que as falas.

Tudo fica livre, tudo fica fluido.

O coração se liberta

quando o mundo para de assistir.

O bom de tomar chuva

é que tudo pode se confundir.

 

 

 

 

 

 

Boneca-monstro

 

 

Bonecas adornam as vidas

Monstros assustam

 

Bonecas têm sempre uma saída

Monstros choram

Bonecas sabem de tudo

Monstros são cegos dos olhos

Bonecas se preocupam com o que os outros pensam

Monstros atropelam rótulos

Bonecas criam mitos encantados nas vistas

Monstros entram nos pesadelos

Bonecas mascaram as feridas

Monstros cutucam a fundo

Bonecas têm medo de perder a bonequice

Monstros se rasgam em trapos

Bonecas se adaptam

Monstros se resgatam

Bonecas postam cores, amores, sabores

Monstros postam poemas

Bonecas vivem no mundo

Monstros nas cavernas

 

 

 

 

 

 

Poesia resistência

 

 

Morre um poema no passo aflito,

No corpo cansado, na cabeça tumultuada

Nos dias espremidos, na expressão contida

Nas emoções engolidas no café da manhã

No amor deixado de lado

 

Morrem poemas nos smartphones

Que nos despertam a cada dois minutos

No zumbido das televisões

Nas chuvas de notícias sem sentido

 

Morrem poemas

Na intolerância política

Nos sorrisos dissimulados

Na falta de abraço

No cinza dos olhares

Nas obrigações dos laços

 

Morrem poemas na ausência de diálogo

Nas segundas intenções dos gestos

Nas prosas dos elevadores

No sapato apertado

No desconforto dos comportamentos

 

Morrem poemas nas repetitivas danças das cidades

Na hierarquia dos corações

Nas camadas de gelo das relações

Morre um poema no sexo fast food

No estresse do trânsito

Nos quinze minutos de almoço

Nas histórias dos jornais

Morrem poemas nas importâncias no mundo

 

 

 

[imagens ©katia chausheva]

 

 

 


 

 

 

 

Clara Baccarin é paulista, mestre em Estudos Literários (Unesp) e formada em Letras (Unesp). Publicou o romance Castelos Tropicais (Chiado, 2015) e o livro de poemas Instruções para Lavar a Alma (Sempiterno, 2016). Poeta, tradutora e cronista, escreve semanalmente para os sites Conti Outra Artes e Afins, De Repente dá Certo e A Soma de Todos os Afetos.