FIM-DE-SEMANA NO LAGO
 
 
O adiantado da noite desemaranha as estrelas
das fogueiras que marginam o lago e desemaranha remos,
juncos e patos e desemaranha o sangue da língua do lobo
e desemaranha as vagens do manto escuro do tamarindeiro
e desemaranha da luz da vela a alba.
Chega a manhã e desemaranha das sombras
o ganido dos cães e a movente caruma no chão
e desembainha a tentação do isco
e desemaranha das pontes uma rede de corações suspensos.
 
Como sobem os trinados, do mar de cana-de-açúcar!
Vêm imprimir um brilho novo aos velhos ferrolhos,
desprender do caixilho das janelas um halo
banhado pela luz de três dias inteiros
— dois camuflados de vida sedentária,
e um transparente, duma ventilação danada.
 
A claridade da manhã separa as partes da carne,
as partes da rosa, a pressa da velocidade,
as lâminas do estore, os desertos da alma,
separa os atributos do olhar apreciador,
debanda a unha do vinco que humedece
os grandes lábios — uma maravilha
como a luz modela os vasos
e num instante os embriaga: ocos.
 
Calva é a noite mas a ressurrecta luz da alba
despenteia mundos até aí invisíveis,
translúcidos como as medusas no mar,
e desemaranha das rugas
dos velhos pescadores os arcos de violino,
e há-de desemaranhar bocejos e sorrisos ao café da manhã,
na esplanada sobre o lago, e os jingles dos rádios,
e novos tremores de terra a oriente.
 
Pões os óculos, recostas-te na cama,
ao teu lado, adormecida na mecha que te chama,
a mulher que amas:
cada coisa retomou o seu lugar,
depois de tudo ter ardido no escuro.
 
E retomas o que incrédulo leras
antes de te emaranhar o sono:
Inana, deusa da Mesopotâmia, quis disputar
no baixo-mundo o palácio de lápis-lazuli
de Ereshkigal; houve pois um momento
em que o Inferno era um lugar apetecível.
Sorris, também no século XVII se julgava
que as pessoas felizes não apanhavam a peste.
 
O gato enfia-se, sinuoso como uma borracha,
entre os teus pés, apaga-te os passos,
faz-te tropeçar na tua insubstantiva realidade.
Sentas-te na secretária de bambu
e abres o laptop, as crianças dormem no igloo
de lona que montámos no quarto,
a 'Tresa volta-se na cama, tacteia o teu lugar vago.
Lá fora, as palmeiras admoestam timidamente o vento,
dois flamingos cruzam o lago e acima
um jacto desenha um fio de algodão.
 
Mais logo, o corpo mutante da alegria
chamará o cansaço, a Luna e a Jade hão-de arreliar-se,
eu blasfemarei contra a tarefa de ter de desgravar
uma tão longa entrevista, e as formigas,
revestidas de chumbo tornarão à terra.
 
E, no cerne do que luze, recomeçará a noite
a emaranhar todos os fios num mesmo nó, de amianto.
 
 
 
 
 
 
OITO QUATORS
 
 
lívida neve
 
Sim, o pavor faz-me revirar os ossos
que chiam gemebundos como lágrimas
de cão, aliviando de ramelas
a lívida neve, que nunca exagera.
 
o segredo
 
Adejava de terra em terra, sobrevoando
as linhas restritivas, farfalhuda
sobre lagos e lameiros, em busca do segredo
que liquefizera em si o gosto de ser árvore.
 
o que sobra à porta
 
Eis a porta que se abre para dentro
de si mesmo, contundida,  à cata de orifícios
que a aliviem de estar tão absorvida
pelas sensações que lhe deixaram a batente.
 
tatuagem
 
Corria atrás do vento
para lhe tatuar no dorso a toutinegra.
corria atrás do vento,
escorreita e nervosamente prismática.
 
com ganas
 
Já o passado exibia ao ombro
a minha pele esfolada
e daí, se não se importam,
escapuli-me com ganas pró presente.
 
o betume
 
O betume impermeabiliza.
O nome não. O vento também não.
Há três dias que os pássaros comentam isso:
algo impermeabiliza o que não sabem designar.
 
pulsam
 
Quando a fenda se rasga no horizonte
a dança desprega a aridez da paisagem
e as tuas pernas, expansivas,
numa fímbria de saliva, pulsam.
 
 
 
 
 
 
COMETAS ÉBRIOS
 
 
Ouço-os, cometas ébrios.
Dizem de um terceiro: o man
está grosso.
E não sabem que podem dizer:
está alegrete, ébrio, bêbado,
com um pifo,
com uma buba…
Sendo que a cada um
destes termos, embora
sendo sinónimos, desponta
uma pétala diferente
na profusa corola daquela narsa.
Não têm vocabulário, e por isso
só têm uma resposta
para o estímulo
E pensando nisto levanto-me
para ir aos lavabos
e de caminho tropeço
numa perna de cadeira e estatelo-me
ao comprido. Ouço-os comentar,
atrás de mim: o man
está grosso.
Assenta como uma luva.
 
 
 
 
 
 
OS AVATARES
 
 
O Henri Michaux? É sabido
que o adicto
imitou, em ressequido,
tudo o que fui.
É escusado negar que o Hokusai
me copiou
em mais de metade dos espectros
e das enguias
que lhe foram atribuídos.
As perspectivas
do Monte Fuji, por exemplo,
tomou-mas, o inculto
cem retroactivos.
 
O Durer foi outro infiltrado
que com in-
declinável gana
me sangrou os arquivos,
e a sua mais leve menção
enternece-me
tanto como encostar uma palhinha
a um corvo
para lhe sorver
a mais insepulta noite.
 
Outra gente malsã, ambiciosa,
que em tudo
me plagiou?
O Czeslaw Milosz,
o poeta de um catolicismo alvacento
que os meus olhos escoltaram
como um arado
de mistérios latentes,
e o Hugo Claus, o poeta herético
que em secos excrementos

de pombo
'inda me betuma
as bétulas da reminiscência.
Este teve inclusive o desplante
de lubrificar em Silvia Kristel
o desejo dos navios,
desviando-me a musa
que me fora prometida desde
que como Kant me lastimei
ao S. Pedro
sobre o falho erotismo
dos relógios.
 
Apesar de muita resistência,
de tanta safadeza,
tenho de chamar a essa canalha
os Avatares.
 
Consola-me, enfim, que o O'Neill,
O Alexandre, no desvairo
de me imitar,
tenha contraído as minhas cáries
e algum hálito arrancado
à força
do que tem que ser,
ou que as minhas crisálidas
lactescentes, as
suculentas estalactites,
estuprem as veias
de Carlos de Oliveira.
Já as estalagmites
cedi-as a um poema
do Ted Hughes,
corvo deslavado,
que, em vã mazombice,
prometeu, prometeu,
sem nunca o concluir.
 
O que esta gente não faz
por um pingo de fama?
 
Que querem que vos diga
de Vasko Popa?
Esse não sabia patavina
e iniciámos uma biblioteca de estrelas
que vinham engordar à mão.
Mas rapidamente me deixou
só com as anãs brancas e no fim
enviou-me cínico postal de Paris
para me agradecer
as premissas.
As premissas!? Que Deus
o enlouqueça nas badanas
de Santa Teresa de Ávila,
a bibliotecária
da área dos leprosos,
no paraíso.
 
Poema do António Barahona?
É meu.
E ele sabe, nem sequer dissente,
entre nós não há minaretes
escondidos, estabelecido
que a fauna, a flora e a geografia
descristalizam
em mim (não nele)
o alfabeto com que Deus
naufraga em todas as línguas.
 
E pronto. Mas queixo-me
de mais, de muitos mais,
até porque os relatos
estão todos truncados.
Eles sabem mas fingem,
pondo os olhos em alvo
nas nuvens crivadas
das minhas cabeças de leão,
de ressacas e marés,
enquanto, alados no trovão
que lhes racha
o casco, os zurzo.
 
Escrevo isto à janela,
debruçado sobre o pomar
onde medram as laranjas azuis
que o Éluard me surripiou.
Morcegos chegados dos Cárpatos
sugam-me,
página a página,
a réstia de sangue
que me sobrou.
 
 
 
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA
 
 
Lá fora, adivinha-se,
                      o vento
espumeja
nos jacarandás,
 
refracta a alba,
na leve 
ondulação dos reposteiros,
 
luz que alastra o couro
aos sapatos,
      de novo castanhos,
 
à capa do livro que caiu ao chão,
enquanto a alma,
em atraso
torna agridoce a mostarda do sol.
 
Morre em carne viva,
                      a noite,
e as palavras sonâmbulas,
      dissipam-se
como a chuva –
                      desmemoriadas
e preliminares
 
 
 
 
 
 
FECHADO PARA BALANÇO: NATAL DE 2011
 
 
                   para o Diogo Vaz Pinto e o Nicodemos Sena
 
 
Intratável, o tempo arqueia o arco
e visa o silêncio escorchado
que me espera.
Na aflição de um peixe,
dou comigo sentado na pedra de um cais
(— imagino, lá dentro as miúdas rondam
as prendas na árvore,
com incontida, iridescente, alegria
— só eu me divido
como as células nas veias de Deus).
 
Calo-me, sou o homem a quem diante
do mar convulsiona a orla
das suas pequenas e grandes dívidas.
Respiro, neste débito,
como o pequeno livro que ontem me chegou
e encontrou um tapete de azedas
sobre uma língua morta.
 
Como agradecer à vida, aos amigos,
ao barulho dos seus passos,
aos seus primeiros estratos de silêncio?
Eu, tão imperfeito, um bogartiano
bêbado sem pátria,
e tantas vezes confundido
com as personagens que me povoam
a boca de vinho de palma?
 
Havia tanta coisa a dizer sobre o erre
de sopro, por exemplo,
o tutano de chumbo
no voo dos flamingos.
De antemão, inúmeras coisas a rogar
ao informulado: que repare nas portas,
precisamente as portas, que adernam
como navios,
e como o que escorre no mel
é a reversibilidade de pensar-se abelha.
Mínimas, irisadas singularidades
que enchem de favos
plenos o vazio.
 
Há dois dias que não despego deste verso
de Blanca Varela:
golpeamos com o osso
de uma flor na treva.
Intuo nele que o grão da terra é o graal,
como a pelagem nas pedras,
e que aflui a cicatriz do herpes
ao consentimento do amor.
 
É Natal, e é-me mais fácil conversar
com a eternidade
do que com amigos e filhas.
Talvez porque a eternidade de mim
já não espera nada.
Mas pressinto neste lapso — gaguez
em gótico — o que separa
a infame impostura de quem sabe
da profunda humanidade de quem nasce
para o inacostumado.
 
Não sou religioso, permeia-me
porém a sensibilidade das árvores
a quem apenas o vento restitui
a lembrança de uma culminação
em delta, verde.
E só no exterior dos meus limites
me identifico,
como as pedras esculpidas nas igrejas.
 
Sempre que o amor me quiser,
rezava uma canção da minha adolescência
e agora, maduro como o fruto
que adoçou, desajeitado, a lâmina
até ao cabo (— estranho pendor imaterial),
avanço cego pela evidência
de que as orelhas se esquinam
para me salvar da ventriloquia.
 
Ainda que não haja outro caminho:
para passar além da morte preciso é
estar grato aos que nos chamam
do país dos mortos.
 
 
 
 
 
 
EXPERIMENTAR O CARREGADOR — A MEDO, ESPERANDO O DERBY
 
 
A beleza disto só a adivinha
quem reconhece no gala-gala
a glote de Deus.
Ao fundo, a baía reparte-se em ínsuas,
penínsulas, em bandos de flamingos
que voltejam ao redor de carcomidas chaminés
de tijoleira gris.
Sento-me na varanda, puxo
de um cigarro, de um maço que um amigo
esqueceu, e acendo-o, entediado
de morte, preso ao desejo
de que um arame farpado
me solte um a um nos pulmões os alvéolos
da morte — que tétricas imagens,
recrimino-me,
numa segunda passa funda.
 
Nada do efeito de Apolo III
a levantar voo num leve enjoo,
como quando era miúdo e fumar
era a mais insurrecta polpa inadiável.
Passa uma terceira ambulância,
está um dia de massacres,
a rua está cheia de castanhos
como diz a minha filha, pela manhã,
entre sorvos de leite, antes
de ir para a escola
— amor, trazes-me um copo de vinho?
 
Um petroleiro rasga a baía
como uma fita vermelha.
Chega de cores, que saudades de Évora,
reencarnasse Leonardo no século XX
e só pintaria panejamentos brancos,
uma por outra nódoa
de cereja nos tecidos.
 
Não me apetece ler e temo
que o novo carregador, por diferença
de amperes, me lixe o computador
antes do fim do poema,
talvez seja esta a vera morte ao sol,
sem sinos que dobrem por ti,
por inércia, uma morte por delicadeza,
por extrema delicadeza, assobiaria o Rimbaud,
de perna aberta diante do ecrã
no retardado desejo de esterilizar,
de apagar o mais secreto
gume da infância.
 
O teu avô funileiro
havia de gostar desta desordem,
tantos à nora,
quantos saberão ler, interrogas
olhando a mole do telescópico
nono andar, e, merda, faz um desurbano
sentido a questão,
aqui, 30 séculos depois de Toth,
o deus egípcio ter inventado a escrita.
É tramado.
 
Acendes um novo cigarro — trazes-me
a garrafa? Logo é o Benfica-Sporting,
que ganhe o leão
e que o Pimentel faça hart-trick,
só para lhe voltarem alguns cabelos negros
às cãs.
Que melancolia espúria,
suspiro, saudoso de comer pêssegos
(tão raros nos trópicos)
ou de ser uma traça no cortinado
da presença, enquanto me mortifica
a espessura da manga
que pressente a rasgadura
do pedúnculo.
 
 
 
 
 
 
FALA DO ACTOR
 
 
Trazer algo à tona não é fácil.
Todos os dias tenho de remover o galgo
de porcelana, preto,
que vem dormir à minha sombra.
O drama é que todos os dias é maior,
o cão de pechisbeque.
Malditos chineses.
Não acredito que seja algo pessoal
É como um tique que os domina.
Daí que calhe pela manhã,
remover o galgo.
Pesa, o sacrista.
Cada dia é pior, como expliquei.
Só depois me aventuro a trazer algo
à tona. Grave, é que nem sei
explicar o que momentaneamente
aflora. Pratico a acção
 de construir acções
— não chega? Dói
como cem metros de crawl na gelatina.
Forçar o invisível a mostrar-se
não é simples e, o maldito,
ri-se dos objectivos estabelecidos à priori.
Não me serve de nada o treinamento
de actor, ser esfolado
vivo não é uma possibilidade expressiva
mas o próprio desejo da terra
quando o inverno
chegou ao ponto mais baixo
do seu desapontamento
e daí surge, aflito, um broto,
um pio de cotovia,
a minha mutação ao espelho,
emaciada pela palavra
com dois furos nos olhos
que impelem num vago sentido de direcção
como aos girassóis quando o vento
lhes chega o gume.
Só assim me liberto da minha pele,
inútil pele de serpente, e
(reconheço-o por um ardor
muscular e o vómito
de ter acabado de cuspir
todos os vermes da minha morte),
emerge à tona algo
que desconhecia e reclama lugar.
Pulsa-me no palato,
nos pulsos, no coração
que me verte em veia alheia
e me coloniza.
 
 
 
 
 
 
NASCIDOS DE UM RISO NAS LÁGRIMAS
 
 
1
 
Tudo em redor luzia nas mesmas trevas
que levaram o teu coração a achar um pássaro
na gaiola.
Sonhemos então,
nascidos de um riso nas lágrimas
 
 
2
 
Ah, com as tréguas do tempo posso eu bem,
quando pacifica e as mãos em concha
acomodam o bule.
Já não sei que lhe faça quando tagarela
como um insone.
 
Ah, viver como animais e manejar
o cálamo, isso é que era,
redigir, na avalancha da infância,
a pedra do e a rolar até degenerar num u
— isso é que era.
 
Mas o apelo à eficácia, esse entalhe
dos desertos que sósializa a vida,
não deixa que se vulcanize a alegria.
 
E que eu faço eu ao tempo que não se cala?
 
 
3
 
A secura daquele beijo
foi devorado até ao osso.
 
 
4
 
Baralhou todos os joelhos
da sua vida ou foi por eles baralhado?
 
É quase um prodígio ficar tão à nora,
do lado de fora de joelhos
que como preciosos tentáculos
o agarraram à vida em álgidas
noites de inverno.
 
Mas qual deles calou mais fundo
em si, escondido nos eflúvios?
 
O vento evade-lhe os nomes
e já os pormenores são trevas
 
 
5
 
O vento folheou a ave
até ao fim,
na sua primeira lição de geografia.
 
Depois ficou transparente
a tal ponto que a ave voltou ao ovo.
 
 
 
 
 
 
RETRATO DE BECKETT
 
 
E num relance é-me evidente: a estreita cabeça
do Beckett é uma armação totalmente vegetal, 
que emerge dum pescoço filiforme
que quis chegar às estrelas mas se resignou em talo
e em cuja metade pulsa, inútil,
uma vagem do tamanho dum amendoim.
Num relance, isento de estigmas,
é-me evidente que a leitura da sua acostumada imagem,
entre ave de rapina e angústia,
lhe vem da extrema lentidão, uma lentidão
de estuque ainda fresco, da lenta fruição da clorofila
que o autor partilha com as suas personagens
e até no modo recalcitrante como lutam
& lutam consigo mesmas, pelo vão ensejo
de parecerem mais activas que contemplativas.
Fito-lhe o retrato imaginando que planta
há-de ser tão emaranhada. Como se ele em criança
tivesse queimado o rosto com uma máscara de funcho.
Peço um Grants, quero vê-lo reflectido nos estalidos
do gelo, e então ouço-o segredar-me, num irlandês
de duas gemas de ovo: "Creio que inventámos
o amor para que Deus não se suicide!".
 
 
 
 
 
 
POEMA DE NATAL PARA O PAULO MIRANDA E O COTRIM
 
 
Sente-se de repente a meio duma frase
que estamos em convalescença
e um bosque avança no eco da casa
 
em sete divisões que a luz decompõe
como às serrilhas deste selo de Veneza
que martela no coração fatigado uma viagem
 
por fazer a viagem por fazer,
a vida por achar num caminho desimpedido
de chaminés de mármore preto.
 
Podia ser verão a meio desta linha
que a vida transformou numa longa carta
esquecida na cómoda que foi a leilão.
 
Somewhere, o lento processo de decomposição
do outro, tão inábil em admitir
que o lugar dos bolsos era o púbere desejo do mar,
 
avança, inexorável, mas paralelo à exaltação
quase imperceptível com que o túmulo
mudado em balaustrada sobre a desova dos salmões
 
se cala para não dispersar a vida —
porque só é irremediável a manhã
em que não fizemos amor.
 
A meio deste instante recebi um mail
a falar-me duma sombrinha chinesa
esquecida no miolo dum passaporte
 
roubado e que reapareceu em Curibita,
segundo o informe que recebi da polícia local.
Foi o inédito da sombrinha, assegura
 
o comandante Matias que os impeliu
a procurar-me num reenvio transatlântico.
Milagres para um gentio
 
que ao contrário dos reis magos nunca pernoitou
no Hotel de La Vallée, onde, dizem
que uma estrela faz cirurgia a um planeta
 
já descrente de que haja rapazes de olhos cor-de-rosa.
Por isso me parece a vida mais simples
do que antes: já não sou o guarda da prisão
 
e a alegria começa no puré de castanha
e nos salpicos de sal a meio de um umbigo
donde despontam petroleiros e uma asa
 
do mamilo que desenha um fio de sangue
na nossa boca. E já não passa a horas fixas
o comboio mas sei que ele passa
 
e me transporta aos jardins submarinos
do Niassa e aos rigores da criança que nos vê,
bêbados, e cruelmente mijados de compaixão.
 
 
 
 
 
 
A LINHA DIVISÓRIA
 
 
Sentir o cansaço nos ossos: a linha divisória,
o momento de passar à sabotagem
e de me abster de aliviar Deus do tédio.
Novo rubor e desígnio.
 
Julgar que a serenidade busca os clamores
da «luz absoluta» é uma tola ideia fixa
que tem de ser banida,
como a de cavalgar o crocodilo.
 
Preferia cavalgar o Shakespeare —
que mongo cavalga a Besta
para analisar o tipo de sangue que lhe corre nas veias
e se um rudimento de magia lhe veda os furos?
 
Quando muito, supor que em cada fissura
da realidade nasce um lírio,
a culminância do limo, esse sim, pioneiro,
e que o negativo de Deus
é outro Deus em gestação.
 
Abdiquei de ser um homem de armas
por odiar os colectivos, sou mais da dança,
da espontaneidade sem remoto controle,
a sós ou com a breve nata
do amor batida em castelo.
 
Escorregar no limo e bater com as costas na pedra
é que promete o lírio.
Um rio com um kilt escocês.
Fino como este copo que me entranha.

 

 

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António Cabrita (1959, Almada/Portugal). Foi jornalista durante 23 anos, 17 anos no semanário Expresso, de Lisboa, onde escrevia crítica sobre livros e cinema. Em 2004, emigrou para Mocambique, onde ainda vive e é professor universitário na Escola de Teatro. Tem 20 livros publicados e nos últimos anos os seus volumes de ficção têm reunido consenso crítico, nomeadamente o romance A Maldição de Ondina (2011, no Brasil e 2013, em Portugal), finalista dos prêmios Telecom no Brasil e Grande Prêmio da Póvoa de Varzim (short list), e Éter (março de 2015), um livro de contos. O seu último livro, Um Espião na Casa do Amor e da Morte (novembro, 2015) é uma reportagem/manifesto contra a violência de gênero. Tem dois livros de ficção publicados no Brasil.