~

 

 

Pai, eu queria dizer que tô bem

Que tenho as unhas pintadas, agora

Já não brigo mais na rua

nem destrato as visitas

Não bato mais cartão

em buteco de sinuca

Queria contar que também

joguei fora os contatos

dos traficantes

e meus amigos da farinha

estão todos distantes.

Agora eu durmo à noite

e caminho de dia

E que eu to comendo direito,

que nem gente

Hoje eu ando bem na linha,

pai, o senhor teria orgulho

se me visse assim, agora,

bem mocinha.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Pai,

[ Eu quero dizer

Agora o oposto do que eu disse antes ]

 

Tô bem loka, faceira, enchendo o rabo

de dinheiro

nesse bar que eu trabalho: sirvo e danço

toda noite

além das gorjetas, que são generosas,

sou atriz dançarina vaidosa num palco fuleiro

que armaram pra mim

cheio de luz negra

às vezes um neon me cega

mas eu continuo grudada

nessa barra de ferro que puseram

aqui no meio

e eu me esfrego nela

com tamanho desespero

que quem vê pensa que eu nasci

pendurada no poste

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Porque eu nasci rachada

partida no meio

toda aberta

ausente de proeminências viris

e por isso não podia

sentar arregaçada, que nem meu irmão

andar sem camisa ou trepar nas árvores

não podia brincar de lutinha, porque era

muito 'agarramento'

Eu saía quebrando tudo, de raiva

revoltadinha

quando ganhei o primeiro sutiã

queria ter feito um estilingue com ele

pra jogar pedra no telhado da vizinha

 

— aquela faladeira!

 

Mas qual!

Fui é virar alvo

das pedradas

na vida

(muito Geni)

 

 

 

 

 

 

~

 

 

E eu vou me auto promover, porque é assim que eles fazem. Vou me mostrar bastante, porque é isso que eles querem. Eu sou atriz sem palco e tenho sonhos tão vermelhos que as miríades não abarcam. Eu danço, danço muito. E vou aparecer contorcionista malabareando proezas, porque sou exibida e eles querem minhas curvas, mucosas e entranhas. Vou expor o que se pode enquanto posso, porque é isso que a gente faz quando tem corpo e tem cabeça, ainda. E porque essa vida corre, ligeira, eu vou correr na frente dela e me botar enfeitada na frente de uma lente pra registrar que um dia eu tinha muito cabelo e todos os dentes.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Aí que eu resolvi rezar. mas no meio do 'Santificado seja o vosso nome' entrei com um 'Bendito é o fruto do vosso ventre' na sequência. Dei risada de mim mesma e pedi perdão pela confusão, faz tempo que não rezo e sou de todas as religiões, o Senhor sabe... Então mudo o foco: peço ao Universo que... pedir o que mesmo? Esqueço o que eu queria, e simplesmente digo: Valeu, Povo todo aí de cima, por tudo o que sou e pelo pouco que tenho. E a gata se aconchega no meu ventre e me atrapalha a reza e eu digo um Amém sonolento e tento ainda fazer um sinal da cruz meio torto e já pulo direto pro sonho: eu vi Deus e o Diabo rolando dadinhos com a sorte dos homens. Foi um sono violento.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

A convivência é hardcore, a convivência é quebradeira, pedra rolando morro abaixo; a convivência cansa e arranca meus pedaços. A convivência é braba feito bruxa rogadora de pragas. A convivência tripudia meus sonhos. É castradora, limitadora e ceifadeira de asas.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Porque eu exijo perdão de joelhos na porta da minha casa. sem florzinha, me traz uma sandália bonita, uma garrafa de vinho caro, um ingresso pra show, entrada de cinema. Nem me vem com chocolate, sasporra que engorda a gente. Se ajoelha e tira da sacola um pacote de maços de cigarro, filtro vermelho. Bota aquela música da Sandra Rosa Madalena e vem fazer escândalo na minha porta. Joga pro alto e faz malabares com as petecas que te pedi, depois me puxa pelos cabelos, morde o meu pescoço e me chama de cadela vadia.

 

Só depois vem falar comigo.

 

 

 

 

 

 

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Ajoelha na brita. Saca um coelho manco da cartola, cor-de-rosa. Reza a prece de Cáritas de trás pra frente, 3 vezes. Diz que não pode respirar sem mim, diz que vai morrer. isso, diz que não vale o que come, que não merece viver. Diz que eu sou a Rainha do Cabaré e que vai me levar pra Romênia e montar um acampamento cigano comigo. Me leva pra fazer aquela tatuagem GIGANTE no quadril. E não me vem com anel, que anel é coisa de mulherzinha. Traz bebida e qualquer substância ilegal. E invade a minha casa porta adentro, sem pedir. Não espere convite.

 

Só depois vem falar comigo.

 

 

 

 

 

 

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Me encontrar é fácil:

eu venho sempre pela esquerda, cigarro na boca,

na contramão.

Vou estar de flor no cabelo, brinco de argola

e saia rodada

Te espero girando, depois do cemitério

pode contar

tô na sétima encruzilhada

 

 

 

 

 

 

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Tem gente que morre de medo. Medo da noite, como se quando chegasse o escurecer não se pudesse mais andar pelas ruas. Tem gente com TOC de Toque de Recolher Interno, medo do preto, medo do escuro, do bicho papão de rua, do véio do saco, da cigana enganadora espreitando na esquina. Medo de (re)cair porta adentro num barzinho, ou na conversa de um 'brother' que tem e que traz. Puro medo. Eu sinto tanto, porque adoro neon, barulho noturno, fumaça e as pessoas da noite, bicho vampira que sou. Perigo é o monstro dos outros. O meu sai da jaula quando quero!

 

 

 

 

[imagens ©lana prins]

 

 

 


 

 

 

 

Ana Farrah, gaúcha da leva de 81. Esteticista e escritora, faz poesia entre uma massagem e outra. Tem poemas publicados pela Editora da Tribo e revistas eletrônicas como a Mallarmargens e Incomunidade (Portugal). Escreve o blogue Boneca Quebrada. Em 2016, lança seu primeiro livro de poesia: Orquídea Trepadeira e Outras Flores Ordinárias, pela Editora Benfazeja.