"Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas".
Drummond

 

"A Roupa", de Maria Lysia Correia de Araújo, pode parecer ao leitor desavisado um conto comum, e não o é porque irrompe a estrutura linear da narrativa com seu desfecho inusitado. Na verdade, o que o narrador considera "comum" (o personagem, principalmente, e suas ações), a nosso ver são inquietações do ser humano que nos possibilitam analisar como a ruptura do seu cotidiano e/ou o desfecho da narrativa se configura(m) como forma de superação do mundo.      

Para entender os desdobramentos que operam a reinvenção do cotidiano pelo personagem, a nossa leitura desse conto optou pela análise microscópica, pois "a investigação de um personagem encerra uma microanálise, ou análise de uma microestrutura" (MOISÉS, 1981, p. 85). Nosso entendimento de personagem é que ele "não é um retrato do ser humano criado na e pela linguagem que antes de reproduzi-lo o engendra e determina, propondo-o como um complexo de significantes que nada têm a ver com ele, mas que nos aproxima dele, na medida em que nos sugere um modo de vê-lo" (LIMA, 2008, s.p), s/p). Ainda sobre as interpretações acerca da personagem vale destacar que elas variam relativamente; "mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo de ser" (CANDIDO et al., s/p, 1969). Dessa forma, a personagem segue uma lógica mais centrada ou linear, do que um humano, já que suas ações, conceitos, atitudes, pensamentos e outros estão predeterminado. por meio de sua inquietação que consiste em ser devorado pelo seu objeto de desejo/ruptura.

O conto se abre, quase abruptamente, sem floreios, seco, sem adjetivações, sem eufemismos, em que o narrador onisciente e em terceira pessoa — nos apresenta o personagem principal "homem comum" que, embora inominado, indescritível, possui um caráter generalizador — e representativo: um homem comum equivale a todo e qualquer homem que faz parte da grande massa anônima de pessoas. A sua única característica é ser comum a tudo que faz (e sente), como é comum tudo que o circunda: o trabalho, o bar, a casa. Porém, é no desfecho que o inusitado transforma o "comuntidiano" do personagem, e no qual ele se redime. No enredo não-linear ou no plano da ação, o personagem se vê envolvido em seu cotidiano numa série de atitudes (comuns) que podem ser resumidas em "sair do trabalho", "entrar no bar", "tomar uma bebida", "olhar a vitrine" e "ir para casa".

Apesar de todos os elementos do conto (personagem, espaço, tempo e linguagem) serem comuns, o que torna o texto de Maria Lysia surpreendente é a "espécie de abertura, de fermento que projeta a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário" (Cortazar, 1974, p. 152). No dizer da autora: "o conto não é um gênero fácil, exige economia, precisão, linguagem medida." (ARAÚJO, 1991, p.46).

Todas as ações tidas como comuns pelo personagem são o que lhe angustia, diuturnamente. O termo "comum" aparece 19 vezes em 23 dos 25 parágrafos que compõem o conto e a recorrência ao uso desse termo ao longo da narrativa, antes de ser uma mera repetição caótica, sem nexo, serve para descrever a situação agonizante (ou angustiante) por que passa o personagem principal, associada a tudo que perscruta os olhos (e ouvidos) do narrador.

O narrador toma para si o direito de relatar as ações, exceto — e apenas — em alguns raros e curtos diálogos diretos em que o personagem — homem comum - mantém com a lagosta, como se observa nos seguintes trechos do conto:

 

— Alô crustáceo. (p. 49)

— Alô, Palinurus argus. Qualquer dia vou comê-la. É uma forma de sair do meu comum. Não é sempre que se pode comer lagosta [...]  (p. 50)

— Alô crustáceo. (p. 50)

— Vou comê-la hoje. (p. 50)

— Alô, filha. Eu disse que um dia haveria de comê-la e aqui estou. (p. 51)

 

Não é sem propósito que em todos esses trechos, observa-se o desejo obcecado de "comer" a lagosta. Diante de sua condição, o personagem parece saber que reinvenção do cotidiano implica uma mudança significativa de atitudes, por isso, ele apenas deseja alterar a sua rotina, mesmo que seja apenas para próximo dia:

 

O homem ria de si mesmo, porque sabia não poder sair do comum da casa, chegar àquela hora certa, aceitar a comida, a mulher, os filhos, o comum. Sabia-se comum, que vivia num lugar comum, tudo que fazia era comum. O trabalho. O bar, a casa (p. 50).

 

Alterar a sua rotina significaria comer a lagosta da vitrine do bar. Porém, tudo que ele sabe sobre o seu objeto de desejo é o seu nome científico (Palinurus argus), e como algo novo e desconhecido provoca estranhamento e requer cautela e questionamento sobre o mundo de cada um, pois o desconhecido, pleno de indeterminação provoca medo e gera desconforto, instaura-se aí o confronto de duas realidades (a aceitável é a inaceitável): um dos personagens (homem comum) demonstra insatisfação com a vida, com a rotina do dia adia, que consiste apenas em ir para o trabalho e voltar para casa e o outro (lagosta) dá mostra de indiferença ao problema alheio e se mostra capaz de aceitar novos desafios e parece aceitar as coisas como elas são. No nível do fingimento, ambos parecem concordar, mas no nível da realidade, eles sabem que isto é impossível.

A receptiva passividade da lagosta alimenta a afirmação do "novo", do ilusório, a ruptura com a mesmice, a insatisfação com a casa, com o trabalho, com o bar, pois para o "homem comum" não basta apenas fazer as mesmas coisas (comuns) todos os dias, ou refletir sobre elas. É nessa atmosfera que tempo e espaço "submetem-se a uma alta pressão espiritual e formal" (CORTÁZAR, 1974, p. 152). Ele reluta incessantemente em ir para o trabalho, voltar do trabalho, voltar para casa, ir ao bar e olhar a vitrina, sem poder comer a lagosta e, dessa forma, irromper o cotidiano, O repúdio e a negação às coisas comuns é a tentativa (inventiva e esforço) de romper o vazio de sua vida à procura de algo que o instaure como ser (no dizer sartreano) que não se encontra no plano real (casa, trabalho, família, bar — "o comum de tudo")  e não se relaciona ou se incorpora ao personagem, pois é dado ao angustiado não conceber/conhecer aquilo que o angustia.

Dessa forma, o "homem comum" deseja devorazmente a lagosta do bar como se ela fosse algo que também o devorasse entranhasmente, mas, em verdade, não sabe o que é. O desconhecido — lagosta — então desencadeia um temor que em princípio não se revela nas inúmeras tentativas de conhecer o objeto de desejo para se lançar ao desafio de devorá-lo, sem correr perigo de o ser antes:

 

Ficou meio desarmado com tanta passividade. Já a estimava um pouco e não queria destruí-la. Deixaria para outra vez. Voltou para casa, mas o desejo da lagosta começava a obscurecer a sua relação comum com as coisas comuns da casa, do trabalho, de tudo (ARAÚJO, 1991, p. 50).

 

Nesse instante se afloram os fenômenos de temor e de angústia: o "homem comum" em sua tentativa de romper com as estruturas do cotidiano que lhe provocam angústias sente temor em conquistar — devorar, exatamente — o seu objeto de desejo,  desejo de felicidade não se ajusta à "moderação ou à prudência, o equilíbrio recomendado por Aristóteles deixou de fazer sentido, daí o estado permanente e continuado de querer sempre mais, evitando o aborrecimento e procurando novas experiências" (RIBEIRO, 2012, s.p):

 

O homem pegou o garfo, a faca, usou as mãos, pegou de novo o garfo, a faca, colher, as mãos, tentava tirar pedaços da lagosta, não conseguia; as antenas não o deixavam movimentar-se. Sentia picadas nos braços, no rosto, no pescoço. As antenas iam crescendo, crescendo, e cada vez mais o apertavam. De repente sentiu um pedaço do ombro cair sobre a mesa, o sangue espirrou sobre a lagosta, que ia engolindo os braços, enquanto as antenas não lhe permitiam reação alguma. Não podia ser assim dominado por um simples crustáceo. Lutaria até o fim. Mas não adiantava. O outro ombro já fora também destruído, o sangue se misturava à toalha, caía no chão fazendo uma enorme poça, não enxergava bem a lagosta. Sentiu picadas terríveis nos olhos e, como os ombros e braços, estavam sendo deglutidos pela lagosta (ARAÚJO, 1991, p. 51).

 

Apesar de apresentar indícios que lhe possa conferir statu de conto fantástico pelo inusitado que parte de situações comuns para um desfecho revelador em que a lagosta devora o personagem principal, preferimos dizer que opera no conto uma metáfora simbólica de mudança e/ou renascimento. Cultos ancestrais ligavam criaturas do mar (especialmente crustáceos) com a figura de morte e renascimento dos deuses solares, algo como Jesus Cristo, Buda, Apolo ou Hórus, por ser de lá onde se vê o por/nascer do sol. Cristo em especial foi representado em algumas crenças e estudos pelos crustáceos, por este indicar o nascimento da era de peixes (CHEVALIER, 1998).

Poder-se-ia dizer que todas as tentativas de o homem comum encontrar (ou devorar) o seu objeto de desejo resultou em nada, já que as roupas são o que dele restou, e roupas são simulacros, aparências, nada, e para o nada é o que nos aponta o mundo depois aniquilar todas as coisas particulares que nos rodeiam, no dizer de Heidegger, ainda que "o nada seja a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-ai humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente a essência mesma (do ser)" (HEIDEGGER, 1996, p. 59).

Soma-se a isso, a indiferença com que o garçom assiste ao trágico destino do homem, como se fosse comum a ação da lagosta, como se fosse uma cena teatral ou espetacular, a cujo final ele já presenciara inúmeras vezes, s, como se houvesse a necessidade de aceitar o inevitável, vivenciando a violência e a indiferença como mal-estar da modernidade, como se observa nesta passagem: "Então o garçom chegou, levou a lagosta para a vitrina, limpou a mesa, o chão, apanhou a roupa do homem, levou-a para casa para a mulher lavar e aproveitar" (p. 51)

As inquietas ações do personagem do conto "A Roupa" manifestam-se de sua angústia enquanto ser-no-mundo, percepção aniquiladora que o orienta para a preocupação com as amar(gu)ras do existir, para romper com as estruturas  mesmas, mesmices do cotidiano, pois sem avisos e dilaceradamente, "toda nossa existência de repente perde sentido diante do nada" (WERLE, 2003, p. 109).  Embora as inquietações do homem moderno resultem da multiplicidade e da complexidade que induzem as pessoas a experimentar sensações contraditórias, desorientação e inquietude (RIBEIRO, 2012, s.p.) defrontar-se com um personagem angustiado com o estado de coisas que o cercam não nos parece cousa comum. Lamentações há e se manifestam aqui e acolá, mas o homem comum que nos é apresentado no conto, definitivamente não se contenta com a sua condição de ser-no-mundo e, surpreendentemente (eis o inusitado e o fantástico), se lança ao desconhecido para se libertar das amarras, arames e masmorras  do cotidiano...

Em "A Roupa", o personagem vive indiferente aos outros homens e ao próprio mundo. É um homem sem qualidades, fragmentado, desrealizado, e "um sujeito que vive sua fragmentação de modo tão próximo que o dilaceramento se confunde com a espontaneidade não pode ser nem estranho nem familiar a si mesmo", no dizer de Silva (2008, p. 29). Como não pode vivenciar a sua própria experiência, as roupas são tudo que dele resta, ou seja, nada, mas um nada que é tudo.

 

 

Referências

 

 

ARAÚJO, Maria Lysia Corrêa de. A roupa. In: JOSÉ, Elias (Org.). Setecantos, setecontos. São Paulo: FTD, 1991. v. 5, p. 49-51.

CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 4. ed. São Paulo: Perspectiva. 1974.

CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 12. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

CORTAZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In:____. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.

HEIDEGGER, M. Que é metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996.

KOLTAI, Caterina. Violência e indiferença: duas formas de mal-estar na cultura. São Paulo Perspec.,  São Paulo,  v. 13, n. 3, p. 76-80, Sept.  1999.

LIMA, E. S. Forma e sentido: a personagem narrativa em foco. Estudos Semióticos. Disponível na Internet via http://www.ftlch.usp.br/dl/semiotica/es. Editor Peter Dietrich. Número 4, São Paulo, 2008. Acesso em 30 set.2013.

MOISES, M. A criação literária. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1981.

RIBEIRO, José Augusto Lopes, Da racionalidade prometeica à impulsidade de Epimeteu: o imaginário educacional pós-moderno. 2012.  Disponível em: <http://migre.me/rtyoj> Acesso em 30 abr. 2015.

SILVA, Franklin Leopoldo e. A conduta indiferente. Ide (São Paulo),  São Paulo,  v. 31, n. 47, dez. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo>. Acesso em  4  mai.  2015.

WERLE, Marco A. A angústia, o nada e a morte em Heidegger. Revista Transformação, v.26 n.1 Marília, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo> Acesso em 1º mai. 2015.

 

 

 

setembro, 2015

 

 

Wilbett Oliveira é graduado em Letras/Português (UFES), pós-graduado em Literatura Brasileira (Universidade Salgado de Oliveira), pós-graduando em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia e mestrando em Jornalismo e Comunicação (Universidad del Atlântico). Atua como Professor de Língua Portuguesa, Comunicação Empresarial desde 2002 (Factef / Fasb / Multivix / Vitória). É editor da Revista Mosaicum (NUPPE/FASB). Autor de Silêncios e escombros (Opção, 2015) e Gris (Opção, 2013).