estação da carioca
é lenta como uma pedra
compra chocolate embrulhado
em papel alumínio
antes de pegar a condução
sentido zona norte
na hora do rush nem precisa
se esticar na barra
basta se ajeitar entre os passageiros
a bolsa quer escorregar do ombro
talvez não chegue a tempo
o jeito é virar para o vizinho
e recitar com dicção impecável
um poema de amor
happy end
um poema feliz
seríamos nós dois
caminhando feito
bobos
de risos e galáxias
com passos de dança
numa rua sem gravi
dade somos dois
astronautas
indo comprar pão
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eu sabia
que mesmo depois que me
despedisse e fechasse
a porta
e descesse todos
os degraus troteando
a escada em espiral
e entrasse no táxi, boa-noite
siga reto, por favor, à direita
o troco, obrigada
e acenasse pro porteiro
mesmo depois que eu apertasse
o botão do elevador, procurando
o chaveiro na bolsa
abrisse a porta de casa
tirasse os sapatos, os brincos
escovasse os dentes, os cabelos
mesmo depois que eu
dormisse e sonhasse e até a hora
em que acordasse, você ainda estaria
com os olhos
presos
à porta
françoise
de novecentos e vinte e cinco
rolos de filme, alguns clichês: françoise
arruma as malas para vir me visitar
em paris, diz que gosta daqui só no inverno
no verão fica quente demais e os pés
incham. curativo nos dedos
um beijinho que sara, françoise
carrega a sua câmera por todos os cafés
da cidade, pede o menu e sorrateira vai
ao banheiro, grande admiradora
de azulejos e sabonetes. fotografa
também o croque madame, já na mesa
quando ela retorna, fura a gema
com o garfo e acha muita graça
no amarelo colorindo pão presunto prato
françoise faz origami com o guardanapo, monta
na bicicleta e acompanha a velocidade
dos carros, aperta botões um cinco três oito
senha correta e a porta se abre num plec
françoise sobe as escadas chardon lagache 92
revestidas de carpete, papel de parede
creme, e despeja sacolas no sofá
françoise sempre diz que teve um dia
e tanto
cine palácio
sentada no sofá
do cine palácio
caderno na mão rosto sem
maquiagem espera terminar
a sessão de indiana jones
às oito e vinte
os dias têm sido longos
e não chove há três semanas
a promessa de que algum dia
vai morar
bem longe
o senhor na bilheteria
reclama do preço do ingresso
não tem meia-entrada? a mocinha
é irredutível
luz fraca e quadrados
de mármore nos pés
uma vassoura esfrega o salão
nenhum sinal de besouros
ou fuligem de mariposa
[Poemas do livro Dobradura. 7Letras, 2008]
__
um enorme rabo de baleia
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d'água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela
os primos
era número 48 a casa amarela
uma escadinha e uma árvore
bem pequena na varanda
que de vez em quando dava jabuticaba
tão mirrada que nem em faz de conta a gente
sentia gosto de fruta
todo dia era dezembro na rua
miguel pereira mesmo quando chovia mesmo
naquele dia do tombo
de patinete o meu grito ecoando
e o seu espanto até quando a gente
discordava da cor de certas tardes ou quando
aprendeu junto a deslizar nas bicicletas
alguma coisa sempre escurecia
de noite uma vontade de ficar um pouco mais
os carros dos pais que chegavam
como besouros lentos e gordos
os carros que não deviam
não podiam
__
há aquilo que fica firme (um poste)
e não comove e há o que se mexe (uma árvore)
e faz barulho e chega a parecer um polvo com tentáculos
tentando agarrar as nuvens, ao contrário
das montanhas muito firmes
e sérias e certas de onde estão
mas há também o que se movimenta
rápido demais na moldura da janela: um pássaro
sempre pode ser uma andorinha ou uma águia
e um avião nunca sabemos
de onde parte para onde segue
ausência
tenho te escrito com calma
cartas em um caderno azul
arranco da espiral e não posto
por preguiça ou nem morta
tenho medo da espera
durante dias ou semanas um animal horrível
(espécie de raposa) vai me perseguir
por dentro, ou serei eu mesma
(um rato?) a me roer
enquanto a resposta não chega
perco muito tempo tentando
dar nomes aos bichos
que sobem a cortina do quarto
__
abro o envelope
e espero praias grandes paisagens
sua letra miúda contando coqueiros
a data à caneta
marcando meses anos
que não nos vemos. mas o envelope
branco e frágil
traz estrela cadente na borda
anéis de saturno onde você talvez esteja
um homem-palito astronauta
boiando num céu estrelado. você talvez
tenha desenhado numa noite de lua
nunca vou saber
onde foi que gravou
esse sofá amarelo, essa porta de geladeira
numa cozinha de pedra são tomé
uma cadeira sobre fundo
de azulejos verdes. me pergunto
se diante de tantas paisagens
por que você só me mostra
os cantos das casas por onde passou
nenhuma janela aberta
nenhuma amostra
se faz sol ou chuva
se aí também amanhece
__
desenhava tudo o que via
com uma estranha compulsão
passava cinco, seis horas na frente
de um quadro, uma maçaneta, um pastel de nata
completamente absorto
sacava do bolso o lápis
corria para rabiscar, depois anotava
a data ao lado, a rua, nada
se perdia no caderno
enquanto isso eu aflita queria repetir
o gesto, documentar tudo, dizer do gosto
da canela no pastel de nata
do primeiro dia azul de lisboa
mas não escrevia e com pressa para registrar
me tornava burocrática
no diário: hoje fomos de trem, estava quente
[Poemas do livro Rabo de baleia. Cosac Naify, 2013]
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