A urina perde-se no mar, esquecida

 

O mar e o céu, o mar e o seu

eterno rancor contra a carne

sem escudos

 

— crivada de setas —

 

A cada vento movendo a data

moendo as noites, as sete chagas

do calendário seteno

 

de mais uma semana a ir

manar-se à morte

ante o

mar:

 

o sempre insone

 

que agora invocas

para ter como resposta

o monstruoso rosnado

(multilhões de aqua-

leões verdejubados)

e  aí calar

(ondas ao peito) só

suspeitando se

algo ou al

guém — quem?

O forja

 

 

 

 

 

 

 

ó,a

         

aurora

 

aflora — e evapora

doura  — e apavora

Vapor  envenenado, aroma

hereditário

 

O sangue

da serpente lambuzando a terra, fundindo

o medo

de quem parte

mudo

para o dia em guerra

 

Um A carne viva

na garganta da noite víbora

trocando a pele sobre

as pedras

 

ó,é

ela

 

a hora-trombeta

a febre do ouro cobrando

a ruína da obra,cobra

que nos destroça e se des

dobra em

nada

 

 

 

[Poemas do livro Dez]

 

 

 

Outra manhã

 

 

Por detrás do verde monte

(não-verde-oliva

não verde-musgo

verde-não-verde

não-verde-mar)

 

por detrás do verde monte

(não verde mata

verde perto: entulho)

por detrás do verde-azinhavrado monte

de sucata, surge sujo

 

grafitado

— cicatrizes, placas, logomarcas,

confusa cabala, restos de cartazes,

frases, chagas — crivado de balas

 

o

sol

 

e ao fundo

o canto imaginário do galo

garganta

jorrando

do pescoço decepado

(gargalo)

ao esgoto escuro

o sangue

reencarnado

outra manhã no mundo

 

 

 

 

 

 

Musa

 

 

É no par de mãos

que sob os escombros

trabalham o desprezo

que lhes tem o tempo

É na boca, onde pássaros

desovam em silêncio

É nos olhos — queimando

É no corpo, estendido à intempérie

de desertos cobertos de sóis sujos

 

É

Na carne — poesia — que tua angra

de granito

se inunda — um navio com todas suas luzes

afundando em água noturna

 

 

 

[Poemas de Hong-Kong & outros poemas]

 

 

 

Quando a chuva azul arremessa

pedaços de céu contra as vidraças,

abro as janelas de água e entre

vejo-te nas gotas, centaura de ouro,

fisgo teu eco boiando em cavernas vazias

 

Na torre de doçura que o fruto edifica,

nos navios em chamas à flor da espuma,

nas luvas de nuvem que a noite usa

em suas unhas negras, sinto teu Sim

e teu Não respirando, teu beijo arfando

 

no fundo do jardim submarino, que eu

disfarçado em cão marinho, farejo com fôlego felino,

animando as algas para um rito de sal ao som

das violas que as ondas solam em cordas da areia

 

Criança feiticeira, um rubi posto em tua testa

te ilumina as mãos sangradas por estrelas e espinhos

ao tocarem a haste noturna que sustém a rosa da aurora

 

Aroma do universo fecundado nos abismos

 

 

 

 

 

 

Manchas

 

 

Uma pequena mancha preta ave no topo do dia.

O dia que se ergue do sono das estrelas.

Ave sobre a terra e suave se aninha

nas retinas do homem que, pequenino,

entrecerra os olhos lançados para cima.

Uma pequena mancha na terra

e uma pequena mancha no céu,

espelhando-se em suas imagens provisórias.

A mancha que flutua e

a mancha que se arrasta,

mas que também se eleva quando

a visão da ave lhe empresta asas.

Mancha presa na relva mirando

a mancha preta suspensa no azul,

vindas do ventre secreto do mundo

para a incerteza da face visível da natureza.

Mancha celeste, mancha terrena.

Entre elas apenas o rumor do vento

segreda a poeria e a nuvem da existência.

Pequenas manchas pretas sobre o branco do dia.

Ave e homem, dois pontos, à beira do silêncio:

 

 

 

[Poemas do livro Rio Silêncio]

 

 

 

A sombra da ausência

 

 

O corpo vai, a sombra fica.

Um eco sem voz que assombra

 

a sala, a mala sendo arrumada

para a viagem, que, dia-a-dia

 

se faz um pouco sem saber se

é volta ou ida — o copo quebra,

 

o sabor fica, a aura de um hálito

em torno à boca que se intensifica,

 

quando um conhecido fantasma

passa pelos terraços da memória

 

e evoca um nome, um aroma, uma

hora perdida entre as folhas secas

 

de um outono que se deteriora

conforme a mão do inverno o toca.

 

O céu se ensombra, o azul fica.

Em alguma dobra das pálpebras

 

da íris, dos cílios, sua luz habita 

 

[Do livro A sombra da ausência]

 

 

 

Monumento a Pascal

 

 

I

Nunca buscamos as coisas,
mas sim a busca das coisas.
O rei está rodeado de gente
que não pensa senão em divertir o rei
e impedi-lo de pensar em si mesmo.
Com o coração oco
e cheio de imundície
corremos despreocupados
para o abismo — o último ato,
sempre sangrento, por mais belo
que tenha sido o resto da comédia.

 

II

Três graus de latitude alteram
toda a jurisprudência:
Um meridiano decide a verdade.
Curiosa justiça que um rio delimita.
Do outro lado do mar, um homem
se dá o direito de me matar,
só porque o seu príncipe tem
uma disputa com o meu,
embora, eu, contra ele, nada tenha.

Meu e Teu — eis o começo e a imagem
da usurpação de toda a terra.

 

III

Quantos reinos nos ignoram.
Abismado na infinita imensidão
dos espaços que ignoro e me ignoram,
não vejo — como uma sombra
que dura um instante irreversível —, senão
infinidades por todos os lados,
visivelmente perdido e caído
nas trevas impenetráveis
do Universo que me encerram.
Uma esfera infinita, cujo centro
está em toda a parte e a circunferência
em parte alguma.

Deus é um Deus escondido.

 

IV

Nunca nos detemos no presente.
E nada se detém para nós — rio de Babilônia.
Não procuremos, pois, segurança
nem firmeza.
De nada me adianta possuir terras.
Pelo espaço, o Universo compreende-me
e absorve-me como um ponto.
Pelo pensamento, sou eu
que o compreendo.

 

V

À medida que aumentam as luzes
aumentam grandeza e miséria,
desde a presunção desmedida
ao mais horrível abatimento.
A natureza do homem, bambu pensante,
não é ir sempre, tem suas idas
e vindas.
Monstro incompreensível, não é anjo
nem besta e, desgraçadamente,
quando quer ser anjo
acaba por ser besta.

O frio é agradável
para podermos aquecer-nos.
Tenho dentro de mim
o tempo bom e os nevoeiros.

 

VI

Dirigimos o olhar para o céu,
mas firmamo-nos na areia.
Um princípio de tudo.
Tudo por Ele,
Tudo para Ele.
Incapazes de ignorar totalmente
e de saber com certeza,
temos uma imagem da verdade
e possuímos a mentira.
Glória e refugo do universo.

 

VII

O menor movimento importa à natureza.
O mar inteiro muda por causa de uma pedra.
Nenhum abatimento incapaz do bem.
Nenhuma santidade isenta do mal.
Esplêndida maneira de receber
a vida e a morte, os bens e os males.

Paris, verão de 2004

 

[Poemas do livro A sombra da ausência]

 

 

 

*

as palavras rastejam no chão da página
caravana de formigas pretas em fila sobre a neve
sombras de tarântulas subindo a cal da parede
em busca de um esconderijo
depois de despejadas do sótão escuro da mente
pequenas pegadas de pessoas refugiadas
centopeias que ganham asas e desaparecem de repente

 

 

 

 

 

 

Ouve o mundo

 

 

                   A Marcilio Costa

 

 

Cala, ouve o mundo, há sempre

uma voz em tudo — um coaxo,

 

um sibilo, um crocitar, um zumbido,

um gorjeio, um zurrar, um rumor

 

de água, um silvo, um vento, um

far                  fa                 lhar,

 

um balido, um trino, um latido,

um cicio, um grunhido, um grasnado,

 

um sussurro, um rosnado, um ron

ronar, um rugido, um bater de asa,

 

um estalo na viga da casa, um ecoar,

um latejo na têmpora, um temporal,

 

um trovão, um ranger de porta, um

inaudível desabrochar, um cricrilo,

 

uma sílaba ci ci ci ci ci ci ci cigarra,

um sino, um relógio, uma badalada,

 

um último suspiro, um novo ser

a respirar, um gemido amante,

 

o som de uma lágrima que cai no olvido,

uma vida inteira a murmurar — e no fundo

 

de todas as vozes inanimadas e animais

a voz do espírito que a tudo anima.

 

Ouve — há sempre uma voz em tudo.

Fica — um instante — mudo

 

 

 

 

 

 

Yo y el Sordo

 

 

                   A Francisco de  Goya

 

 

Não podes me escutar

Para falar contigo

basta apenas apalpar

as paredes de tua arte

e perceber que a maldade humana

descansa em qualquer tipo de barro,

que se ergue e dá alguns passos

entre a espera

e o desespero que o esboroa

 

Nós dois sabemos

que a borra da miséria e o cristal da estrela

residem em cada gota de tinta,

que o mar e o amor

só existem para quem não os atravessa

e que o lugar em que parecemos reinar,

o lugar em que parecemos reinar

é um território inconquistado,

um chão sobre o qual o trono e a coroa

são dados no mesmo instante

em que a trombeta e a voz de um arauto nos manda abandoná-lo,

mal saboreamos o cheiro marinho

da Alba deitada nua na areia da praia

e vemos que o que aqui nos trouxe,

o barco há pouco ali ancorado — vês? —

já arde em chamas — queima

a pergunta do marujo se o desamparo do mar é a única forma de voltar

 

ou, quem sabe, assim,

pedindo emprestado um pouco

de tuas tintas,

o sonho da razão,

o pesadelo de Freud cem anos antes,

quando as corujas piam em volta de tua cabeça,

que deita para deixar escapar

monstruos, los desastres, los caprichos, los disparates,

las pinturas negras

nas paredes que não têm ouvidos

 

 

 

 

 

 

A outra voz

 

 

Presente em tudo e sempre oculto, serpente

verde e imóvel entre a folhagem, imagem

 

que não se vê nem ouve-se mas sente-se

perpassar todas as formas que armam

 

nosso breve arco riscado à giz de nuvem

sobre a impalpável escuridão do mundo

 

Enigma, da superfície ao fundo, vulto

transparente atravessando o véu do tempo,

 

reunindo, em sua única voz todas as vozes

do vento, céu vazio, rio sem foz e nascimento,

 

círculo invisível em volta de seu próprio

mistério — eterno, terreno, intocável, aéreo,

 

o silêncio, Deus da poesia, diz mais um dia

 

 

 

[Poemas do livro inédito A outra voz]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Antônio Moura nasceu em Belém do Pará, residiu em São Paulo, Lisboa e atualmente vive em Belém. Poeta e tradutor, tem sete livros publicados: quatro de poesia e três de tradução. Poesia: Dez; Hong Kong & outros poemas, Rio Silêncio; A sombra da Ausência. Tradução: Quase-sonhos, Jean-Joseph Rabearivelo; Traduzido da noite, Jean-Joseph Rabearivelo; Contra o segredo profissional, César Vallejo. Em 2008, Rio Silêncio recebeu na Inglaterra o Prêmio John Dryden, na John Dryden Translation Competition, em tradução para o inglês de Stefan Tobler, publicado em 2012 pela Arc Publications. Em dezembro de 2013, foi publicado em Valéncia, em tradução para o catalão por Joan Navarro, sob o título de Després del diluvi i altres poemes. Em 2015, foi editado no México, traduzido por Victor Sosa. Tem sido publicado em diversas revistas e antologias nacionais e internacionais.