Nova Estação

 

 

Restava apenas uma cama de mogno

Esculpida a oito peças de metal

Caixas empilhadas

 

À espera do caminhão

O pai prostrado sente as

Cólicas de um parto ao revés

 

Espreitando o fim morre um bocado

Volta vermelho Almodóvar

Uma vitoriosa forma de ser e de ver

 

Nas vísceras nas maçãs nos dias úteis

Quis sentir qual era o gosto da despedida

Estendeu a língua sobre o entalhe de pétalas

 

Seguiu com a língua todo relevo

Que conferia à forma uma leitura diversa

Rastro de pó madeira e vertigem

 

Um filete de sangue pinga

Um brinde à nova estação 

Ao fim restou apenas vago cheiro de mato e terra

 

 

 

 

 

 

Primeiro Encontro

 

 

Qual é o gosto da tua língua na minha boca?

— Imagem de algo raro escorrendo

 

Dada a chance de escolher qualquer pessoa no mundo, quem você socaria?

—Estamos mais hipócritas que festa hétero

 

Kit Kat?

—Ninguém tá te pagando pra fazer merchan, Yasmin

 

Toda vez que viajo lembro

— O número de obesos já ultrapassa o de desnutridos

 

Desempregados mas diluindo nosso sangue em água

Era beber sem supor alguém após o drinque

 

O limite da função histórica do sujeito

— Planetas decidindo sobre vidas

 

 

 

 

 

 

Microbiografia poética de Hélio Oiticica

 

 

Processo de subjetivação que leva a si mesmo

Desregramento dos sentidos desintelectualização

Uma aposta no homem uma aposta na posteridade

José Oiticica fotografava genitais de insetos

O que move em direção a uma escrita poética

Tangenciar não é uma extensão não está vinculado

Não reivindica — a não ser si mesma — abre outro mundo

Saber vinculado à vida do povo que vive, fala, samba

O povo não é uma abstração do intelectual uma ruptura

Camponês pobre operário pobre burguês esclarecido

Seja Marginal seja herói começa a fabular contar histórias

Vagar, progressão na escrita, fonte, trama, especialização

Multilíngua, produz e não publica, alimenta produções

Escreve poema e não vira poeta roteiro e não vira cineasta

Subversão da ideia de produção e resultado conglomerado

Se Duchamp pode jogar xadrez por que não posso usar coca

O lugar do impossível loft na quarta avenida em NY

Parangolés que não se movimentam com que não se samba

Grafia visual transbordamento do real, cartas

Subterrânea Tropicália Project leitor ávido desde criança

Compreendi so agora o caráter inevitável da minha escrita

O cinema é um lugar chato obra não é resultado de trabalho

Artístico a vida não é binária as coisas se intercalam

Entrelaçam Information, São Francisco, Londres

A culpa é do Gashman a proposição é documento

Sugestão de ideia para o outro disso não fica nada

Haroldo é uma galáxia de paginações indefinidas

Os textos eram bloco experiência über coca Freud

Interlocução criativa hiperlinks uma vizinhança

Constrói lugar de outra multivocalizada polifônica

Blow me baby lets spend the night together

in between the sheets like a rolling stone

toxonomia psicotrópica da cor da forma em sua

própria plasticidade a coca é pigmento newyorkaises

Jimmy Hendrix e Nietzsche na mesma potência de saber

A semente é o branco da cadeia dissolúvel não dilui

Luminosidades superfícies ir além da fala e da

Materialidade visual who cares?

Maníaco químico morre pólen whatever

o que eu fiz é só o prólogo a vida começa agora

 

 

 

 

 

 

Manuais

 

 

A gente sabe que está vencendo no capitalismo

Quando nos procuram pra falar só de trabalho

 

Você me diria ah,

mas qual a necessidade disso

tudo que fazemos vira poesia, tem eco

 

Ao passo que eu ué,

você fez uma panela enorme de lentilhas essa semana

qual a necessidade de toda essa lentilha?

 

Essa desistência é provisória

Tudo será superado

Domingos transgênicos tabagismo danças húngaras

 

Talvez seja mesmo de aceitar

Que a toda hora há alguém traduzindo

— mal traduzido

Uma obra do Nietzsche

 

 

 

 

 

 

O Sonho

 

 

Sonhei com Paul no metrô

Ele se detinha em minha orelha e disparava

De onde vêm todas essas pessoas solitárias?

 

Algo terrível acontece todos os dias: acordo

 

Minha mãe tenta me animar

Vamos olhar as modas?

 

Aqui tem uma linha, visualiza

Aqui você, eu do outro lado

O entorno é um museu

E essa é a funcionária pedindo

Encarecidamente não ultrapasse

 

Entenda, não porque sou rara ou valiosa

É que nessa fase da vida

 

Eu não tô podendo parar de fumar

Eu não tô podendo abrir mão da carne

Eu não tô podendo pegar ebola

 

Tudo que almejo é ostracismo

Você faria melhor uso do seu tempo

Polindo a prataria

 

 

 

 

 

 

Um poema para os Rolling Stones

 

 

Quatro anos de graduação

Dois anos de mestrado

Seis anos de alemão

E quando vejo essa porta vermelha

Ainda quero pintá-la de preto

 

Não tenho mais paciência para amar

Talvez devesse praticar o zen budismo em Copacabana

Custa vinte reais a sessão de zen budismo em Copacabana

Eu não poderia praticar o zen budismo em Copacabana sendo mesquinha

Deixa pra lá começa sete da manhã o zen budismo em Copacabana

Não é que eu seja mesquinha é que eu não tenho pra dar mesmo

Tudo é uma questão de logística

 

Ando refletindo sobre estreitar relações com minha espiritualidade e

Fora da faixa de pedestres um carro em alta velocidade quase me atropela

—Tá maluca, quer morrer?

—Talvez eu queira sim, seu idiota!

 

Às vezes perguntas tolas me vêm à cabeça

Como assim você é fã dos Beatles

E atravessa fora da faixa

 

Às vezes pensamentos malignos me vêm à cabeça

Sabe o que cairia bem agora

Você de um prédio

 

 

 

 

 

 

Um poema para Gertrude Stein

 

 

Baixo a música para ver melhor, exatamente como você, como você exatamente, eu só, como você, eu só como você, eu sou como você, tomo trens, tomo cachaça, tomo raiva, exatamente como você, como você exatamente, eu só como você, eu só, como você, eu sou como você, baixo a música para ver melhor.

 

 

 

 

 

 

Ainda assim sigo na mesma página

 

Quantas orquestras são necessárias para que eu volte a dançar? Às vezes fico pensando nos homens que me amaram terrivelmente durante um mês, eles namoram, são felizes, a felicidade deles me comove, costuma transbordar na linha do tempo. Tem horas que penso: e se tivesse aceitado todo aquele amor? Solto um leve suspiro até lembrar que é mais gostoso amar de longe, amar o amor, amar o que não houve nem pôde ser. Então, como nos livros de Jane Austen, dou de ombros.

 

Ainda assim sigo na mesma página. Por quem você me toma?

 

E o amor não são palavras que o amado nos dirige depauperado pelo êxtase, é um tanto mais sutil, muito mais tênue: a falta que faz o som da sua voz.

 

Por que a felicidade é cor-de-rosa e a tristeza é azul?

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

A dívida dos medíocres

Foracluídos do sistema capitalista

Ataca o baço a azia sobe pelo estômago

Ataca traqueia nervos garganta músculo

Erupções cutâneas se espalham pelos braços

Boca língua um vulcão explode nos lábios

As mucosas pipocando em aftas o couro cabeludo

Coça as mãos tremem as mãos não aquietam por nada

Talvez um remédio mas a leseira impediria o raciocínio

Claro exigido no processo de escrita

Ondas de cólica atravessam o útero até a lombar

Os pés tremem as pernas balançam longe sem cessar

Eles vão me matar eu vou sucumbir o peito arde dói o pulmão

Isso vai mal isso vai muito mal e já é impossível

São três semanas consecutivas de nariz entupido

Sua bolsa será cortada mês que vem

Espero que você entenda a gravidade da sua situação

Uma onda de calor sobe até as extremidades em tremor

As mãos e os pés encharcados esqueci de comer

Acabou o papel higiênico só tem café puro

O cheiro de cigarro empesteando a casa

A rosácea toma conta do rosto feridas de pus

A cara em chamas esqueci de tirar o ácido pela manhã

O chuveiro elétrico queimou o filtro quebrou a panela queimou

A única coisa intacta é o batimento cardíaco

Esse pulsa no ritmo exato do som

Culpa

Culpa

Culpa

 

 

 

 

II

 

 

As contas estão chegando

Estão chegando

Faturas indeléveis

Nas articulações nos olhos no espírito

Desaguam dividendos

Nenhum adulto me contou que seria assim

Cada experiência uma soma líquida

Cobrada a prestações e

Juros galopantes

Essa dificuldade de expor

Essa dificuldade de olhar

Nos olhos na alma

De mover os joelhos

Saltar no vazio

São dívidas acumuladas

Desde a pré-história

Dívidas astrais

Ancestrais

Hereditárias

O preço por dizer "eu"

E "isso"

 

 

 

 

 

 

We found art in a hopeless place

 

 

I

 

 

Todos os poemas de amor são ruins

Distraídos

Dispersos porém

Extraordinariamente presentes em sua leveza

 

Só quero mar, sol, areia

Como Ulisses quer o encontro com as Sereias

 

Exata predição

Toda redenção será bloqueada

Fruição estética em nome de quem?

Contemplação não é libertação

 

Daqui sinto

A magia em sua forma mais racional

O exílio de Ulisses

Passivo e obediente

Ouvindo o inaudito

Tocando o intocado com as próprias mãos

 

Desatenta

Só sei dizer solidão

 

 

 

II

 

 

Ele diz — ar condicionado é tudo de bom

Respondo — tecnologia a serviço do amor

 

Mas a conta de luz veio e não pudemos pagar

 

Ele diz — estou atrasado

No auge de sua beleza impotente

 

O resto é o real

 

Não aguentávamos mais dormir suados acordar grudentos

Sem mar para nos refrescar

Rotas de fuga

 

Fim

 

Contra toda regressão afetiva

Dessublimação repressiva

I believe — True love will find you in the end

 

 

 

 

 

 

Estrangeiro

 

 

Em todas as ruas escrevo seu nome

Evidente que não é você

Em todas as ruas busco seu corpo

Que se encontra do outro lado

 

Em todas as ruas escuto sua voz

Estudando sei lá o que nos trópicos

Há tantos meses quanto não lembro seu olhar

 

Mas as ruas guardam sua memória oculta

 

Nos postes que apagamos cigarros

Nos muros que tomamos cerveja

Na kombi que você mijava

 

Evidente que é você

Em todos os lugares

À sombra da arquitetura

Do rio de janeiro

Em cada esquina

Tem a nossa história

 

Entendo porque você teve

Que partir

Não foi em busca de qualquer re-conhecimento

Foi assombração

 

Imagino se aí você dialoga com

A sua história

 

Ou é mais um estrangeiro

Preso à fantasia

Do recomeço

 

 

 

 

 

 

Uma nota de rodapé no mal-estar na civilização

promove experiências estéticas

 

 

Punk rock na vitrola

Você diz — já passamos da idade

Mentira

Nunca superamos nada

São construções demolidas

Por cima de

Construções

Demolidas

Onde o novo se sustenta

Sobre

Restos indeléveis

Milenares

Anacrônicos

Desconstruções

Sustentando

Destroços

Entulhos sobre entulhos

Nada se anula

Apenas sobrepõe-se

Acumula

E você aqui me falando sobre questão de gosto

Questão de opinião igualdade humanismo

Eu intimamente pensando como você fala bobagem

Atrás de bobagem

Mui fleumática

Aceno a cabeça

Vou-me para casa

Acho que sou dessas

Almas velhas

Demasiado antigas

Tantas vezes reencarnadas

[Que quando voltam

Trazem consigo seus escombros]

We dont cross borders

Borders cross us

 

 

 

 

 

 

 

 

Mwauhauhau

 

 

Eu queria evitar a fadiga e não pensar em você

Respeitar seu desejo de não poetizar mais você

Porque aqui você sai efetivamente diferente de quem você intenciona ser

A minha vingança é que todos os poemas de amor que te escrevi são ruins

Inclusive esse

E minha vontade é reunir todos eles e publicar com o título

Minha vingança será nunca te escrever um poema bom

 

 

 

[imagens ©daniele cascone]

 
 
 
 
Yasmin Nigri (1990), carioca, é graduada em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense, onde cursa atualmente o mestrado na linha de Estética e Filosofia da arte. Feminista, cofundadora e integrante do coletivo Disk-Musa, grupo de mulheres que alia poesia e ativismo na produção de conteúdo audiovisual e performance. É membro da Oficina Experimental de Poesia, que acontece toda quarta-feira, no Méier. Montou sua primeira exposição com o coletivo Disk-Musa no final de 2015. Além disso, tem poemas publicados nas revistas Mallarmargens, Escamandro e Jornal relevO. É coordenadora do cineclube do curso de alemão Baukurs.