Urbano III

 

 

eu,

poeta urbano,

escrevo com concreto,

plástico, asfalto,

com gasolina, álcool,

gás, diesel

e com monóxido de carbono

 

penso na técnica,

ouço o ritmo:

britadeiras,

motores,

buzinas engarrafadas,

rimas pobres nos pregões das feiras,

bate-estacas,

boates de lata transitam noturnas,

carroceiros lutam pelo lixo,

cascos e chicotes catraqueando asfalto

 

procuro cores,

produzo imagens:

preto-asfalto,

preto-fuligem,

cinza-ar,

cinza-edifício,

cinza-calçada,

marrom-escapamento,

marrom-sarjeta,

boca de lobo entupida

 

vermelho-boca-de-puta,

(preocupante

quando pinta faces pueris)

vermelho-sangue-seringa,

vermelho-sangue-assalto,

vermelho-sinal-fechado

 

fazer poesia não é fácil!

porque é preciso olhar

com o olhar que desnuda,

que vê verdade e vergonha;

pedintes profissionais

postados

na porta dos supermercados,

mães de filhos alugados;

o olhar preciso

que vê

a cola no colo da criança,

que vê a infância

atropelada pela vida

 

é preciso olhar

com olhar que vê

a cidade acontecer

e a desvenda em palavras;

palavras que viram pedras,

que ferem,

que acusam,

mas que também

podem cantar

como pássaro

que insiste no voo

mesmo em meio

à névoa negra

dos escapamentos

 

 

Porto Alegre, 02 de junho, 2008.

 

 

 

 

 

 

A flor e o asfalto

 

 

Preso ainda às convenções

visto preto, cor do meu tempo,

mas a rua, seu Carlos,

continua cinzenta.

Tudo ainda está à venda

e arma alguma autorizaria revolta.

 

Este é o tempo da justiça afinal,

não a justiça bondosa —

de bronze, de prata, de ouro —

justiça da ira divina:

do fogo descontrolado

que mata a nossa mata;

de terra que sacode escombros

como quem dá de ombros;

de um ar sujo e furioso

desembestado em tempestades;

de águas que retornam

sujas e podres como o mundo,

como o nosso mundo!

Águas que inundam,

águas que lavam,

águas que levam tudo por diante,

águas que afogam velhos, crianças, bombeiros...

mais fortes que a força.

Justiça de Gaia febril

infectada de humanidade.

 

Mas, mesmo em um mundo revolto,

ainda há tardes amenas.

Caminho pelo meu Porto,

Alegre ao menos no nome,

seduções em calças justas

encurvam meu pescoço.

O ar está luminoso, 

embora a fumaça dos carros;

pardais pipilam,

mas não param

de catar comida no lixo.

Da janela do edifício,

um gato observa os pardais,

frustrado pelo vidro fechado.

Ao meu lado, um som

não é alto, mas diferente,

não o crepitar de folhas secas

nem papel desfraldado ao vento.

É som mais pesado, embora leve.

Ao meu lado, um som bate no chão.

É leve, mas tem o peso

de uma vida que se vai:

 

Uma flor morreu na rua!

Não era forte como aquela do Carlos,

embora fosse mais bela.

Bateu no chão preto e ficou,

vermelha, marcando sangue,

uma flor solta no asfalto,

uma flor morta no asfalto,

uma flor!

 

Pés,

pneus,

vento,

chuva,

garis com suas vassouras

se encarregarão de levá-la,

mas ela ficará

na minha lembrança

(e na foto mortuária que tirei).

Longe,

lá no polo,

uma geleira se desfaz

chorando a flor que se foi

ou, talvez, chore por outras,

as flores que nunca serão.

 

 

Porto Alegre, 14 de abril de 2008.

 

 

 

 

 

 

Poema frio

 

 

inverno

inaugurou hoje

não no calendário,

que lá inda é outono,

mas no ano

no dia

na pele

 

inverno

invadiu o ar

que chora

uma chuva

molhada

chuva de inverno

molha até os papéis

(os que estão

nas gavetas)

 

inverno

chove triste

molha a roupa

molha o corpo

molha os ossos

chora o dia

até virar noite

 

inverno

encharca

as calçadas,

emboscado

embaixo das lajes,

alagando frieiras,

penetrando por

insuspeitos

buracos no sapato

 

inverno

triste e cinzento

como o dia

como a cidade

como o mofo

das paredes

e da alma

das pessoas

 

se o inferno

fosse frio

seria inverno

 

 

Porto Alegre, 29 de abril de 2008.

 

 

 

 

 

 

O verbo, a rua e a lua

 

 

Deus, o Omnipotente

criou o mundo através do Verbo

eu, menos competente,

crio, através do mundo, o verbo

m u n d a r

e, por este verbo,

eu mundo

tu mundas

ela munda

e nós

mundanos vagamundos

vagaluzimos pela noite

bebendo até ver o fundo

até uivar pra lua

reflexo no cálice

repetido na sarjeta

nas poças barrentas

 

lua branca

lua cheia

com jeito de mundo

interior

 

plenilúnio

onde Jorge da Capadócia

mata seu dragão

Yê Ogun!

 

yeah, yeah, yeah

she loves you

(and you  know that can't be bad)

música múndica

som de rádio de pilha

rasgando a noite metálico

mal sintonizado

no lago de fígado

 

lua branca em céu poluído

mundo insolúvel

de Raimundo

mundo dividido

desideologizado

globalmente esgotado

internacionalizado mundo

faminto empobrecido

sujo mundo de gente porca

 

em algum lugar

na noite do mundo, um bar

lâmpadas fluorescentes

copos com espumas

que traçam texturas de lua

Ogun na espuma do copo

cerveja de Ogun

churrasco de costela

assado em tonel na calçada

um gole pro santo na noite no mundo

 

lua no céu

cavalo dragão cavaleiro de lança

no princípio era o Verbo,

e o Verbo foi mundo

Yê, yeah!

 

 

 

 

 

 

Salve Maria!

 

 

salve Maria

pela tua graça

salve mulher

toda Maria

 

que é sem senhor

salve Maria

senhora de ti

 

salve o teu seio

que doa vida

salve teu ventre

que gera carne

 

salve teu corpo

Maria-anja

mulher madura

 

salve tua luta

teu dia-a-dia

salve Maria

 

também, Maria

tua alegria

que muita ou pouca

me extasia

 

Maria louca

lírio da lua

Maria amante

Maria-sol

 

Maria das dores

parto e amores

Maria das graças

e das desgraças

 

Maria das ruas

Maria das praças

Maria que sua

se desalinha

e não perde a pose

 

Maria puta

Maria santa

Maria da vida

Maria maldita

Maria bendita

Maria mulher

 

que faz milagres

com teus pecados:

 

Santa Maria

olha por nós

que morremos

de amor por ti

 

Porto Alegre, 12 de junho, 2010.

 

 

 

 

 

 

 

Rainha dos jardins da Alexandria

 

 

                   "Alô, minha rosácea

                   minha flor de lótus,

                   minha rainha dos jardins suspensos

                   de Alexandria, (...)"

                   DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Os Nomes da Amada"

                   in Poesia Errante. Rio de Janeiro: Record/Altaya, 1988

 

 

Não tão famosos

quanto os da Babilônia

nem tão belos talvez,

mas minha amada prefiro

rainha em Alexandria.

 

A torre de lá, menos alta,

em vez da babel de línguas,

tem uma luz que orienta

gentes de todos os povos

que para lá se dirigem.

 

Porque, esse teu jardim,

é espaço feito pra mim

(também pra ti e pra tantos):

 

o maior farol de Alexandria,

também seu maior jardim,

se chama Biblioteca.


 

 

Por quê?

 

Criança pergunta,

quer sempre

por quê

?

 

A gente responde

e volta:

Por quê

?

 

Por que

isso
?

 

Por que

aquilo
?

 

Por que

a resposta

?


Por que

o adulto

?

 

Por que

a criança

?

 

Por que

a pergunta

?

 

Por que

o porquê

?

 

O porque não

importa,
porque o que importa

não é a resposta —

nem é a pergunta.


O que importa

é que criança

pergunta
porque duvida

até da dúvida;


porque sabe

que quem duvida

descobre
a vida.

 

 

 

 

 

 

Relações textuais

 

 

textos

contradizem

textos

saem de si,

detestam-se

 

textos

falam de

textos

enfocam

fofocam

 

um texto

toca outro

texto

contempla

complementa

 

textos

se tocam

se trocam

sentidos

 

textos

se testam

se penetram

se fundem

 

textos

sem pretextos

procriam

contextos

 

 

Porto Alegre, 23 de maio de 2008.

 

 

 

 

 

 

Poeminha difícil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pandora

 

 

Pandora, encantadora,

com sua bolsa fechada.

Seus encantos são cantados

por titãs maravilhados.

 

Pandora de seios plenos,

cintura de estreitar;

Pandora das ancas anchas,

da bolsa, toda bem-feita,

que não se deve encarar.

 

Pandora, pele macia

que sabe ao alabastro,

perfume de fêmea no cio,

Pandora pura paixão!

 

Pois, dela, o irmão do fogo

ousou pedir a mão

cobiçando o belo corpo.

 

No dia de suas núpcias,

na noite de sua paixão,

percorreu Epimeteu

cada poro de Pandora...

língua, lábios, dedos

foi descobrindo a amada

até chegar à sua bolsa,

tão linda, ainda fechada...

 

Lentos, cuidadosos dedos

vão testando aquele fecho

que a pouco e pouco se abre;

os lados se afastando,

a brecha se ampliando.

 

De repente, num rompante,

irrompe da bela bolsa

um surto de sortilégios:

imensa sorte de dores,

doenças, faltas, ausências,

todo tipo de tormento!

A amada de Epimeteu

cai como casca vazia:

Pandora, dona das dores.


Humilhado, o marido

observa a bela bolsa,

já agora esvaziada.

 

Mas perto da abertura,

escondida entre dobras,

há uma forma pequena...

ainda menor que botão

que, quando acariciada,

restaura a felicidade.

 

Pois, ainda, em seu íntimo,

vazia de suas dores,

Pandora porta esperança.

 

 

 

 

 

 

Povoado afogado

 

 

povoado afogado

tolas calhas

que ocultam moluscos

(quando o ar é água

telhados quebrados

não tem goteiras)

 

vila subaquática

onde emoções passadas

e sonhos molhados

permanecem entre os peixes

que nadam por ruas

 

lugarejo onde te quis

agora imerso em lago

silêncio de poço

torneiras inúteis

chuveiros inúteis

 

talvez em um fado

de conto de fada

alguma sereia

resolva habitar

a cidade das águas

 

talvez a sereia

encontre algum dia

teu quarto de nácar

cortinas de rosa

dossel de algas

 

quem sabe a gaveta

do criado-mudo

ainda tenha o poema

em caneta verde

na folha de almaço

 

quem sabe o poema

lavado na água

levado pra longe

agora dissolvido

no rumo do olvido

 

à vista da sereia

as palavras desfeitas

o papel esfacela

e a menina das águas

não sabe ler

 

 

 

 

 

 

Encanto

 

 

beijo de canto de boca

amasso de canto de sala

a vida tem desses encantos

 

 

Porto Alegre, 06 de setembro de 2012.

 

 

 

[imagens ©dennis busch]

 

 
Renato de Mattos Motta. Poeta, artista plástico e publicitário. Publicou Pau de Poemas (álbum com poemas ilustrados em xilogravura. Porto Alegre: Gente de Palavra 2013); Fotopoemas, Os Cantos da Carochinha — cantando contos encantados (Porto Alegre: Portopoesia. 2009); Virtude Virtual (pornopoema, ilustrado por Will Cava, Porto Alegre: Gente de Palavra, 2013), editor da Coleção Fogo do Verbo (caixas de fósforos com poemas de vários autores, produção artesanal) e coeditor da Coleção Palavra Viva da Editora Porto Poesia. Fez parte da coordenação dos festivais Porto Alegre Dá Poesia e Porto Poesia (edições 2, 3 e 4) e realizou os saraus "República da Poesia", "Poesia ponto Com", "Meus Poemas Sou Eu Escrito". Juntamente com Michelle Hernandes, coordena o grupo "Gente de Palavra", que reúne poetas de todo o mundo pelo Facebook e produz mensalmente a revista e o sarau de mesmo nome, bem como a Gente de Palavra Microeditora que, além de edições artesanais, vem publicando por meio de financiamento pelo FUMPROARTE (Fundo Municipal de Produção Artística e Cultural de Porto Alegre) a Coleção Caderno de Poemas, que já lançou sete poetas inéditos e deve lançar mais dois até o meio do ano em edições de 1000 exemplares, sendo parte da edição destinada à distribuição para turmas de EJA de escolas municipais. Gente de Palavra também foi, juntamente com Vidráguas e Aprés-Coup Escola de Poesia, organizadora do "AEDO – Arte e Expressão Da Oralidade – Festival de Poesia e da Exposição Poesia Ilustrada", dentro desse evento, que teve lugar no Centro Cultural CEEE Erico Veríssimo entre 10 de junho e 15 de julho de 2014, em Porto Alegre, com realização do MinC via Concurso Cultura 2014.