ESQUELETO

 

 

Ouço teus ossos —

Confundem-se com tua voz

Teus ossos como quem junta

As mãos e aplaude o traumatismo.

Tua voz em teus pulmões:

Um de borracha outro de peixe.

Teu maxilar de flauta.

Mastigo os ossos que me envias

Do deserto.

Pois no deserto estás nua, cheia de vértebras.

Ouço teus ossos com os meus.

O corpo é um voo que dura a transfusão de sangue.

 

 

 

 

 

 

ROSTOS:

 

 

Rosto à altura da luz, das linhas de luz

Multicolorida. À altura das cortinas que

Dançam como archotes untados de breu.

Que acenam e são asas da casa fuliginosa.

A casa está fundada no silêncio, no aprisco

De um abismo construtor, onde trabalham

Fantasmas na construção das luminárias.

Rosto inclinado para o fogo, para carrosséis

Incendiários e a escada que sobe com degraus

Iluminados em direção à forca fixa na cratera.

Rosto bifronte, com raízes nos rins nus e unos,

Acima cortinas estalando, riscando o ar com cobre,

Erguem a casa com asas de portas e janelas abertas.

Chamaremos essa casa de cometa ou peixe agora,

Talvez de esperança, com um espelho para cada

Rosto inédito que vive seu tempo apartado no tempo.

Ou folhas bebendo água nas poças da chuva clara.

É que os fantasmas trabalham sem dormir, sob um

Sol sem luz, mas fixo como a decapitação é fixa,

Como não é fixa a vocação da voz no currículo.

Talvez um rosto frio golpeado pelos anos que gelam,

E uma casa rotativa com um cerco de abismo ao redor,

Dentro um homem sob a lâmpada acesa desenha mapas,

Rotas de uma fuga imóvel, pois o desejo é algo fechado

Em crisálida ao som dos fantasmas construtores. Aguarda

As asas crescerem. Pois borboletas expandem suas asas

Para bombear o sangue pelas veias. Diamante azul, cortinas,

Casas que levitam —

Por dentro teu corpo é pus macio.

 

 

 

 

 

 

SUDÁRIO      

 

 

A folhagem em movimento percorre o mundo,

Realizando, no chão, o lilás, a imitação dos pássaros.

É o vento conduzindo os círculos, deixando para trás a promessa dos pólens.

Então me coloco grande e admirado diante do mundo e sou ferido pelos campos,

Lendo a secreta lembrança de Deus em Sua criação —

Meu corpo é o corpo com o qual Cristo sorve as sensações,

Com meus olhos o Senhor ilumina a terra, pois temos

Os mesmos pés que tudo percorrem: beleza, angústia, pavor,

Até que amar seja abandonar a si mesmo, ou o cavalo solto

Do seu tropel sonâmbulo, levando nos cascos o castigo das farpas.

Que Deus se faça pesado e irrompa com toda a Sua mão pressionada

Sobre mim, e que eu caia sobre Ele com todo o meu clamor,

Pois Aquele que tudo padece é Aquele que tudo domina,

E que tudo resolve durante a brevidade do verão.

 

 

 

 

 

 

MESAS GIRATÓRIAS

 

 

Escrever é distrair-se entre desejo e realidade.

O escritor, um rádio com Bombril na antena,

Sintonizado em uma estação abandonada durante

O ataque cardíaco do locutor — pensamentos tão

Claros quanto a insônia é clara, como o incêndio

Acende pelo cobre os cabelos elétricos da fiação.

Porque amo como portas de garagem se escancaram

Para a entrada de bicicletas ou uma multidão de surdos

Aguarda o maestro ser fulminado por um raio antes

De finalizar a orquestra — tudo são apenas palavras,

Disfarçadas de boias de salvação. Mas os que

Guardam a porta guardam também os pomares,

Observando a troca das armas quando amanhece.

Pois escrever é essa maneira de estar sozinho

Com os outros, ainda que esses outros sejam

Fantasmas martelando contra um espelho, ou

A sombra do fogo sobre frutas de plástico.

 

 

 

 

 

 

NINGUÉM

 

 

As palavras estão a caminho, não à deriva.

De sapatos altos, palavras tensas, cheias de passagem.

Imitam a morte as palavras, pois exercem uma marca

Sobre a ausência do autor — que não está aqui aos olhos que leem:

 Ele não está aqui, mas sob o selo da sombra,

Com as palavras a caminho de si mesmo,

De seu corpo abraçado à janela como se abraçasse

A manhã com as cartas que trazem para ele.

 Que amanhece com seixos em volta, que a manhã é uma má intenção,

Futuro ainda sonolento pois acordado há pouco, sem ter tido

Tempo de sequer lavar o rosto. Deixem o futuro dormir nas palavras,

 Deixem o veneno florir devagar — que o veneno levede no poema

Até que tudo desperte a canção da levedura.

Palavras de ópio e memória com autor ao lado: deixem-no com as duas mãos

Na broca lenta. A grama escrita para pasto dos ruminantes — que ruminem.

Sejamos lentos, as palavras não estão à deriva. Guardam o acaso, o silêncio,

 Decantam a noite pela insônia, filtram os sons. Até que tragam a carta com

A manhã dentro outra luz de varais. Coroado pela aura o autor é um espaço

Vazio onde crianças brincam com as próprias fezes.

 Palavras atravessam a falta de resposta. Sempre a caminho, emergem para

A superfície enriquecida. Querem iluminar o autor que prefere o sótão,

A invisibilidade. Que o autor é só um terreno disponível,

 Pois só crianças brincam nele, essas fáceis de conquistar por trocarem

Almas por brinquedos.

 As palavras buscam interromper, não estão à deriva.

Mas todas as palavras juntas são menores que o não dito.

 

 

 

 

 

 

NOTURNO

 

 

O animal a máquina de emaranhar noites,

Mas é o homem quem ama dentro da máquina,

O homem — e seu coração, que é uma caixa de

Marchas atreladas a cometas.

Que o animal deseje o cativeiro e a máquina o moto-contínuo

É o homem quem decidirá o impasse, pois mastigou os diamantes

E está puro como o sol, ou uma criança sentada entre as pombas.

Agora o homem é um macaco que leu os salmos, que ama a Deus

E os Seus usos desesperadamente, lá onde a luxúria toca o alumínio

E inclina a lava sobre as taças cintilantes já trincadas de sono.

Mas é a máquina quem decalca o círculo e cava os buracos do círculo.

O animal apenas marca o território com a urina da masculinidade.

Ao homem cabe comer os diamantes e amar a Deus entre alimárias.

E amar eternamente.

 

 

 

 

 

 

PODA

 

 

Viver é seguir podando

As arestas do sonho

Até nada restar do sonho

Além da palavra redonda

Que nomeará os objetos castrados.

Respirar é exercício redutor: pulmões são prateleiras

No lugar de asas:

A lâmina mais leve é milimétrica: delimita

O rigor da castração (música erudita

Do vazio nos gestos refletidos n'água)

Dissipando a face anterior.

Ainda que no fluxo se escreva,

Sempre, as palavras da vingança,

Que ardem no ar refletidas, e queimam,

Como bolas de papel laminado.

 

 

 

 

 

 

SONHO

 

 

Sonhei com o poeta Torquato Tasso

Reconquistando Jerusalém no comando

De uma legião de esqueletos de plástico montados

Em touros mecânicos iluminados como lâmpadas.

Depois, via o poeta italiano melancólico e hipocondríaco,

Preso na torre mais alta do castelo da corte de Ferrara,

Cumprindo pena por esfaquear um serviçal durante um surto psicótico.

Escrevia seu poema mais famoso enquanto Sade (que lhe fazia companhia)

Contava as estrias da lua com o auxílio de uma luneta em forma de

Caralho.

 

 

 

 

 

 

PLETORA

 

 

Pequena claridade das frestas ilumina

O mínimo — mas o mínimo às vezes é

O bastante. Não se sabe, mas o calor com

Sua língua em forquilha sobe cortinas até tocar

As teias \ do teto. Ao centro, uma mesa antiga

E áspera, onde antes círculos de pedintes abriam em

Volta as orações. Acima algo olha para nós sem nos ver,

Assim como um Deus olha para Seus filhos, sim,

Como um padrasto \ na porta escura. Nem sequer algo

Vivo, apenas algo que escreve deslizando, como um vinho

Na lâmina desliza, um filete de sangue muito doce.

Escreve, ainda que dentro de um livro nada viva,

Um homem com facas à altura do peito, bicho torácico,

Olhando o azul despir aos poucos o dia até torná-lo negro e

Despedir-se,

Como algo que morre sem sorte & sem rosto.

 

 

 

 

 

 

GRAMÁTICA

 

 

Meu sangue colhido na taça rasa de tuas mãos

Educadas contra o desperdício.

Mãos que adiam a chuva entre os dedos,

Para estender a vitória das nascentes

São as mesmas que equilibram a bandeja

Com o crânio peludo e oval de João Batista,

Enquanto brincam de levitá-la entre os cristais frágeis

Das lojas de isopor & tortura.

Até que termine o poema imaginando se estás nua,

Ou com os ventos te vestindo.

 

 

 

 

 

 

HORAS

 

 

Arrancam minhas horas como pregos

Da madeira dura.

Madeira de cruz: para crucificar animais de costas,

Outras estrelas ásperas.

As casas: constroem as casas cada vez mais juntas.

Querem nos eletrocutar, que ardamos sem nenhuma luz.

Ardamos negros, mas juntos,

Como negra é a virgindade soprando as canas da eloquência,

O canavial louco noite dentro da noite com espantalhos.

Aceleram os mistérios até tornarem fáceis

Os enigmas.

Azedam o leite com a língua. Da cabeça à cauda nenhuma asa,

Mas acreditam nos anjos, não no cóccix,

E voam com suas asas partidas,

Seu sangue mal guardado nas veias,

Como o dia visto das margens com outro

Ar nos pulmões.

 

 

 

 

 

 

FETO

 

 

Nasce esse lugar conosco

Para o qual iremos

Depois de plantar a árvore exata

Dos nossos nomes.

Nesse dia tudo será memória

Que tua pele decanta:

Ver a manhã deitando sobre ti

Que veias são coleiras do sangue

Que só quer jorrar.

Duraremos o tempo de um amor sem feriados.

 

 

 

 

 
 
Tadeu Sarmento nasceu no Recife em 1977. Tem publicados os livros Breves Fraturas Portáteis (Fina-Flor, 2005) e Paisagem com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Foi um dos ganhadores do II Prêmio Literatura de Pernambuco de 2014, com o romance Associação Robert Walser para sósias anônimos (publicado em 2015 pela Cepe Editora).