© gabraz | land

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

*

 

trague 1 seringal na veia & pinga: fagulha à pele ou vela preta no mamilo enxama — texto na boca formiga. receita morfina — se grava um nó na costela ou se esculpe em cara erodida — nudez que se jaz mastigada.

complex ode vira-látex

 

. . .

 

Leve consigo:

1 trem desgovernado no umbigo o deserto em cada unha hecatombe na ponta da língua

 

 

 

 

 

*

 

o sangue do vizinho é sempre mar negro, coagulado no asfalto quente y na ponta do cabo de aço oxidado do pai que não matou quando teve a chance — esse palhaço me humilha há 50 anos! — apontando pra criança sexagenária cujo rosto deformado não reconheci de imediato. suava feito um porco, lembrando da última vez que por distopia inventei de ficar amigo de estranhos, trouxe três psilocybes de boas vindas mas perdi o timing entre o trincar da campainha interna e o movimento dos pés em disparada à esquina mais próxima. era bairro ermo e a vista alcançava além fácil. acabei servido à mesa com pompa por oito fatias suculentas de filé falante e mesmo mais sóbrio que nunca pude evitar de me perguntar, em voz alta, por quê eu só habito esses zumbis pé-de-chinelo do meio-dia. eu parasito mas sou parasitado! era um espelho fincado do outro lado da porta e o toc de rua noite adentro também se entregava bandeira. ninguém bateu nada pra mim, vale ressaltar. se na fachada a padoca dorme já se convencionou na vizinhança, em chama de guerra civil, "farinha pouca meu pirex primeiro". zumbi pai e zumbi filho já não me chamavam pelo nome, apenas andavam em minha direção pedindo que eu religasse a polícia, como se precisasse, um querendo foder o outro e ambos bem fodidos, mas nunca que chegavam até mim. do andar de cima a velha mãe observava incólume. agora era seu neto, menino gracioso do lábio leporino que sempre me saudava na volta pra casa, mesmo diante do espelho quebrado, com aquele oclinho de cego — cuidado pra não derrapar no sangue de papai!

 

 

 

 

 

*

 

eu se cerne ou

carne-soul

para nada voo

 

 

 

 

 

*

 

bat debate presa & dente trava a nuca no chão da tv convulsão corta pra desenrolar a língua espuma amarga y moral ressaca rio do barro que te escorre a perna

 

 

 

 

 

*

 

estranho a bateção de porta madrugada adentro e vozes, por vezes achava que eram dentro de mim, o rádio ligado em sucessos do tempo que não precisava de vacina pra dormir. jurava que era boca ou puteiro, fui na janela conferir e de tão cômoda pose de voyeur apoiei a almofadinha no parapeito pra não ralar os cotovelos. me plantei por ali mesmo na espreita de algo pra chamar de assunto... um gato preto, e branco, virava a noite encoxando frango assado no pau de arara da televisão do cachorro, sendo que já mataram todos dessa rua com chumbinho. sobrou um lobo solitário e sua gatonete, espécie de boneca inflável eletrônica que um miliciano instalou em troca de um velho celular pra passar trote nos amigos de infância. mas deu perdido. ou foi engano. era mais ou menos isso que chamavam de cidade, e nisso trinta anos se passaram e nunca mais conseguiram ir além de um parágrafo

 

 

 

 

 

*

 

quero pintar o mundo de vermelho com a buceta! disse puxando pra junto do peito o lençol puído que arrasta na rua. tem toc de velho também, apesar da pouca idade que revela entre as coxas. suficiente pra viver sem tremer mas não bastante pra cair, pois toda atenção é indispensável a partir de agora: uma mulher meio bíblia, o olho esquerdo sutilmente estrábico empresta à sua beleza a forma cubista. do outro lado do quarto, silencia uma harmonia compassiva — quando até seu travesseiro tá impregnado de cigarro talvez seja hora de parar de dormir...

 

 

 

 

 

*

 

ouvia-se roncar no andar de cima enquanto tomava banho no subsolo, tinha vomitado o teto preto e não achava a luz. quando abriram a porta rastejava nu atrás do velho cadáver. queria voltar a sê-lo. o pajé murmurou uma reza esquisita no cabelo, mas precisei sair correndo, o telefone grampeado no bolso. tive dois aparelhos na vida: o primeiro dispensei no fundo dum rio fundo por paranoia, o outro penhorei na boca do rato molhado para curá-la. hoje não telefono de madrugada pedindo desculpa e sinto frio na barriga quando toco a campainha sem agendamento prévio, tanto que às vezes saio correndo. noutras passo a noite vagando a cidade atrás de um orelhão que funcione ao menos pra me proteger da chuva. na falta do que falar ligo pra casa chamando o rabecão, mas sempre dá ocupado, muito estranho, eu moro sozinho!

 

 

 

 

 

*

 

Tirou da bolsa um três por quatro gigante dum japonês gordo e suado que jurava ser Willian Bonner, mas infelizmente era apenas seu filho, um desperdício de tempo, não ranger dentes tão brilhantes na televisão de noite. Desconfio do caráter de pessoas que entortam a boca pra fazer charme ou omitir autoconfiança exacerbada e talvez por isso nunca tenha amado uma atriz de verdade. Leitura labial não vaginal camufla o abismo imaginário entre linguagem e olhar, como se a língua propriamente dita em dado momento se diluísse ao vácuo pertencimento imemorial vão concreto dos que apenas observam e julgam. O filha da puta outro dia imitava o belo com seu nike AR-15 na cabeça aberta da mãe estirada na calçada depois se transformou no maior jogador de pebolim ou drag queen que a cidade já viu, se é que alguém um dia parou pra olhar através dele. Batia no peito em glória mas corou sem jeito quando dei aquela apertadinha no mamilo pra selar a amizade. Tomava leite A, exalava amaciante e ainda assim de tão remota a memória reside apenas no cheiro de bacon das paredes da lanchonete vizinha, de nome carnificina ou farpo bovino. Onda de nostalgia quando se abate sobre uma mente que mente compulsivamente talvez seja além de tudo a forma menos constrangedora de se matar um grande amigo do passado sem ruído. Já faz tempo desisti de sucumbir no labirinto, ouvindo vozes que sequer reconheço: um ano se come, outro se dorme, nunca mais fui a cidade. Sem grilo ela também nunca me foi

 

 

©gabraz | vizinha

 

 

 

 

Gabraz [Gabriel Sanna] nasceu no Rio de Janeiro/RJ e aos cinco anos mudou-se para Belo Horizonte/MG, onde estudou filosofia, literatura e cinema. Desde 2004, tem feito diversos experimentos em vídeo e em 2006 estabeleceu uma parceria com a escritora e psicanalista Lucia Castello Branco para a realização de uma série de documentários sobre alguns sujeitos singulares da literatura em língua portuguesa. Da parceria nasceram os filmes Língua de Brincar e Redemoinho-Poema, feitos a partir de encontros com Manoel de Barros e Maria Gabriela Llansol. Desde 2010, é curador da Mostra do Filme Livre, um dos principais festivais de cinema independente do país. Trabalhou em mais de 30 filmes, entre curtas, médias e longas, nos mais diversos formatos, alternando as funções de diretor, fotógrafo e montador.