©andre kenji

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

— São Paulo da ganância e da miséria — as palavras me chegaram em verso. Um verso decassílabo. A mania do soneto! Mas isso foi depois.

Naquele momento, o momento que importa lembrar agora, eu rodava de táxi para a editora que publicaria meu livro. A entrevista havia sido marcada para as três da tarde. Vou conversar com o editor, o dono da casa.

Conversamos em sua biblioteca:

— Esta será uma segunda edição — ele ressalta — e na imprensa também olham isso, reedição não vale matéria, pelo menos não matéria das mais extensas — parece eximir-se previamente de qualquer responsabilidade no destino do livro.

Informo que estou sabendo. Mas que se trata de uma segunda edição vários anos posterior à primeira. Texto revisto, prefácio novo; talvez capazes de atrair o interesse de jornalistas e leitores.

Falo de lançamento em São Paulo, o editor me olha com fastio e, ressalvando estar sendo franco, sincero, honesto e compassivo, diz não ter vontade de promover lançamento na capital do crack.

— Muito trabalho para pouco resultado — assevera, com ar de quem fecha questão.

Insisto. Sem lançamento em São Paulo, essa metrópole que inspira amor e tédio, ternura e ódio, livro algum será notado no Brasil. São Paulo é o máximo, tento lisonjear, dizendo o óbvio, o peregrino radicado na capital do Kassab. Vai pensar no caso.

 

*

 

Ando na calçada, sol quente sobre o quengo, e o homem pede que lhe pague o almoço. Respondo que vou lhe dar dois reais, ele conseguirá o restante. Então reclama, apela a meus sentimentos; digo "não" com impaciência, quase rispidez, e sigo em frente. Poucos metros adiante, me bate a culpa. Não por ter dado ao cara apenas dois reais, mas pelo tom com que recusei ceder mais algum. Volto. Chego perto do homem; ele me olha receoso ou desconfiado, como se eu fosse hostilizá-lo. Eu o tranquilizo com o olhar e lhe estendo uma nota de cinco. "Agora dá?", faço a pergunta retórica, de certo modo pedindo reconhecimento pelo gesto.

 

*

 

O editor me fala de seus feitos. Alternam-se as imagens. Ora me parece generoso, ambicioso no melhor sentido, sonhador com os dedões do pé no chão, apoiado sobre eles para voar, como os bailarinos. Ora me parece cabotino, mimado por uma fortuna que, não importa o quanto lhe dê trabalho, o torna temerário, talvez mesmo perdulário, acreditando ser sua a coragem que é apenas a coragem dos que têm dinheiro. A chamada propriedade dos meios de produção. Ao fim das contas, não arrisca tanto, supondo arriscar tudo.

Mas essa é, repito, apenas uma das impressões extremas que se revezam. Penso que o sujeito se revela a mim por achar que eu tenha alguma qualidade que me habilite a merecer as confissões. Noutro momento, sinto-me vítima de sua loquacidade, sem chance de defesa. Ele sorri, a certa altura da entrevista, como o homem de posses, porém desinteressado, cujo empenho visa enriquecer o acervo coletivo; publica autores de direita, de esquerda e de quantas mais posições ideológicas existam porque "tudo é humano", todos os argumentos devem ser expostos, conhecidos, e então me lembro de poema antigo, feito aos 20 e poucos: "Palavra, gesto, tudo é contexto/ e convívio, muda/ de qualidade no contato". Estamos de acordo.

Temos referências semelhantes. De mesma idade, ambos cultos ou, ao menos, avisados, vivemos as mesmas coisas: a adolescência e a primeira juventude sob a ditadura, a mudança de costumes, nem sempre fácil, o gosto pelos livros, o amor ao teatro. No entanto, habitamos campos distintos, senão opostos, e digo isso a ele: os dois lados do balcão, onde se acham aqui o autor, ali o editor, uma das inúmeras variações da contradição entre capital e trabalho. Eu, vindo da provinciana Alexânia, ele, radicado na cidade da opulência e do concreto. Dois dias depois, o soneto: "São Paulo da ganância e da miséria,/ também capaz de humor, o próprio Elvis/ rebola redivivo na Paulista./ São Paulo gloriosa e deletéria", vemos o ator gaiato a imitar Elvis Presley na calçada, divertindo os passantes.

 

*

 

Numa grande galeria, chamada Conjunto Nacional, o garoto quer engraxar meus sapatos. Aceito. Quando ele inicia a tarefa, surge o guarda avisando que ali não se permite a presença de engraxates ou de ambulantes em geral, considerados pedintes... Defendo o menino, pondero que está trabalhando. O policial se zanga: "E eu, estou fazendo o quê?" Insisto no tom conciliatório, garanto que a graxa não vai demorar. O guarda afasta-se, cara de poucos amigos. Terminada a operação, dou dez reais ao garoto, bem mais do que ele pedira. Alguém atrás de mim, de quem não chego a ver o rosto, comenta: "Bonito". 

  

*

 

O empresário pretende ser divisor de águas no movimento editorial. Explica:

— Antes de mim, os livros eram publicados porque a academia assim o queria, ou porque a imprensa assim o determinava — diz, didático, respondendo a uma questão que propus. Ele teria quebrado esses limites, destino grego do livro no país.

É vago quanto ao lançamento na cidade dos 200 quilômetros de lentidão no tráfego. Reticente: ao nos despedirmos, bate no meu ombro com certo jeito que me lembra o dos políticos em campanha. Cinco por cento sobre o preço de capa. A tirania das grandes livrarias, com sua voracidade comercial a estrangular as editoras, impõe o percentual diminuto: então as editoras asfixiam o autor, quer dizer, o que resta dele no preço do produto pronto.

Todo mundo tira uma casca do escritor — editor, livreiro, jornal, escola, universidade. O lojista da xerox almoça e janta nas costas do autor. E os militantes da internet acham que fazem a revolução explorando o autor ainda um pouco mais, download gratuito. Já o autor dá graças a Deus porque o exploram, do contrário sequer existiria. Enquanto isso, nove entre dez intelectuais brasileiros gostariam de ser sodomizados pelo Chico Buarque. O décimo preferiria sodomizá-lo. Assim não é possível.

O biscateiro das palavras que sou termina grato pela simpatia e atenção, e aqui se leia gratidão ao pé da letra, sem ironia. Por que não? De todo modo, no quebrar dos pratos, "o romancista se vinga", diria o Mário. Justo reconhecer, contudo, que ele, o editor, não espera de seus autores que paguem para ser publicados.

   

*

 

De volta ao hotel, o sujeito que me pedira a grana do almoço continua lá, no mesmo ponto. Parece ter se esquecido de mim, estende a mão e a fala para meu lado, eu o lembro dos sete reais... Faz um gesto que não sei se é de agradecimento ou desprezo.

A seguir, o soneto. Nada a ver com a entrevista: resultado de impressões que o passeio pelas ruas da metrópole desperta.

 

 

Consolação

 

 

São Paulo da ganância e da miséria,

também capaz de humor, o próprio Elvis

rebola redivivo na Paulista.

São Paulo gloriosa e deletéria:

 

aqui não se comete assassinato,

aqui só se praticam as chacinas.

Ó musa dos Andrades, em ruínas!

Adensa o velho rio putrefato,

 

cidade da opulência e do concreto.

Abraço ingênuo à turma dos sem-teto,

à gente das calçadas e às garotas

 

deselegantes... Saltam novas rotas

sediciosas, grávidas de asfalto:

São Paulo para o coração incauto!

 

 

Este aqui, por exemplo.

 

 

 

 

 

junho, 2015

 

 

Fernando Marques é professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB, escritor e compositor. Publicou Retratos de mulher (poemas, Varanda); Contos canhotos (LGE); Zé – peça em um ato (É Realizações); Últimos – comédia musical em dos atos (livro-CD, Perspectiva); A comicidade da desilusão: o humor nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues (UnB/Ler) e Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970 (Perspectiva). Autor das canções do CD De cor, disco da cantora Wilzy Carioca. Colaborações nos jornais Correio BrazilienseeO Globo, na revistaFolhetime, na internet, emTeatrojornal eDiversos Afins, entre outros.

 

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