VIAGEM À NOITE DO FIM

 

 

 

seus pés descalços descascados de lama seca

beijados de relva cega à beira-rio

lambidos de mosquitos, alisados de aves

criatura movente na superfície do planeta

que só quer seu corpo

e há de tê-lo

por completo

com ou sem zelo

seus pezinhos de vertigem aplainada

sobre a mesa feita: morada

a ti guardada: estômago

de alguém

de tudo

de nada

aldeia de formigas invadida:

seus finos pés descalços

assassinos

olhos de mata onde brilha a fogueira

salamandras

te perseguem

noites inteiras

 

 

 

 

 

 

 

 

se seus pés tocam a água

e a água toca o pomar

e as frutas dos teus cabelos

se entregam à dança do vento

e os entulhos se inebriam

entre os tijolos da vila antiga

e o sol se deixa cair

entre os olhos do dia

 

talvez seja hora de fumar

a paisagem da alvorada

e furar com espinho de rosa

o balão que se sobe lento

no nada

 

se seus olhos são frestas

ou espelhos

e meus olhos são servos

em entrega à lucidez

terrífica e clara

se seus pés se tocam em água

seus passos guiam bandos

calmos, louca

revoada

 

 

 

 

 

 

 

 

e se seus cabelos despenteados

de sapeca toda-amor de olhinhos escuros

se embaraçam na entrada de um

dos caminhos desta selva ainda mais escura

e seus pézinhos tão sujos de moleca

se sujassem então do óleo de sombra

deixado ao lado da cabana de galhos

e ossos certamente pararias para

contemplar a imensidão destes olhos

de mata à noite quando dormem os bichos

e se acordam aos acordes de um

silêncio quase rítmico todo-perfume

talvez o caminho de fogo no entre

das pernas da mata inda traga

a trilha perdida onde deixaste tua pegada

e as velas do centro talvez do clarão

do escuro do entre das pernas

da noite da mata

se acendessem num silêncio cortante

atravessando o coração da mata

onde deixaste uma rama

embaraçada dos teus cabelos

cor de madrugada

pudesses tragar a fumaça perfume

da noite

e seus tamancos finos

no entre

das pernas

da mata

 

 

 

 

 

 

 

 

seu cheiro de mata molhada revira os confins da cabana incendiada de 2009 e vem aliciar as paredes do quarto onde anoto os

Nomes do Fogo

 

por acidente nascem e morrem galáxias

 

o cheiro dos teus cabelos penetra a visão do céu de março e forma signos indecifráveis na nuvem

 

que atinjo com flecha sempre que necessito destruir sombras que se agrupam no armário empoeirado onde há anos encontrei uma família de ratos vermelho-bebê, mortos

 

seu cheiro de matagal cortante, colonhão que se alastra pelas entranhas do poema que evito — ladainhas idiotas que trazem lágrimas aos idiotas

 

e quando tropeço em sua luva esquerda repleta de secreção de amorzinho, mosquitos e cinzas de fogueira seminútil, sorvo um gole a mais do vinho do destino de todas as coisas

 

e seu vestido leve leve está em todas as coisas

tanto tanto

que prescindo de ti

 

 

 

 

 

 

 

 

paredes do templo de vento banhadas ao sol

vermelho

do sacrifício

forjadas de tudo e de nada — por expiação

e ofício

o templo de tempo varado: escavar

fissuras: ofício sacro imerso

em diabruras e cortes

cauterizados

paredes de sombra e unguento

de vento e luz rachadas

vermelho emerge: vísceras

num presente

sem passado

ainda passante

ainda compassado

diluído em vento que

desmancha areias: o templo

de mato de luz no estalo

pegadas da lua: vestígios do nado

louco louco do primevo

bando ensolarado em revoada

escura de luna

forjando o relvado:

fresta do sol

no ventre da chuva

curva

 

 

 

 

 

 

 

 

não sei como dizer-te que as algas remodelam seu corpo

e que sob o aguaral seus gestos se imprimem lentos

no caleidoscópio de argila nas veias da eternidade

 

talvez o silêncio em flores

transparentes

desabrochadas

caídas

despetaladas

 

se enerve na contemplação mútua do movimento

das estrelas cadentes

que habitam duas mentes ao mesmo tempo

possa enfim a ti dizer que as árvores, os minerais

                            as feras, os labirintos

                                      e os incêndios

 

remodelam a ti submergida num abismo de mim

e a ti dão, finalmente,

a doçura que não pudeste despertar

                   quando aqui

 

 

 

 

 

 

 

 

o espaço deixado pelo veneno da vergonha é ocupado por filações esguias

inclinadas à cordilheira

que clama

em dó maior

 

o espaço da víbora circunvoluteante enrolada em ondas claras

ocupado por filações de enguias

tocadas pela saraivada

de luz

e som

inclinadas à sombra-mor benzida de óleo

e incinerada quando a noite é clareira

 

é o espaço ocupado pelas mãos que tateiam o ventre

vazio

como se tateassem curvas de um

carrossel

de anjos

 

e que saem para brincar na rua

quando à noite as crianças sonham

a realidade das ruas recurvadas

 

o espaço vago das virações estelares escuras do veneno

da paixão ardente pelas formas

espiraladas sem me interessar pelas substâncias

é ocupado pela infalível calma

das cópulas

com o tumulto

 

 

 

 

 

 

 

 

reveste-se o pó compacto de clara fuligem

reflete-se no aqui a face clareada

a cegueira cavalga por entre as nuvens

esconde o solo a parede manchada

 

pegadas seguidas rumadas ao nada

clarão incriado do lado de dentro

perdido compacto entre montes de pó

areias varridas perdidas no vento

 

a clara fuligem dourada do dia

permanece molhada por sob o sol

a cegueira vem do ventre e espia

a escura fronteira além do bemol

 

os passos deixados no nada ressoam

são todos marcados por fortes dentadas

sem susto e sem dores, se eclipsam e voam

pra longe, bem longe de todas estradas

 

 

 

 

 

 

 

 

o horizonte iluminado de lua rasgado

pela folha calma que cai no lago

retine em timbre sol branco

e se vai sem deixar listrado

que se crava se se sai

o olho da cavidade da cara

o peito que ao fechar se espalha

o horizonte iluminado de folha:

espelho pro outro lado

onde se deita a superfície do lago

beijada para sempre por um lábio

horizonte banhado de sol

da noite

refletido na folha (véu do céu)

da árvore

lentamente despida

defronte ao lábio do lago

defronte à estrela caida

do seio de cima da árvore

imitatrix do céu, dançarina

a folha caída pro alto

encosta no teto

de neblina

da piscina

 

 

 

 

 

 

 

 

amarrada ao manto amarelo enlameado, a mão

direita se precipita no parapeito invisível e

alcança a arma de graça — gingado de

bonecas de cera estouradas adornando a

paisagem clara: o manto amarelo esbarra

na taça repleta de rara água clara:

o giro infinito continua, passos lentos,

subindo a escada que desemboca

no salão fechado onde se deitam

e dormem os ventos: a graça

pontiaguda em SI estronda

e sua nuca aguda se estilhaça

(é taça) e acorda o acorde

da gruta crua de Pentencostes

e a rara água clara se espalha:

mel de vulcão

e sona:

arara

convulsa

cantando

no centro

do dentro

tufão

 

 

 

 

 

 

 

 

cantiga embrenhada na mata do quarto escuro

                   as vespas

                   oram

carnaval de cores — labirintos

                   de suor

tateio e retorno à quietude

                   do reino

zunir de vespas — pânico

                   silencioso

agonias do amor — trapos despedaçados

                   da alma

                   do mundo

no quarto escuro — miniatura furtiva

                   de tudo

zunir de sombras coloridas

                   mãos que tocam cabelos

                   da vida

na quietude do reino

                   em pânico

a cama tateada pelo sussurro

das vespas silenciosas em chamas

                   daninhas

cabelos do reino — andorinhas

                   escuras

                   na sombra

         do sonho

         concreto

         de tudo

 

 

 

 

 

 

 

 

nos entrecortados de sua voz ofegante em plena fuga

e chegada

os vasos comunicantes do ar se dilatam

a ascendem

à casa muito bem torneada

onde moram as nuvens

na curva celeste à direita

onde nascem e morrem e renascem

os sonhos

então talvez as artérias

do ar de seu pulmão cansado

se deitem para dormir entre as réstias

ao céu aberto

no relvado

e as multidões

de anjos tilintantes

em passagem, dancem

nas voltas que brotam lascivas

dos teus pulmões

nos entrecortados tão quietos

depois da sétima solidão

saiam solilóquios serenos

de ar que é clarão.

 

 

 

 

[imagens ©robby cavanaugh]

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tiago Silva Barreto (Ipatinga/MG, 1986). Tradutor de Juan Liscano e de textos 'patafísicos. Desapertador de parafusos, recepcionista e membro fantasma do S.S.I.E.E.'P.  (Sereno et Solemne Instituto de Elevados Estudos 'Patafísicos). Integrante do bando O Sonho do Inseto,  pesquisa tradições arcaicas e improvisa canto na banda Morte Branca.