Foi me dada a graça sibilina da escrita deste pequeno Fausto em dois meses apenas, como uma fruta algo apodrecida que cai, à maneira de um jato de imagens precisas — numa parede que tremeluzia já. O jato: eu, Mariana L, língua vibrante pelo viés da atriz Sheila Faermann (meu "corpo físico", então). A parede: a realidade em luzes, ou, antes, a mescla compulsiva delas, que vi surgir das passadas desajeitadas de camponesa russa/carioca          pelo mundo das redes sociais, da Casa das Rosas, dos festivais nacionais de           poesia, etc. Quis entregar este meu diminuto Fausto para Luciano Garcez, como deixara meu Caderno de Poesia antes, mas, agora, fiz outra coisa — a mais — que o "deixar": devorei, com fomes de pétala, Luciano Garcez, tirando-lhe a contragosto o insignificante status de poeta B.; mesclando, com os vícios obsedantes do símbolo, uma figura que tão obviamente se cola à dele: a do pós-moderníssimo Dr. Fausto. E para o pavimento desta pequena disneylândia metafísica, servi-me, algo sistematicamente, dos Faustos de Marlowe e de Goethe, além dos desenhos manipulados por Photoshop que transcriei de imagens da Tradição e do fugaz internáutico — sangue certamente não tão finamente urdido por mim.

 

Não sei precisar bem, geograficamente, o que é Mariana L aqui, mas, por se tratar de um caso de extrema urgência de escrita, a expressão — de vestes implodidas —, apareceu em primeiro plano e voz, e assim a deixei, animal sem contornos delineáveis. Algum de nós dois, leitor, aqui, estará paralisado, a contemplar essa palavra tão rota em sua amplitude: eternidade. Pois bem, Fausto perdeu-a: não no significado, mas em alguma grafia de ideia da língua. E eu juro que tentei trazê-la de volta, do fundo do poço da aldeiazinha de Margarida na Silésia, para a mesa de pergaminhos e links neoplatônicos — o redemoinho conceitual do Doutor.  Pois não tive sucesso — mas a luz do desejo ficou, e aqui flutua, uma criptografia de sacerdotisa possessa/letrada, que tenta uma poética de impressão e pinceladas, de equivocas vírgulas "de arfar" — nunca exatamente determinadas.

 

E este trabalho possui, pois, em seus andaimes vistos, muito da carpintaria literária de Luciano, e mesmo sua participação poética efetiva em alguns poemas, representando uma evolução criativa e, quiçá, espiritual em meu trabalho, desde o primeiro — e já longínquo em estética — livro.

 

É tentador e talvez desejável imaginar que o Poeta B. talvez apareça aqui na figura de Fausto? E Mariana L., teria uma sua equivalente em Margarida? Ambas as coisas são pertinentes, mas meu Fausto, meu pequeno e sem traços quiromante da megalópole triste, é aquele que está somente onde, como quando digo, num poema do livro, "A abjeta sensação de não pertencer. De estar cravada na carne — pelo, unha, veia, suor — e a carne não estar". [Marianne Liuba Löhnhoff. Tijuca, dezembro de 2014/janeiro de 2015]

 

 

 

PERSONAGENS

 

FAUSTO

MEFISTO

MARGARIDA

WAGNER: jovem assistente de Fausto.

VALDEZ e CORNÉLIO: amigos de Fausto, e "doutores" como ele.

CASPAR: um criado de Fausto.

GOETHE, MARLOWE, HELENA DE TRÓIA, SÃO MARCOS, CHORUS MYSTICUS, MÃE DE MARGARIDA, DRUMMOND, LUTERO, BEATRIZ, SYLVIA PLATH, HEGEL, POETA B., LUCIANO GARCEZ, PETRARCA, GERAÇÃO Y, SAN JUAN DE LA CRUZ, ANJO BOM E ANJO MAU, O VOLKSBUCH E ETC.

 

 

 

 

PRÓLOGO

(sem voz de personagem)

 

 

E se Fausto saísse das mãos de Hölderlin

ao invés de Goethe?

a menina seria uma sacerdotisa Ática

e brotaria das raízes,

da pedra inamovível e da Luz?

 

 

 

DA TRÁGICA HISTÓRIA DO DOUTOR FAUSTO, DE MARLOWE

(entra o Coro, vindo  de uma cidade grande do sul da América)

 

 

Nem a marca encarnada de Marte

na bainha das batalhas

nem gregos em voos atrabiliários

ou as fotos do casal de atores

na revista feita para o saguão de aeroportos

nada disso nos move no "para que viemos":

— aqui, senhores, mostramos

falando baixo

pisando chãos carregados de explosões simbólicas

o menino Fausto

da humílima cidade de Rhodes

que por dom inato torna-se, em sete luas,

curandeiro, médico, manipulador de marionetes, biogeneticista

e porta uma serpente em cada uma das mãos

— contrárias a si, ciciantes.

 

O saber recebido

abeberou-se dele

até o basta

e subiu aos céus em asas de papiro

que Hélios, num sádico sorriso dourado,

transformou em barro,

deitando-o (quase pseudo-semideus) ao solo

sob o peso na sua própria

e negra sombra necromante,

— um proto-Diabo aqui desaba, pela segunda vez...

Eis que o veremos,

Sentado nu em seu escritório.

 

(sai o Coro, desaparecendo num átimo)

 

 

 

DE FAUSTO E DA REAL POLÍTICA

(com indicações de Luciano Garcez)

 

 

Ordenei o caos com o método mais amante do mundo,

todo temática ele

na guerra contra os turcos

nas poças de lama e artérias aos jatos de Waterloo

ordenei-o, numa fúria esculpida por cálculos infinitesimais

e o Caos se apiedou de minha pena

silenciando-a num gesto formidável de cadafalso.

 

 

 

DE FAUSTO E MARLOWE

 

 

Vejo uma Europa em chamas da ideia

e a cinza que sobra

sombra

do decaído.

 

mal aguento-me sobre as pernas

mais que garganta, que a oratória de São Cipriano pregando no deserto!

quero o outdoor com meu nome em mármore 3D

mas

ah

cresce em minhas costas as asas sibilinas da narcótica transcendência.

 

Imanente

gente — detesto!

e sou um ser do ser após.

 

 

DE FAUSTO

A verdade é um vício de suicidas. 

 

 

 

DE FAUSTO E SEU GEIST

 

 

Suábia 1480

ou as alamedas de tílias de Witterberg

passos dissipados na lentificação da andadura de uma lenda.

 

Circa de 1480?

na feira, ele vende unguento que faz as bruxas deslizarem pelos ares

depois, senta-se entre bispos e um príncipe caolho

e retalha-lhes Aristóteles.

 

De praça em praça

dizeres zapeantes

para o outono que troveja.

 

 

 

DO URFAUST

(Do Originário)

 

 

A posteriori te encontro

poeta da Weimar desapaixonante

a dialogar com o longínquo e o mim.

 

Ao futuro lançaste o teu embrionário

apenas a linha —

e o contorno borrado fez-se luz!

 

 

 

DE FAUSTO E DE UMA RIMA DO VOLKSBUCH

 

 

Ai, lua que reluz, incômoda

tua inexistência em branco, dama,

desmonta, tom e tom, os mudos do medo

e, muro circular, marca a irmandade do demônio.

 

E Lutero, que à mesa o chama de "caro Doktor, primo do Demo — atentos, todos!"

 

Quer o céu, e o sente na cor da fórmula

(bordada no pergaminho)

ao ponto de abolir a vida pela bula — seu indecoroso lábio decompositor.

 

Paracelso: — queres a FORÇA do mundo, apoderando-se dele através das peças remontáveis do pecado!

Fausto Jovem: — talvez apenas troque-as trinchando outros truques, equivalência e alguma voluptuosa liberdade...

 

 

DE CORNÉLIO

 

Seco o mar de asperezas

evaporada dos poros das ondas a espuma

pululam tesouros

minério canoro (será?)

sepulturas dum saber antigo

— que subterrâneos mais navegar então, Fausto?

 

Na terra os avós nossos no sepultaram

e as mãos dele seguram as pás de cal

sobre a também branca Láctea

e o pó recai sobre o pó, despojo que somos,

e repousam, mutuamente.

 

 

 

 

©fausto 

 

DE FAUSTO E DO PEQUENO DIABO

 

 

— respondo à tua estatura insignificante

— e eu, riu da tua ciência de lógicas ogivais

— és nada, o que ousas?

— de onde venho, hierarquias são mascaradas feitas em carne viva.

— és o eterno oferecedor?

— não, os dedos do teu desejo

— sou um homem da altitude, cavando os túneis do úmido e do Terrível!

— gotas de mim, em teu Terrível!

— zombas?

— nunca. Trabalhar em hotéis é profissão sacerdotal.

— o fim, então?

— importa se te conheço? Se queres um Deus, pega-o de minhas patas.

 

 

 

DE MEFISTO

 

 

A raça retraída

tão próxima de meu príncipe

tão facilmente degustável

—  toco-te? —

lucidez de paralisias.

 

Hábitos do Limbo da Luz

placenta de ideias recurvadas

Antinaturais.

 

Teu Deus não te quis

raça em fuga

e minha imensa desgraça

é indiretamente a ti servir

como a mão canhota e definhada

dum demiurgo empalado.

 

Dormi ao relento das eras

bêbado

rescendendo à cerveja de taverna

e de certa e luz, caída de dor.

 

Teu deus te quis

desejo que se ensejou carne

canícula do abismo

cisma dos elementos naturais

fratura dos tempos

de onde jorra a voz sublime de mundos abaixo

ocas vozes, cravejadas de atropelos

e de um luto eterno

onde te perderás pelo gosto da Beleza

e da leveza infinita da Coroa

em sua queda.

 

 

 

DE MARGARIDA E DE MEFISTO

 

 

Meu céu cindiu-se, doce

e eu pari pares de estrelas

saídas das pontas de meus pés

num rodopio cadenciado

mais denso que os montes grumosos das ondas do Mediterrâneo

mais desatável que uma virgindade nascida dos ocasos.

 

(Mephisto, segurando uma das pequenas estrelas com a ponta dos dedos)

 

 O sonho deita-te, formosa Fraulein,

 numa esfera de espelhos

 dos prados desamparados daquilo que quiseste

 não teu destituído desejo

 mas minha inteligência sibilina

 das várias varas de porcos despencando transidas no abismo.

 

 

 

DE MARGARIDA

 

 

Mostrei-te o regato miúdo

e vias em mim "De Reram Natura"

nada saberia de "Reram Natura"

além do regato que congela minha mão

agora, agora

que mergulho-a furando sua superfície de espelho

e encontro teu coração

num seixo entristecido de limo.

 

 

 

DE MARGARIDA E DA MÃE

 

 

Achei-o triste

olhava-me campos estranhos em mim

"solos estelares", foi o que ele disse.

 

E Margarida puxou num gesto ausente

a água da cisterna

e a água elevou-se vazia até suas mãos, no balde,

onde uma estrela flutuava em coma.

 

 

 

DE MARGARIDA E DE SYLVIA PLATH

 

 

Pois andei entre os olmos

e eram gasodutos, mais que olmos eles todos.

 

Quem me procurou até lá

indo, asas ágeis, seguindo

até lá?

 

Nem Herr Doutor nem meu poeta

nem aquela branca sombra

(folha esgarçada num chão tremeluzente)

nem os hinos de vitória, feitos inalação

nem o gosto do mirtilo na boca manchada:

fruta náufraga, engolida dum gole.

 

só quem me seguiu foi o cheiro do gás

aberto

e a hora súbita em que o sono vem.

 

 

 

DE FAUSTO E DA SOMBRA

 

 

Quando o teu dom for turvo, alegria

e a paralisia da cicuta circundar meus quadris

vomitando alguma alma pelos poros

na forma dos grãos de areia do tempo.

 

Quando a mesma rota cortina

esconder um recurvado cadáver.

 

Ponha a mão em meu rosto imberbe

e procura algum pelo nele

qualquer ruga que ancore uma dor que voa

um lapso

e em seguida, afasta-te com teus dedos porosos

para o fundo da gaveta emperrada,

a mobília murcha...

 

Do fundo das coisas que não saem de si

— desconfortáveis vales-invólucros –

eu clamo em tecnolatim

mas o único deus afogou-se em afagos no lago

e já se ressente do fedor de sua putrefação

 na treva de megapixels

— overdose de luz castrante —

com a foice sagrada que gera, devorando furiosa.

 

 

 

DO CHORUS MYSTICUS

 

 

Céu, acima

o que há

ainda, sobre o céu?

 

Vos dizemos

nós, sombras pré-rafaelitas

asas e bocas abertas

cantarolando

ainda e alongado

o Verbo do Princípio.

 

O Eterno Feminino

minimizou-se

solto o que restava

no ódio da Ideologia

que nos traiu por baixo.

 

 

 

DE FAUSTO E DO INFERNO

 

 

Esperava-o

de porta aberta, barrete e o velho pijama.

 

O que "se espera-nos" gravita

grave e elementar

como o chumbo de ponta-cabeça

um pé atado à forca

as pernas formando um quatro

e o crânio plantado no furúnculo de Gaia

criando raízes.

 

DE GOETHE

 

Taedium vitae

ou a hipomania do jovem Rousseau

— espírito escrito nos

ex-votos que

seguiam-se às cartas?

 

Conselheiro-mor dos interséculos

— Doktor sem sistema

apaixona-se aos setenta

em Baden pela noiva de Corinto

— contava dezenove anos ela, apenas.

 

Alia, lacrado por dentro

hybris

e a meditação da águia

curvada

sobre réguas e compassos

comprimidos pelo penso do tempo.

 

Não o teu — o do sempre

(e, no sempre — um ereto seu eu).

 

 

 

DE FAUSTO (MEFISTO) E MEFISTO (FAUSTO)

 

 

A lei não passa de um gozo grosseiro

que ri-se por trilhos

quebrá-la é questão de tempo

sopre o vento contrário

e ela mesma atraiçoa-se

adúltera, frígida, dolorosa...

 

— Vamos ao baile no campo? A cidra lá é feita da lágrima da Queda!

 

 

 

DE MEFISTÓFELES

(olhos de cobiça)

 

 

Aos poucos

os desejos vão perdendo voz

mas não esvoaçam

viram matéria prima

a minha.

 

 

 

 

 

 

 

Marianne Liuba Löhnhoff, que assina literariamente Mariana L., nasceu do Rio de Janeiro, em 1988. Tendo antepassados russos, alemães e um avô que fora poeta diletante e a incentivou desde menina a escrever, já aos doze anos obteve um prêmio de dramaturgia com a peça Carlo, o Construtor, baseada na vida do compositor renascentista Gesualdo da Venosa. Dos 10 aos 17 anos, traduz Hölderlin, Anna Akhmátova, Marina Tsvetaeva, Pushkin, Kleist, Flaubert e toda a escura poesia da "Décadence Française". Cursou dois anos de Filosofia na USP, logo passando para o curso de Letras da Universidade de Albstadt-Sigmaringen, na Alemanha. Trabalha como tradutora e professora de Línguas, e vive entre São Paulo e Rio. Lançou, em dezembro de 2014 pela Editora Kazuá, seu livro A Mais Atada à Tua Palavra — O Caderno de Mariana L., em Mãos, Seguido de Avulsos do Poeta B, que tem a organização, prefácio e posfácio do poeta Luciano Garcez. Prepara o lançamento de seu segundo livro, baseado na lenda de Fausto: Kleine Faust.