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logo cedo no jardim
aprendi que abraçar uma arvore
não é o mesmo que abraçar você
o jacarandá por exemplo
me abraça quase que tímido
talvez com vergonha dos seus liquens pulsantes

também aprendi que na areia do parquinho
podem nascer minhocas
de duas cabeças
do dia pra noite
sem o aviso prévio
da diretora

e que no primeiro dia de aula
não se deve chorar com a partida
dos avós e que a mão da professora
é muito maior que nossos corações

outra coisa que aprendi
foi o bê-á-bá

mas isso só por que
ainda não sabia desenhar
as gaivotas que pousavam na janela
para merendar
sardinhas miúdas.

 

 

 

 

 

 

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existe uma tigela de pétalas mortas
que repousa sobre o colo de um fantasma
enquanto fumo 
meu cigarro imaginário
como de costume
para apaziguar o mormaço dos olhos
no fim
de tarde

 

ainda há respingos de porcelana
   — maquiada de um azul cru —
enfeitando a bagunça da gaiola oca
que nunca serviu de cárcere a falcão nenhum
mas hoje serve de repouso
a essas
mariposas nanicas  

 

não tenha medo do sopapo de asas ansiosas
uma pistola de raio laser funciona como
uma brisa distante
que vem trazendo na bagagem
o cheiro molhado de cloro dos 
cabelos do verão
e desintegra todo o sabor
de biscoitos ao redor da casa
para trazer
essa tal saudade

 

existe uma tigela de pétalas mortas
que de longe parece não ter aroma algum
mas bem de perto, é possível senti-las 
lamentar a estadia 
no vaso d'água
sem vista pro além.

 

 

 

 

 

 

panorâmica

 

 

tenho um enorme murro cravado entre meu coração e o estômago. um murro de ar que se expande como a manhã corriqueira. isso me dói. não tanto quanto aquela chifrada de boi que o pastoreador tomou no leilão ao pé da serra, a ferida exposta, sangrando, como a boca de uma nascente.

 

o punho que me atingiu nunca se fechou. servia de concha para bebericar água dos passarinhos e de superfície para rabiscar aventuras em salas de espera. servia de pouso no repouso do peito e de laço no caminho selvagem da minha própria mão.

 

todo o bando dissipado na floresta de vidro. em outdoors perto das cordilheiras, em mosteiros moldados com o gosto da terra molhada, em varandas sem grade de proteção, em camas caóticas de noites brancas. um par de tênis me chama para pisotear todas as poças de lama na cidade. o ventilador entoa um mantra sobre o som das estrelas.

 

cada degrau, uma prece, dizia minha avó. hoje ela se sente satisfeita com qualquer brisa que lhe acaricia o rosto repleto de fissuras e correntezas. eu sinto essa mesma brisa quando o sol mira nos meus olhos e enxergo neles um pardal talhado e vivo dentro da retina.

 

 

 

 

 

 

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sentar no cais sem anzol algum
pendurado nos ombros de barro
e contar
quantas gotas de sangue há no mar

 

 

 

 

 

 

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não existe idioma para este trovão
impossível traduzir-lhe em signos
muito menos circunscrevê-lo em uma tablatura
para o exemplificar em uma melodia de ossos
ele dita a si mesmo sem paladar ou microfonia
o gosto da sua torrente é invisível
mas não indolor
aos ouvidos de papel.

 

 

 

 

 

 

bird man

 

 

quando começaram-me a crescer penas ao invés de pelos na cabeça, temi pelos homens do bairro, que desde pequeninos aprendem com os pais que quanto maior o cabelo de um homem, maior é a loucura e vontade de escalar rochedos & pilotar cadillacs. por isso todos andavam assim, com o cabelo curto, rente ao chão da cuca, parecendo soldados de uma infantaria. os fios começaram a crescer e engrossar, e numa terça feira notei meia dúzia de penas miúdas se formando ao pé do meu cangote. uma semana depois o cabelo havia sumido dando lugar a um penacho de pequeninas penas de andorinha. tranquei-me em casa com medo que os vizinhos e pedintes me vissem assim. não adiantava cortar, pois abaixo das penas maduras haviam fiapinhos de penas, como que germinando em capsulazinhas. resolvi pôr um boné, uma boina, um chapéu panamá, e nada. doía a cachola, além de parecer um estranho mutante de desenho animado. não sei o que passava pela cabeça cabeluda do cabeleireiro do bairro ao nunca mais ter me visto. talvez já fofocasse sobre o tamanho dos meus cabelos maiores e que talvez eu já tivesse me metido numa viagem pelas estradas intermunicipais desse mundo. tive medo de que me brotassem mais penas pelo corpo e que me tornasse um tipo de gavião ou faisão. liguei para minha mãe. ela disse que isso é a puberdade adulta. fazia sentido. mandou-me fazer um chá de quebra-pedra, que eu estaria bem logo logo. não melhorei. ao invés disso urinei como um bêbado em carnavais. então desisti. deitei-me na cama e dormi. quando acordei, estava no topo de um cânion, estirado num enorme ninho de palha e cachos de cabelos dourados, ao redor de mil e um anéis de noivados que faliram.

 

 

 

 

 

 

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quem faz

dos cachos de prata

fios de alta tensão

parece querer dizer

que os furacões não devem ter nomes

até o momento em que

aprendem a se alimentar

das ondas quebradiças do mar

sem auxílio de um babador

ou

aviãozinho

 

sempre penso isso
no extinguir da tarde
quando as persianas censuram teu rosto
mas o horizonte fulmina pelas brechas
manando uma leve luz quase liquida
os olhos querem escapar a todo custo
para seguirem longe das estalactites
sem resenharem linhas esparsas e cursivas

 

então tudo escurece
e as persianas se espreguiçam
deixando os olhos espiarem ao longe
o redemunho que se forma
sem certidão de identidade.

 

 

 

 

 

 

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nunca vi o ruflar de flores
sobre alguma poça d'lama
nem a colheita de pomos de ouro
feita pelo netos selvagens no sitio
mas essa fotografia
de redes armadas em arvores ornamentais
sob o céu imenso que assobia pacifico
me parece a real ilustração
da palavra sossego

 

 

 

 

 

 

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experimento a paz quando desenho cães adormecidos
dezenas deles espalhados pelas páginas do caderno
se encolhendo como flores-do-guarujá ao fim do dia
ou se esparramando de patas abertas deixando as orelhas
caírem amenas sobre o traço rústico e rupestre
da caneta esferográfica
e a paz vem sutil como se fosse um ventilador
a funcionar no nível 1
não apagando a chama
ou a atiçando rumo a um incêndio
mas mantendo-a de pé
sobre o mastro manso de uma candeia

 

 

 

 

 

 

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não me toque quando escuto
uma canção de amor

esse é o pior dos modos
de sentir o coração flamejar
sobre a bandeja do peito nu

por isso que me finjo de morto no ônibus
o calor colorindo o céu
de uma brancura cega
e afligindo todos os passageiros
com seu reflexo emulado
na lataria dos edifícios deluxe

quero entender essa métrica
de lumiar saudade
na bravura alheia.
de que se é preciso ao cancioneiro?
um acorde perdido na gaveta
do criado mudo
e outros dois instintivos
que vem como um galope
de faroeste na veia
ou até
por sorte, tudo vem numa rajada só
no exílio de um quarto
inteiro rabiscado nas paredes
das cifras outonais?

os dedilhados
são um organismo a parte na melodia
que carregam no lombo das notas
pontadas de suspiros
nublando qualquer ouvinte
em um transporte coletivo

talvez a voz
seja o desastre aéreo
de toda a soma
mas é no acidental
que entendemos
por que os cães e tenores
querem tanto cantar
aos anjinhos que planam calmos
no cume do nirvana

 

 

 

 

 

 

arribaçã

almejei peregrinar até a Cochinchina
contar até oito nove dez e lá vou eu
varrer o deserto com ramos de pinheiro
como nos meus sonhos de arribaçã
mas nada disso se mostrou frutífero
á idade do temporal que trovoa
no talismã do forasteiro

as longas autoestradas
que desembocam
em ruas contadoras de fábulas
se perdem dos seus pais
quando fervem
sobre a vertigem do sol escaldante
e não os procuram mais
por conta da longitude campestre

cada pepita de asfalto
se mostra valiosa nessa viagem
em que montamos um quebra-cabeça
sempre temendo a falta
de uma peça crucial
para concluir o mapa
desse pais fictício
sem currais ou
muralhas

quando ainda existia pó de giz
sobre a ponta dos dedos
pensava eu que o cabal
a rotina dos pombos
era o namoro de suspiros
sem um rasgo no emblema do peito

ainda carrego essa quimera
no bolso da frente do jeans
seja cruzando um rio de batismo
ou desbravando uma calmaria.

 

 

 

 

 

 

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não quero ter a voz salobra
que arranha as bigornas
com a saliva de hienas
dentro de uma nevoa de poeira
a praguejar o gramado
que cresce aos seus pés
sem conhecimento
de um norte a se orientar

 

enxergam a pintura
de qualquer animal que se movimente
com o fascínio de toureiros
a rememorar o velho escudo
que flamula na brisa
suja de sangue e suor

mas então
algo com boca sorri
idêntico a um sol
desenhado com giz de cera
pelo punho pesado
de um bebê

 

a hora do recreio
perece eterna
quando beijamos
pela primeira vez
o chão do pátio

 

 

 

 

 

 

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morar numa rua de paralelepípedos
pelo resto dessa travessia
que percorro sem carimbar roteiros

compreendo sim que o asfalto
é uma camurça dura como o esqueleto
de um estegossauro
mas isso não me instiga
a largar esse chão
com cheiro morno 
de dunas & hortelã
em troca do mormaço maciço
que vem empestar
o mirante pela manhã

vivo aonde a grama cresce
em concordância com as
pedras ingênuas da rua
e o sol desperta
junto as nuvens detalhistas
cheias de minúcias do café

longe de esplanadas
ladrilhadas com brilhantes
ou alamedas de
carros abandonados
longe do frio de
apartamentos no oitavo andar
ou praças anfíbias
sem graça
longe do cheiro pesado
de sangue evaporando
para mover o maquinário
que destrincha esmaga
espreme e liquidifica
toda a fauna & flora
num minúsculo
porta-joias de concreto.

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©victor h]

 

 

Victor H — Victor Hugo de Azevedo Macêdo ou victor h. azevedo (Natal/RN). Publicou diversos zines, online e físicos, entre eles Doze canções, fábrica de flores e O amor é simples. Publica poemas, desenhos e quadrinhos no vvctrh.tumblr.com.