UNDERPLAYGROUND

 

 

Playground submerso

é um lugar incerto:

Onde transita um código

Indireto. Não tem nome

a brincadeira que se topa.

 

É local de prazer,

mas não se diz ali tal palavra.

Não há dinheiro

nem sua ausência.

 

Playground submerso

não é tampouco o nada

ou petróleo.

É underplayground ocorrência.

Não se a toca impunemente.

Não se a recorda.

 

Playground submerso

é um país inverso,

Onde há milênios e nenhum

tempo ainda registrado.

 

 

 

 

 

 

MARTE

 

 

No planeta Marte,

há prazeres platônicos.

Marte é o deus da guerra

E um ferreiro indômito.

 

Marte tem a cor

De sua própria carne,

Onde pairam desertos

De tons luminosos.

 

O que se passa em Marte

(em seus centros de orgia)

é o perfeito circuito

de um vasto sangue.

 

Nada indica que ali

o ser humano exista,

ou mesmo o marciano,

o vegetal, insumo  planetário.

 

Pelas últimas fotos,

Marte está vazio

Como um triste campo

Apenas irrigado.

 

Estão vazias

Suas férreas usinas.

Desabitadas estão

Suas quadras de polo.

 

 

 

 

 

 

ESPELHO

 

 

O verso desse espelho

Não se explica senão pela

faca que o toca.

E que lhe fende a fina

Superfície intacta.

 

Em se olhando, se revela

a contraparte estática.

Tão amolado é o fio que a verte.

Tão afiada a lâmina do corte.

 

A face do espelho está

Oculta no vértice.

Ao fitá-lo, vê-se

que o habita o traço.

Que o ocupa

a intocada face

de outro espelho.

De outro espaço que,

ao ser tocado, emite o som

do inverossímil teclado.

 

O espelho é seu

próprio relâmpago.

Seu próprio

Introvertido cofre.

 

 

 

 

 

 

ETERNO SANGUE

 

 

Sou tua glória.

Mais rastejo, mais

No lamaçal me segues.

Mais indigno sou,

mais me procuras.

 

Sou teu eterno sangue

e teu banquete impossível.

Sem minha carne não consegues

Lavrar as escrituras.

És também meu esquivo objeto

E meu espinho.

 

Sou teu cão raivoso,

tuas algemas. Espada erguida,

vens à minha caça.

Mas ante meu silêncio

tua lança é frágil.

 

 

 

 

 

 

FERIADO

 

 

É feriado.

A rua em frente à casa

É tão vazia.

 

O feriado imobiliza

Os homens no bar e o sabonete

Sobre o mármore da pia.

 

 

 

 

 

 

CHUVA

 

 

No mesmo compasso

Em que agora cai

Essa chuva esparsa

Tem mil anos de vida.

 

Há mil anos, cada pingo

Tem seu próprio baque

Há mil anos, cada telha

Tem sua resposta.

 

As casas molhadas

São a mesma cidade.

E dentro das casas,

Uma só família.

 

Com um só tecido,

As mulheres se vestem.

Para todas cabe

Um enorme vestido.

 

O nome de todas também

É um só. À cada letra do nome

Vários corpos correspondem.

 

O que não é igual

Na cidade é a chuva,

Cada pingo contém

A sua morte inclusa.

 

Cada pingo contém

O seu próprio sentido.

Cada mulher nas casas,

Sua cota de chuva.

 

 

 

 

 

SEGREDO

 

 

O segredo está na cara,

Está no fundo do umbigo.

 

O medo está no ombro

Do homem que se move

E para (dentro do vidro).

 

Ao se colocar tão cedo

À mesa, o ovo não fica em pé

(porque cai de antigo)

 

O segredo está no ovo

Que descarta gema e clara.

 

O segredo está

No novo fato jorrado

E no papel,

Pela primeira vez desenhado.

 

 

 

 

 

 

NO CÍRCULO

 

 

O corpo que respira

É o único fato que conta

No círculo. O pensamento

Não o toca de frente.

 

Assim como a dor

Que rói a pele, tudo alcança,

Se o corpo não vigia.

 

Assim como a pedra

Sai do rim e pela veia rola,

Se o corpo não desmente.

 

Mas o corpo que respira

Tem dono. Quanto mais

Espaço vago existe

 

Mais de perto sem tem

O corpo ausente.

 

 

 

 

 

 

CRISTAL

 

 

Para quem o tem na mão,

O silêncio do mato

É o som do cristal.

 

É a impossível caça.

 

Também inverossímil,

O caçador apenas ameaça.

O dente não consegue

Transpassar a presa.

 

Tudo mente, tudo escapa.

 

É a força do campo

Que sustenta o cacto.

É o inseto que governa

A controvérsia do mato.

 

 

 

 

 

 

UMBRAIS

 

 

Trabalho com insumos,

E com as pedras

Que sustentam o lago.

 

Com mãos molhadas

Umedeço as cordas

Que permitem

Vibrar tão alto

Esses varais.

 

Não tento segurar os ventos.

 

Com meu próprio

Corpo sou pilar dos tempos

E do zinco.

 

Meu sustento

Retiro dos umbrais.

 

 

 

 

 

 

MÃO GRAVADA

 

 

Na cidade recém aberta

Não consigo medir, no concreto,

A mão gravada.

 

Com intenso calor se faz,

Num lapso, o longo tempo.

 

Na cidade inesperada,

Quanta rua

(e nenhuma leva ao centro).

 

No oblíquo mural,

Quanto espaço se perde

Entre o branco e o cinza.

 

Sobretudo, quão pouco

Se trouxe do passado

Tão atual  casario se dilata.

 

Tão erma, a cidade

Influi no tempo. Dedilha

No entorno um instrumento

 

No contexto da cal

Percebo a cidade mas perco,

No mapa, este momento.

 

 

[Poemas do livro Underplayground. São Paulo: Patuá, 2014]

 

 

 

 

INÉDITO

 

 

A grande poesia provém

do sistema solar.

Sem a foto síntese

Não há verso.

 

Com a mesma cor

e forma das grinaldas,

o poema atravessa

impunemente  a luz astral.

 

Ele tem a mesma dor

dos navios e quimeras.

Ele impera silente sobre

o campo de esmeraldas.

 

 

[imagens ©lemmy]

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ricardo Coquet: "Fui repórter e crítico de música popular em jornais do Rio. A coluna não se identificava com o 'sucesso'. Nessa época, comecei  com a poesia e publiquei os primeiros poemas em suplementos dominicais. Em São Paulo, desde 1973, caí na Assessoria de Imprensa e nunca mais larguei. Procuro fazer uma poesia não verbal, com uma estética específica desse tipo de arte. Isso existe? Existe. Mas não há regras claras. É pura paixão. Esqueço os poemas quando ouço Johnny Alf e temas de jazz. Se alguém pode fugir dos 'parâmetros poéticos', pode fazer boa poesia. Essa pode ser uma verdadeira arte lado B. Underplayground é meu único livro. Mas estou cuidando do próximo. Haverá tempo?".