A mulher do açougueiro e outras atrocidades

 

 

Porra! Eis a interjeição que sujeita os amores e move os sentimentos quando a machadinha não consegue perfurar com facilidade algum fêmur bem nutrido. Nada de abraços e de flores. A selvageria é tênue e se esconde atrás de um pelo pubiano encravado, que dificulta o trabalho árduo, mas honesto.

Catarina Palse, húngara da segunda geração, de família famosa no ramo da linguiça artesanal, açougueira por gosto, mulher por condição, vive a vida a arrancar unhas e dentes de vítimas mais agitadinhas. Carniceira das boas, não deixa o sangue pingar no piso branco laminado da casa popular que comprou no último mês de maio. Com sacrifício, trabalha de domingo a domingo, para sustentar as duas filhas doutoras que tem na capital federal. Baixa e obesa. Dotes físicos não muito exuberantes, a não ser os olhos azuis a lembrar da Hungria.

Lembrar? Palavra invocadora de ódio, de rancor. Há coisas que prefere se esquecer. Melhor ainda, esquecer que se esqueceu.

 A morte vem de variadas maneiras, e sendo assim, também se morre de formas diversas. Morre-se a alma, o corpo, a mente. Uns preferem morte lenta e doída, outros preferem o sabor amargo do sofrimento espumando a boca, feito cachorro louco no mês de agosto. A morte também não espera e também não marca horário, é golpe derradeiro. E depois vem a festa. Uma festa alegre promovida pelo Sindicato dos Coveiros e pela Associação da Boa Morte, com bastante pãozinho e linguiça e cerveja barata, que desce rasgando, como se perdesse em cada gole uns dez anos de vida.

O fato é, caro leitor, que machadinha sem corte é casamento sem noivo. A machadinha era o xodó da vida de Catarina, que fazia a maioria das tarefas sozinha, enquanto seu marido, Zé Ramos, ficava a olhar um tal de discoveri tchênel na TV, vidrado, hipnotizado. A única coisa que Zé Ramos fazia era dar a cacetada final no cabra e dizer boa viagem ao infeliz. Mas isso não tira as grandiosidades do galante gaúcho, filho de índia com herói de guerra. Zé Ramos era gentil, extremamente religioso e culto, admirador das artes cênicas e da lírica. Catarina, por sua vez, era remoída pela angústia e o ódio atordoante, declarava-se grande cozinheira e fiel seguidora das tradições familiares. Não conhecia nada de cultura nem de comportamento.

Mas Catarina era um doce. Até que a vítima infeliz adentre os ares de sua humilde casa, há todo um esquema de sedução, regido por aquelas curvas acentuadamente largas, engenhando um prazer imensurável, exalado de seu corpo. Encontrava a vítima na quitanda ou no armazém da cidade, sempre em compras. Quando a leva para sua casa, alimentando com promessas de um café passado na hora, em trapos de uma velha encrenqueira que a terra se recusou a comer, Zé Ramos saía de trás de uma cortina, sempre trajado de terno e gravata, e, num golpe só, aniquilava o indivíduo. Era só isso. Voltava a deitar e a ouvir boleros argentinos, com charuto fumarento na boca, quase caindo. É a preguiça da civilização.

Numa dessas idas ao armazém, do lado de baixo da Rua do Arvoredo, a magnata dos Palse descia a Rua dos Pecados com a cesta e o estômago vazio, pronta a analisar pimentões e cenouras. Catarina tinha um conhecimento gigantesco sobre pimentões e cenouras, ainda mais que sobre linguiças. Sabia quais eram os melhores legumes das melhores colheitas. Sabia o tamanho ideal, a situação de semente e o estado de germinação. Mas isso a cansava. Não tem registro na carteira de trabalho nem títulos de nobreza para conhecedores de cenoura, nem especialistas em pimentões. Demorava cerca de 10 minutos na escolha dos legumes e outros 5 na escolha da vítima. Também sabia escolher as vítimas. Preferia as mais gordas, claro. Banqueiros porcos, de bucho cheio de dinheiro e políticos viciados em cocada de quermesse eram as vítimas preferidas. Difícil seria encontrá-las no mercadão de legumes a escolher algum quilo de abóbora para alimentar suas esposas porcas, de filhas e filhos porquinhos. Os magros dificultavam o serviço. A carne era seca e tinha que raspar até o osso. Gostava era de esquartejar os gordos. Esquartejar: parece uma palavra causadora de grande espanto a quem lê ou a quem ouve. Espanta porque também espanta o significado que carrega essa palavra. Ato de cortar em partes ou pedaços. Baboseira. Embora Catarina não fosse uma conhecedora das significações idiomáticas da última flor do Lácio, sabia muito bem o que significava cada coisa, e também sabia que cada um também dá uma determinada significância e importância a cada coisa. Não. O significado não está atrelado ao ser, ao menos para Catarina. Para ela, esquartejar é palavra divina que algum português fanfarrão inventou de ser feia, lá nas terras do velho mundo. Queria emoldurar a palavra num quadro bem lindo e dourado e pendurar na sala, de tanto amor que carrega por ela.

De olho nas cenouras, massageando alguns pimentões, rúculas e repolhos, observou por entre alguns pães e ovos, uma senhora de uns 60 anos registrada como Odete Junqueira de Almeida Roitman, de olhar soberbo e demagogo. Engraçado é que alguns anos mais tarde, após a morte de Catarina, a polícia descobriria que Odete também era uma psicopata, porém de dotes inferiores aos de Palse. Dama da alta sociedade carioca, enojadamente brasileira, falida e arrogante. Enfim, eis a vítima.

"O pão está macio?". "Não sei, não costumo observar essas coisas". "Acho que conheço a senhora de algum lugar". "Que nada!". "Deve ser da TV. Atriz de novela, eu acho". "Sim, mas já estou afastada há um tempo, problemas pessoais". "É um grande honra falar com uma exímia artista como a senhora". "Não me encha de elogios, senhora, sou apenas um instrumento de Deus nessa terra". "A senhora poderia dar a honra de me acompanhar até minha casa e talvez eu possa lhe passar um café quente e preparar algo mais saboroso que os pães desse armazém, o que acha?". "Oh! Eu não negaria esse convite de uma fã tão enlouquecida, que reconhece meu trabalho".

Bajulações à parte. Catarina não era supersticiosa, nem nada. Aprendera a não ser supersticiosa por atributos de sua mãe, morta por soldados fascistas porque vendia cocadas "ilegais" nas quermesses de Fiera di Primiero.

Catarina e Odete caminham pela Rua do Arvoredo como se fossem escrava e sinhazinha. Odete, de traje a rigor, bonita e topetuda. Catarina, de vestido franzido, cabelo bagunçado e sem corte, pois beleza não põe mesa, não enche a barriga de quem não tem sorte. Os olhos brilhavam, brilhavam. E não era de gosto, era o reflexo da estrela que recebia em sua casa.

Odete se acomodou no sofá. Observou os quadros na parede. Pensou consigo "deve ser falsificado, na certa", mas nada disse. Decidiu ser conveniente e elogiar. "Tens bom gosto, senhora Catarina". "Que nada! Não sei nada de arte, quem sabe de tudo no mundo é meu esposo, José Ramos". "Tens esposo? És tão nova e..." novamente pensou em dizer o quanto Catarina ficava ridícula com os lenços desamarrados e o quanto odiava roupa encardida... Mas parou por aí. O que a fez parar, de modo repentino, fora a machadinha de Zé, que cantou como nunca havia cantado na vida. Arregaçou o pescoço da velha, que caiu de bruços, manchando o tapete. A boca espumou feito cachorro louco. Nem sequer fechou os olhos. Ficou ali, se remexendo que nem frango destroncado, perdendo a alma pouco a pouco.

Não rezaram pela defunta, nem nada. Não porque isso nada tem a condizer com um perfil psicótico, mas porque, seriamente, não sabiam rezar, e porque, justamente, não tinham costume de tais crenças. 

Não se teve muita dificuldade em desossar, esquartejar e triturar a carne daquela velha soberba e falida. Os olhos foram jogados aos cachorros que cheiravam e deixavam de lado.  

Os produtos feitos com a carne da velha soberba pareceram os chouriços mais leves do universo. Vendeu feito água. Em dois dias, a cidade toda fez fila para comprar as santas linguiças, que, na moda antiga, já eram boas, mas dessa vez estavam melhores. Todo mundo comeu linguiça feita com carne de velha soberba. Lambeu os beiços, pediu mais, entrou na fila, pagou.

Fato é que, na semana seguinte, ouve um surto de arrogância e superioridade em toda população. A intolerância e o ódio reinavam pelas ruas. A inconsistência da população porto alegrense era eminente. Roubavam-se as dentaduras das velhinhas carcomidas, roubavam-se as batas dos padres, as toucas das freiras, as pensões das viúvas. Seria ainda pior se não houvesse polícia. Mas tu sabes, leitor, isso não é relativo, pois polícia é pior que bandido, quando rouba a liberdade de quem nada faz ao Estado. Chorumelas de todos os lados, e gente querendo justiça, batendo em mulher, e gente querendo divórcio porque a mulher já não lavava como antes. Era o fim da picada. Iniciou-se aqui, posso dizer a Quinta Guerra Mundial, digo quinta porque já perdi as contas do quantos litros de sangue já derramamos no mundo. A guerra dos que gostam de linguiça, mas preferem chouriço. A guerra de quem gosta de uva passa no arroz de Natal contra quem não tem dinheiro para comprar uvas e come apenas arroz, porque assim é viver sem ter opção. O fim está próximo! Diziam os profetas apocalípticos em cima dos muros do vizinho que não estava nem aí para o mundo.

Na segunda semana, após a gloriosa venda, o sindicato dos açougueiros recebeu inúmeras denúncias sobre as linguiças de Catarina, mas somente no ano seguinte é que a polícia a prendeu por venda de produtos ilegais.  Encontraram, anos mais tarde, diversas ossadas, covas de animais e pessoas no quintal de Catarina. Mas cada um dá o seu significado às coisas, se é que isso significa algo. "Morte aos banqueiros e aos políticos antes que matam o povo pelo preço absurdo de cenouras e pimentões! Matem!". Catarina morreu sozinha e estuprada num hospital psiquiátrico de Porto Alegre, devido ao gosto obsoleto de seduzir velhinhas mal comidas, isso, com certeza deixa qualquer um enfurecido, ah deixa. Zé Ramos foi condenado à prisão perpétua por não declarar imposto de renda e por ser o tipo de homem que não tem função nenhuma na sociedade brasileira: culto.

Sim, Darwin estava certo: há um chacal adormecido em cada homem, cada vez mais faminto e desolado, com os dentes borrados de sangue, desconhecedor da dor e do medo. Eis o Homem: um eterno comedor de linguiça, que deixa ascender à ignorância de geração em geração, entortando com maestria e beleza o rabo de porquinhos com o bucho cheio de dinheiro. Demagogo demais para ser justo, justo demais para ser homem. O homem é sanguinário por nascença, benfeitor das civilizações. Ora, os maiores sanguinários de que se tem notícia foram homens extremamente educados, imponentes e refinados, com a justiça dependurada na espada. Mas nada apaga a História e a necessidade humana de sempre estar um passo à frente da vida, de corpo caído na morte.

 

 

 

 

 

[imagens ©ruben redondo]

 

 
 
Luiz Henrique Moreira Soares. Nasceu em Jaboti/PR, mas vive atualmente em Jacarezinho/PR. Cursa o 3º ano de Letras na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). É apaixonado por literatura, música e cinema.