*

 

Ouvir John Coltrane
Se quiseres ir ao centro da intensidade
Ouvir John Coltrane
Olhar na cara da morte
Ouvir John Coltrane
Rir, desconhecendo o tédio
Ouvir John Coltrane
Tocar a matéria da música
Ouvir John Coltrane
Suportar a solidão, suportar o amor
Ouvir John Coltrane
De um modo que supere a vida
Ouvir John Coltrane
Porque deita em todas as sarjetas
Ouvir John Coltrane
Estes instrumentos bebem contigo
Ouvir John Coltrane
O quarteto vira nação
Ouvir John Coltrane
A febre: sabes?
Ouvir John Coltrane
Blue train
Ouvir John Coltrane
Ir a galope de uma fúria à outra
Ouvir John Coltrane
Lentas barricadas cairão
Ouvir John Coltrane
In a sentimental mood
Ouvir John Coltrane
Supreme, supreme
Ouvir John Coltrane
Depois, o som te nina
Ouvir John Coltrane
No entanto, a alegria é nervosa
Ouvir John Coltrane
Quem não suporta sente sono
Ouvir John Coltrane
Reconhecer o desígnio
Ouvir John Coltrane
Quer dizer, não renunciar
Ouvir John Coltrane
Ouvir John Coltrane
Ouvir John Coltrane

 

 

 

 

 

 

*

 

a música foi minha primeira literatura
meu berço de decadência
a estrada incandescente
da vertigem

sou esta aeronave dispendiosa
de um antigo regime
que não se dissolve no coração
dos poetas

 

sou estranha e cheia de acordes
trítonos
um livro despachado para o nada

 

biblioteca rangente.

 

 

 

 

 

 

*

 

O homem executa um pequeno número de ações. 
Ama, inspira, desaparece.

 

Trai, multiplica, esquece.
Joga todos os livros fora.

 

Menos o livro com a palavra derradeira
da língua que nunca disse.

 

Doravante, nunca jogou nada fora
nunca teve nada.

 

Como na origem de certas árvores
intocadas na profusão das matas.

 

 

 

 

 

 

CESURA

 

 

Dois corpos que dançassem, se dissessem:
há aqui o vazio. Ele constrói nossos passos.

 

 

 

 

 

 

PUZZLE, PIAZZOLLA

 

 

meus dias
fervor e tango
tanto amor
em timbres mais agudos
lâmina, o bandoneón
no frio de maio
tudo aceso
dançávamos
os teatros
os cafés
meu corpo
ninguém
e no escuro da volta
uma perna toca a outra
de homem, de mulher
na brancura o topázio
evocando teu sono
asa de avião
trombada de chuva
e mais um ano
retornarei à cidade
que inventou os salgueiros
e fugirei, lembro
verdades demoram
a derruir.

 

 

 

 

 

 

PROPORÇÃO

 

 

Somos alucinadamente pequenos
mas a grandiloquência também nos sonha

 

lucidez ao revés da fala
língua em cordilheira

 

estreitando corpos —
razões nucleares.

 

Sonha comigo e me invade porque eu sou praia
cerca aramada, propensa imagem

 

teu universo me desdobra
e eu me recomponho, ínfima

 

desconfio que imensa
imensa do que não sabemos.

 

 

 

 

 

 

*

 

Não alimente os poetas. Não dê de beber aos poetas. Expatrie os poetas. Cegue os poetas.
Eles crescerão: sem margens, estripados e famintos. Arrumadinhos e vampiros.
Envoltos em desgraças, dentro das suas gavetas, corroendo sua memória.
Ali Babá, Gengis Khan, Torquato e o boi. Manoel chupa cana, assovia. Chupa cabra. Chupa sêmen.
Quem mais humano? O fluido que ficou ali. Marcado como uma vogal.
Poeta tem o gosto saboroso da mentira. Gosto poroso do mundo.
Quase fica, antes de ir. Quase parte, quase você.

 

 

 

 

 

 

TOM ZÉ

 

 

que se diz Galeano
que dizem gênio
que é uma sombra que cresce 
(gênio é um legado)
corre atrás da bola.
Que não é gênio
que se diz japonês
que é monstro
em Montreux.
Tom Zé
teu samba farpado
de arame martelo
que fere o sândalo
cidadão.
Ah, senhor cidadão
doente
que corrobora
ajeitadinho
estudado
o cu do mundo:
Tom Zé te olha.

 

 

 

 

 

 

DIONEIA

 

 

I

 

Dioneia tem boca de vingança: trucidante. Dioneia comeu todos os meus poemas. Agora só escrevo Dioneia. Dioneia não admite ser tocada pelo inseto de minhas mãos. Não quer representações: quer ser Dioneia. Muscipula, carnívora, americana. Ah, Dioneia, sou um pobre poeta que te vê aberta. Como se me chamasse, como se me quisesse, como se me comesse.

 

 

II

 

Dioneia veio por nascer de sua fome, de sua forma. Não aguentou e devorou uma parte dela. Veio quebrada, Dioneia veio partida. Pequena. De tarde, calada, Dioneia me vendo dormindo, Dioneia com nome. Eu cheia de nomes, Dioneia, cheia de páginas. Que fazer com todos os nomes, todas as páginas? Engolir, Dioneia, tautologicamente, o presente que és? Dioneia veio banhada no verde, clorofila e terra, perdeu sua cor, foi devorada pela fotografia.

 

 

III

 

Dioneia se fez noite, água, pássaro, planta, inseto, incêndio.

 

 

 

 

 

 

SELFIE PARA VIVIAN MAIER

 

 

fotografava impreterivelmente
as tardes
linhas de sombra
escalas de cinza
o peito uma assimetria de folhas
seu rosto em qualquer lugar
cada viagem
mais longe
um sol mais pungente
volátil como o dorso das cobras
reflexo de um amontoado de gente
no vazio suspenso
em avenidas inclassificáveis
na textura incrível do horizonte
alguma madrugada rara
e um retrato que nunca tirou.

 

 

 

 

 

 

*

 

Proponho uma duração
em que o espírito de cada sentença
tente assumir o risco
de sua forma, vá mais alto
como vão abutres e deuses
importa a tensão
da queda.
Sobre despojos
um fotógrafo chamado Eggleston
ergueu imaginários
saturou as cores como quem
decompõe
se alimenta de restos.
Numerosos exemplos
para transfigurar a eternidade
ineficácia plena
contra a necrofagia do pensamento.
Encontrar uma raiz
uma sequela
uma asa congênita.
Bastaram lanchonetes em Memphis.
Entregar os olhos ao breu
no alto Gávea
essa paisagem perdida
esse apêndice carioca
essa limusine rosa na rua.
O real fantasmagórico
vários sotaques sozinhos
árvores mais unidas que nós.
A imagem monumental de um triciclo
corroído
permanece fincada na parede
de uma casa enorme e fria
até o dia vinte e oito.
Durar talvez seja o zelo
com que certas coisas
vão se perder na memória
reunidas pelo acaso
sendo nossa carne
uma intenção de futuro.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Há tanta beleza no mundo
tua bondade ecoa
tua beleza severa.
Preciso de tua bondade
mais que da beleza do mundo.
Tente ligar nossos pontos
esforço de compreender
um céu com pinças.

 

 

 

 

[imagem ©j. a. almanza]

 

 
 

Roberta Tostes Daniel. Carioca nascida em 1981, cursou Jornalismo, mas se formou em Letras. Escreve em blogues há mais de uma década. Já colaborou com diversas revistas literárias pela internet e participou de algumas antologias. Não tem livro publicado. Mantém o blogue Sede em frente ao mar [sedemfrenteaomar.wordpress.com].