~

 

 

levar o copo à boca

sempre na mesma inclinação

e com a mesma força

aplicada ao bíceps

levantar da cama

sempre pela lateral

girar o corpo noventa graus

primeiro o pé esquerdo no chão

depois o outro

as mãos apoiadas sobre o colchão

então flexionar os joelhos

e impulsionar de leve

até que tudo esteja de pé

erguer os braços pro alto

alcançar a máxima estatura

que o corpo admitir

se nada falhar

caminhar até a cozinha

ferver a água

soprar o chá algumas vezes

antes de beber

continuar, continuar

 

 

 

 

 

 

~

 

 

me desculpe se estou roubando

as tuas mágoas

e se, sem permissão, incluo nos poemas

o tom lilás das tuas olheiras

e a temperatura das pontas

dos teus dedos quando encostam

nas minhas orelhas durante a noite

 

e me desculpe se não lhe pago bem

por falar dos ombros,

sapatos gastos cheios de pó laranja

e maçãs do rosto cor de pólen 

nada disso é de ninguém

as coisas servem a quem pegar primeiro

 

essa tristeza vaga

essa estrada e a colher de prata

o chifre dourado na entrada do bar

o que sobrou da janta, uma palavra espessa

a vertigem que vem no hálito do instante

e se dissipa em dois ou três segundos

nada disso é mais de ninguém

 

 

 

 

 

 

~

 

 

tenho um apartamento

que é alugado

mas serve de abrigo

do frio e da chuva

enquanto durmo

ou desenho

não preciso lutar diariamente

pelo território

e isso me economiza tempo

e energia

posso armazenar alimentos

frutas verduras aveia

na dispensa

posso congelar carnes e peixes

e preparar só mais tarde

quando tiver fome

não preciso caminhar muito

para obter água limpa pra beber

e tomar banho

tenho um chuveiro elétrico

e algumas toalhas cor de caramelo

não preciso esperar que anoiteça

para poder ficar só no escuro

e nem esperar a claridade do dia seguinte

para ler um pouco

posso facilmente apagar

ou acender as luzes do quarto

sempre que tiver vontade

não preciso montar vigília

proteger a prole dos predadores

posso afiar as unhas

no amolador de facas

 

 

 

 

 

 

~

 

 

não há nada a dizer

aos que cometem pequenos furtos

roubando lenços ou termômetros

não há o que dizer aos domingos

— nem nunca

não há nada a dizer quando se está doente

e nem diante de uma plantação de onde não se enxerga o fim

não há o que ser dito pela manhã

nem sobre de um livro de poemas

escrito em polonês

não há o que dizer no elevador

nem na sala de espera do dermatologista

não há o que dizer sob um céu um pouco esverdeado

ou quando morre um búfalo

o peso imenso desabando inteiro

ou no instante imediato em que se despedaça

um vaso de porcelana, nada

pode ser dito aos que perderam as mãos

ou os dentes permanentes

ou àqueles que se prestam

a preencher com concreto os buracos do passeio

a estancar com prata os buracos da cárie

a encobrir até a boca de terra

uma muda que não vingou

 

 

 

 

 

 

~

 

 

olhar os poemas estirados

como se fossem bichos

ao se espreguiçarem demorados

com a mesma sonolência

imprópria dos lagartos ao sol

olhá-los depois do almoço

tão mansos em completa calmaria

notar como se desdobram

esticando os braços

até o fim dos tablados

 

 

 

 

 

 

~

 

 

passei anos achando que sabia o significado da palavra soleira

e cada vez que ela aparecia no começo de um conto, luminosa

alguém chegando

ele estava de pé, parado na soleira

imaginava uma área predestinada ao sol

uma espécie de clareira da casa, arroubo, estufa vazia de vidro e luz

rebatimento geométrico do ar

feita para apenas esse propósito: o de ser o lugar do sol

 

 

 

 

 

 

~

 

 

os objetos hoje grudaram

na bandeja estão fundidos na pia

de granito e no fundo cristalizado

do congelador

as coisas perderam o nome

uma está colada à outra

corais a cristais de prata

cristas de galo a cristas de mar

ossos se uniram em estrutura sólida

constituíram novos esqueletos, bichos

esdrúxulos prédios em forma

de aracnídeos

tudo é tão a mesma coisa

as lombadas

das ruas e dos livros, aquelas

que fazem teu corpo

travar minhas mãos na descida

a chaleira de alumínio que reflete o dia

é também o próprio dia

amarelo

é pelos estetoscópios

que se repete a canção cardíaca

que alinhava tudo

tumtum — tumtum — tumtum

como faria um imenso mamute em marcha

 

 

 

 

 

 

~

 

 

o grande cansaço pode ser azul

o grande cansaço se aleita sobre a casa

de forma lenta

desce pela calha e se aloja no meio dos móveis

a procura de sombra e umidade

é azul cobalto e arfa arrastado

 

o grande cansaço não tem dentes

nem limites ou braços

expele uma espuma ininterrupta

que lembra, de longe, as claras em neve

em repouso

o tédio é visto do sofá

 

seu peso afunda os tacos em U

e com isso,

os pequenos artefatos escorrem todos pra lá

todos agora orbitam o bicho

e respiram juntos o seu mormaço abafado

 

 

 

 

 

 

~

 

 

I.

o copo d'água é menos fidedigno

— no som — do que os carros

os carros, de longe, podem imitar melhor o mar

 

 

II.

o ônibus ao frear tarde

no semáforo fechado

relincha tão igual a um cavalo

que quase podemos

avistar a cor terrosa e reluzente

que ele espelharia

 

 

 

 

 

 

~

 

 

não vemos as coisas

despedaçarem

e no instante imediato

em que elas acontecem

não notamos uma vértebra

quando se rompe esbranquiçada

mineral e porosa

em fiapos

não vemos as pontas das unhas

passarem de rosa para brancas

ou um fio prateado despontar no mar

espesso de cabelos pretos

não vemos, grau a grau,

a temperatura cair de tarde

nem a tristeza minguar pelas horas

as coisas de repente são

uma cárie

um passo e de repente um tombo

algo mordido

um rasgo no vestido novo

um colar de pérolas, as pérolas

espraiadas pelo chão

o café que já esfriou

 

 

 

 

 

 

~

 

 

se nunca tivesse havido

as metáforas

ainda poderíamos trocar

um punhado de cerejas

pelo encosto ainda quente

no banco de trás do carro

um calhamaço de papel sulfite

por dois ou três versos livres

por dois dentes do siso

por quatro incisivos

pelo voo circular e ininterrupto

de um urubu

por um pacote de carvão mineral

por um livro sem capa

por uma imagem fosca de um submarino japonês

por uma magnólia branca

ainda poderíamos trocar

um pedido de desculpas

por um sorvete de avelã

se nunca tivesse havido as metáforas

ainda poderíamos trocar o silêncio

por um copo de leite

 

 

 

 

 

 

 

~

 

 

temos nossas linhas de nazca

do avião brilhamos

lá embaixo

como se fôssemos uma coisa só

um mapa aceso sob as estrelas

do organismo, as sinapses

temos nossos caminhos escavados

no deserto

funcionamos por intersecção

por difusão por contato

alguém inventou a lâmpada

hoje todos temos lâmpadas

lanternas piscas refletores

temos como passar de um cômodo

a outro

sem derrubar nada

nem mesmo os abajures

podemos enxergar nossos braços à noite

enquanto nos erguemos para apanhar

alguma coisa na estante

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ana Estaregui (1987) nasceu em Sorocaba e vive e trabalha em São Paulo desde 2005. Formada em artes visuais pela FAAP, publicou seu primeiro livro de poemas, Chá de Jasmim (Editora Patuá) em 2014, com um projeto selecionado pelo ProaC de Poesia. Em 2015, publicou um livro de contos, Buracos, pela editora digital E-galáxia e foi selecionada em 1º lugar no concurso de contos OFF FLIP de Literatura. Seu próximo livro, Coração de boi, é o segundo contemplado no edital de poesia do ProaC e sairá pela editora 7letras no final de 2016.