UM CASAL

 

 

Quando os conheci ainda estavam em bom estado, ao menos guardavam traços humanos. Angelim e Angelina. A casa, de esquina, na Treze de Maio com a Mercadante Sobrinho, era de dois quartos, um para o casal e outro para o único filho. Filho único que nunca nasceu.

Anos depois, Angelim fez deste quarto, contíguo ao do casal, uma oficina.

— Aqui fabrico motores, ele dizia. Mostrava-me ferramentas e carcaças.

Eu olhava, desconfiado de que, mesmo depois de aposentar-se, ele nunca fabricou motor algum. Mas nunca fui de desdenhar o sonho alheio, ainda que sonhos envelhecidos, os quais, de tanto se repetir, nunca escaparam da inércia.

Os olhinhos dela, empapuçados, lacrimejavam uma tristeza rala, creio que alimentou por mais de meio século a esperança de balançar a criança.

Entretanto, na medida em que os anos passavam e o filho não vinha, Angelim preenchia o vazio do quarto com bobinas de cobre. Tanto preencheu que, da entrada, ficou somente aquela fresta.

Certo dia, durante minha contumaz visita, ele me pareceu estranho, afirmava ter capturado um embrião e o aprisionava em uma garrafa de vidro. Espiei pelo vão da porta e, para mim, aquela gosma branca presa na garrafa em meio aos entulhos, era tão somente uma pedra de gelo.

Angelim emagrecia a olhos vistos, o queixo esticava-se para baixo, a boca apresentava sinais da demência, a todo o momento resmungava "oh". Até que um dia silenciou. Nesse dia, o embrião já havia se transformado em água. Tão insólito quanto neve no deserto.

Angelina continuou perambulando pela casa, embalando no colo alguma coisa embrulhada em fralda de pano. Quando ela também feneceu, eu desenrolei a fralda.

Sim, era um motor.

 

 

 

 

JACÓ

 

 

Naquele tempo, só o que separava quintais, eram as cercas de balaústre, de tal forma que era perfeitamente possível, pelo vão das madeiras, espionar as movimentações vizinhas. À esquerda, à direita ou pelos fundos. Mas, naquele dia, era da direita que ecoavam gritos medonhos. Como se uma criança estivesse a ser torturada.

Foi inevitável, apesar do pavor, aproximar-me de uma fresta.

Doutro lado, dois estranhos seguravam o Jacó. Sim, Jacó, o pequeno leitão. Seguravam com tenacidade as quatro patas, de maneira que somente o rabicho chacoalhava pedidos de socorro.

Jacó foi o meu primeiro amigo de infância. Com ele aprendi a comer terra, roer o caruncho do milho, chupar batata podre e chafurdar na lama. A mãe ralhava:

— Deixa de ser porco, menino!

Apesar da mãe eu já sabia andar de quatro patas e chorava porque não tinha um rabicho para balançar minhas alegrias. Igual ao Jacó.

Mais ao fundo, não menos estranha que os homens a segurar o Jacó, estava aquela mesa de pedra, sobre a qual repousava um punhal. Tão lindo! Com cabo de madrepérola e trinta centímetros de lâmina.

Por um instante os gritos do Jacó silenciaram. Os pássaros no pessegueiro também. Até o vento parou de balançar. Tudo em respeito ao senhor dos punhais que descia a escada de acesso ao quintal. O sol, suspenso no azul, empalideceu quando o algoz sorriu.

Nunca vi um sorriso com tanto dente de ouro.

— Hoje é dia de folga do Augustinho! Ouvi a esposa comentar.

Confesso que o queixo do sargento Augustinho possuía um formato viril, bastante apropriado para a lei do mais forte. Imagem e semelhança dos carnívoros. A lâmina do punhal foi tão pontiaguda que chegou a fazer cócegas no coração.

Desde então, nunca mais andei nas quatro patas, desde então vivo nessa atitude ereta.

— Agora já é um homem, a mãe falou.

Desde então vivo triste.

 

 

 

 

UMBILICAL

 

 

A frente fria soprou no céu da cidade. Não sabia se o frio derreteria o calor ou o calor derreteria o frio, mas do céu escorriam gotas de um orvalho denso. Uma brisa acariciou a sua pele e ele quis dentes de cerâmica para resistir.

O telefone tocou. Insistente. Pena não poder levantar-se e atender. Ele sabia de cor o diálogo que se tramaria.

— Olá, Carlos!

E na voz, todo o peso ancestral de um império. O império divino da mãe.

— Você está bem, meu filho? Por que não se levanta?

A pele de Carlos arrepiou-se, a mãe há muito estava morta.

Lançou um olhar distante para o telefone que continuava a tilintar. Na sua mente, em resposta, moveu-se a língua como se movesse uma montanha.

— Sim, mãe. Estou bem, não se preocupe.

Sorrateiramente, a mão esquerda por baixo do lençol percorreu a pele e com fricção suave aqueceu o umbigo, precisava manter esse contato com a lucidez. A tênue luz do cordão que, por anos, o alimentara.

— Não se preocupe com a minha inércia aparente, fico assim aos domingos.

Arremedou um sorriso.

O telefone tremia e a cada toque, percebia a fricção dos átomos na tinta escura que revestia o aparelho. Se não estivesse tão distante poderia acariciá-lo com os pés. Sentir esse carinho, essa vibração na pele.

— Filho, você dorme demais, isso é depressão?

Travou os dentes, quase a trincar com a força. Engoliu cacos de gelo. Nunca abriria a boca em resposta. Olhou para a janela, lá fora gotas estremeciam na vidraça. O telefone parou, um silêncio medonho invadiu o quarto. Tateou em busca de uma ponta do lençol. Tentou cobrir-se.

— Não, mãe, é só o frio.

Mentira. Havia mais que um frio para esconder, uma memória vazia de lembranças acendia o centro do cérebro quando a mãe indagava. Um gosto de chumbo escorria pela garganta e tiritava, estaria com febre? Umas cobertas aguardavam no guarda-roupas ao lado, faltava apenas forças para buscar. Lá fora, uma rajada de vento assoviou, cântico estranho, tão ancestral quanto o vazio da lembrança. Mastigou o gosto do chumbo, o qual não cabia na boca, algo sobrava nesse volume e escorria com a saliva para fora.

Sentiu falta do telefone, sentiu saudades da infância, quando a mãe ainda o socorria na madrugada. Quanta vez o acordou do pânico? Quantas ao ouvir sua voz?

— Acorde, filho, foi só um sonho!

Não, dessa vez não, a ferida umbilical fora reaberta. Mas a mãe nunca saberia.

 

 

 

 

UM VENDEDOR

 

 

O camarada adentrou na nossa residência tranquilamente, como se o portão, pelo fato de estar sem trancas, permitisse a entrada de qualquer um ou mesmo que isso se constituísse em um deliberado convite. Em princípio, esse exagero de liberdade não nos causou desconfianças, uma vez que temos muitos amigos, aos quais permitimos essas liberdades, porém aquele sujeito, de forma alguma era nosso amigo.

Cumprimentou-me com mãos pegajosas e à minha esposa com sorrisos, um tanto quanto forçados, próprios daqueles vendedores de bugigangas, todavia, o cheiro do camarada iludia, não por exalar um perfume importado, era talvez resultado de um banho recente, quando o corpo ainda guarda odores de sabonete.

A roupa simples, porém bem passada, demonstrava já algum indício de esgarçamento, embora ainda conservasse um pouco da outrora elegância masculina, possível em um bom corte de terno. Ato contínuo ao aperto de mão ele moveu o queixo de maneira ostensiva para emitir a tradicional saudação dos vendedores ambulantes:

— Bom dia, meu casal simpatia!

Junto com o queixo do galã de fotonovelas, os ombros de compleição taurina, também chacoalharam em cumprimento. Altura média, músculos volumosos e braços bem torneados eram o que apresentava o nosso amigo. Assim que nos cumprimentou, o camarada, já demonstrando estar bastante à vontade dentro do nosso lar tão hospitaleiro, descansou uma mala bastante volumosa em cima do nosso sofá.

Minha esposa estava na cozinha preparando o almoço e assim permanecia silenciosa, descascando algumas batatas. Desta sala de entrada era possível observar todo o movimento da cozinha, embora certa distância nos separasse.

Eu, ainda um pouco atordoado com aquela inesperada visita, permanecia na sala com uma chave de fendas na mão esquerda. Na mão direita, a qual eu usei para cumprimentá-lo, pairava a indecisão se devia continuar a realizar alguns consertos no aparelho de som ou desistia desse trabalho para dedicar atenção exclusiva a aquele intruso. Passado esse instante confuso, voltei a parafusar uma tampa, demonstrando de forma inequívoca não estar disposto a gastar meu tempo vendo e ouvindo as lengas lengas de um vendedor intrometido.

— Não se preocupe, Patrão, pode continuar o conserto enquanto lhe apresento alguns benefícios dessa nova linha de produtos recém-lançados. Os dentes do vendedor eram perfeitamente alinhados, sem nenhum vestígio de alimento nos vãos, aparentando estar bem escovados.

— Isso vale para a senhora também, ouviu, Patroa? Ao dizer isso ele executou uma reverência desmesurada jogando um charme desnecessário. Pura perda de tempo, uma vez que nem eu nem minha esposa estávamos inclinados a gastar sequer um tostão para a compra dos produtos que aquele vendedor pretendia nos apresentar.

Havia também uma sensível variação de timbre na voz do galã ao pronunciar os substantivos "Patrão" e "Patroa". Nesse momento eu não saberia explicar essa variação dos timbres, mas talvez seja possível vislumbrar algum detalhe se eu disser que ao falar "Patrão" o vendedor demonstrava total indiferença para a minha atividade de aparafusar a tampa em uma caixa de som, porém ao pronunciar "Patroa", o indivíduo demonstrava óbvio interesse nas guloseimas que ela estava a preparar. Fiquei preocupado que o intruso pretendesse estender suas cantilenas até o horário do almoço, que já estava próximo. Eu não pretendia de forma alguma ter companhia tão desagradável à mesa. Raciocinei que talvez fosse até interessante adiantar o expediente de demonstração dos produtos, de tal forma que, bem antes dos pratos estarem disponíveis à mesa, o vendedor já houvesse sido devidamente despachado.

— Meu amigo, queira apresentar de forma bastante reduzida e muito rapidamente a sua linha de produtos, uma vez que não temos nenhum interesse de compras para esse momento, bem como pelo fato de que precisamos nos ausentar em virtude de compromissos inadiáveis.

Eu não costumo fazer uso dessa tratativa "meu amigo", exceto em raríssimas ocasiões quando estou tremendamente irritado com pessoas asquerosas. Contudo, "o amigo" sinalizava de forma clara que desconhecia o significado da frase "de forma bastante reduzida" como prática de apresentar uma linha de produtos, do mesmo modo ignorava adjetivos do tipo "pessoa asquerosa". Sentou-se confortavelmente no sofá e, enquanto puxava o zíper da mala, pronunciou aquele elogio mais que debochado:

— Cheirinho bom tem o seu almoço, não é, Patroa?

Eu rapidamente lancei um olhar aflito para minha esposa na intenção de transmitir um recado para que ela, de maneira nenhuma, demonstrasse sua aprovação a esse elogio e com isso desestimulasse as intenções daquele safado com relação a sentar-se à mesa de almoço. Porém o meu recado chegou atrasado e desgraçadamente minha esposa retornou um sorriso tão agradecido que ficou evidente o capricho com que se aplicava nos temperos dos tubérculos e leguminosas.

— Batatas me causam flatulências.

Com essas palavras tentei esfriar os ânimos daquele vendedor insuportável.

O zíper da mala já estava totalmente aberto e dentro da mala, uma linha com mais de quinhentos itens de embelezamento feminino ficaram à mostra. Batom, cremes, fixadores, gel, óleos, condicionadores e mais uma centena de produtos que não me causaram interesse algum.

— O amigo pode fechar a mala e ausentar-se, haja vista que a sua linha de produtos é absolutamente dispensável nessa casa. Pronunciei o advérbio "absolutamente" seguido do adjetivo "dispensável" de maneira bem jocosa, com intenção de rebaixar a importância do conteúdo de sua mala e ferir o comedor de batatas.

Ato contínuo o sujeito separou vários itens e caminhou em direção à sala de jantar, espalhando e depois organizando meticulosamente item por item sobre a mesa.

— A Patroa vai adorar essa linha de produtos, assim que se sentar e realizarmos uma grandiosa demonstração.

Em minha caixa de ferramentas eu tenho uma marreta que, na falta de outro instrumento, já utilizei para quebrar cocos, embora entenda perfeitamente que não seja essa a aplicação mais comum de tal artefato. Acontece que nesse momento percebi o quão útil foi a aquisição dessa preciosidade, uma vez que pretendia fazer uso da mesma para arrebentar o crânio daquele desgraçado.

— A Patroa vai ficar muito mais bonita do que já é!

Desisti da marreta, pois guardo também em minha oficina, uma motosserra ainda intacta, na caixa, desde sua aquisição. Até o momento não a desfrutei por estar arraigado em mim o hábito antigo de picar lenha com uso do machado, porém, olhando para o pescoço do indivíduo entendi que esse seria um bom momento de estreia.

— Sim, talvez eu possa interessar-me.

Foi o que respondeu a minha esposa.

Amuei. Eu não poderia, de jeito nenhum, permitir o avanço desse interesse em demonstrações, e para tanto me aproximei do indivíduo. Segurando-o pelo braço, tentei afastá-lo da sala de jantar conduzindo-o de volta à porta de entrada.

— Meu querido, não fica bem espalhar produtos que não são de nosso interesse sobre a mesa de jantar, uma vez que o momento de servir meu almoço já se aproxima.

Apesar do meu esforço o corpanzil do asqueroso não movia um centímetro sequer.

— Não se preocupe, Patrão, minha forma de organização dos produtos sobre a mesa permite que os "três pratos" de refeição, bem como os seus respectivos talheres sejam perfeitamente acomodados.

— Nossa intenção é fazer uso de apenas "dois pratos", uma vez que não temos convidados para o dia de hoje, adverti.

O meliante ignorou minha advertência. Nesse instante, dentre os produtos, observei a existência de um hidratante suave com fórmula leve e refrescante para rosto, corpo e mãos, envolto por uma pequena embalagem, o qual com certeza representaria pequeno custo. Utilidade nesse hidratante não haveria nem para minha esposa, e muito menos para mim, todavia, em outras ocasiões já havíamos despachado vendedores, realizando a compra de algum item de baixo valor e sem utilidade, apenas com intuito de livrar-nos de maiores aborrecimentos.

Até esse momento, embora meu esforço de empurrar o indivíduo em direção à porta de saída houvesse triplicado, o paquiderme permanecia inarredável.

— Meu amigo, separe uma unidade desse hidratante, por tratar-se de um item básico em nosso dia a dia, porém alerto que farei o pagamento à vista com a condição de que o amigo ponha-se para fora dessa casa antes mesmo do almoço.

Todo o esforço físico despendidos até então me causava câimbra e suores, o brutamontes já pesava toneladas. Subi em uma cadeira, tapei os ouvidos do crápula e olhando insistentemente para a minha esposa implorei:

— Por favor, chame a polícia.

Minha esposa, provavelmente não entendeu ou não me ouviu em virtude das frituras que pipocavam na frigideira. Isso ficou bastante evidente para mim ao ouvi-la dizer:

— Sim, talvez possamos iniciar as demonstrações pela aplicação dos hidratantes.

O meliante lambeu os lábios com sofreguidão, para mim não ficou claro se esse gesto se devia ao fato de que as frituras exalavam aroma deveras apetitoso ou porque nosso amigo antevia grandes possibilidades de lucro na venda dos hidratantes.

— Demais a mais as batatas não me causam flatulências, muito pelo contrário, aumentam meu apetite.

Essa afirmativa do embusteiro doeu muito em mim, mais ainda quando, ao olhar disfarçadamente, percebi um leve aceno de concordâncias por parte de minha esposa. Com essa afirmativa o pestilento aparentava ter conquistado definitivamente as graças daquela que, em hipótese alguma, poderia estar em desacordo comigo, seu fiel esposo.

Senti que era necessário levantar algumas suspeitas sobre esse inesperado oponente se o quisesse humilhar e assim restabelecer a paz em meu lar. Lembrei-me que na esquina do quarteirão onde residíamos, havia uma pensão de péssima qualidade que fornecia guarida temporária a toda sorte de forasteiro. Vendedores de bugigangas constituíam inquilinos contumazes nessa pousada. Com um telefonema e um bom papo, a proprietária na certa me forneceria informações suficientes para reconstruir minha autoridade como chefe do próprio lar. Desmascarar o velhaco, provável inquilino daquela pocilga, agora era uma questão de honra.

A dificuldade estava em ausentar-me da sala para realizar essa ligação telefônica, pois, para o sucesso da minha investigação, meu desafeto não poderia ouvir essa conversa. E o segredo dessa investigação representaria uma grande vantagem para mim. Porem, deixar minha esposa a sós com aquele canalha representava um risco muito acima da minha vontade de aniquilá-lo. O máximo que consegui foi chegar até a porta que separava os ambientes, mas desisti ao ouvir o ruído do almoço sendo servido.

— Pitéu — minha esposa usava essa tratativa em nossa intimidade — venha sentar-se à mesa enquanto lhes sirvo o almoço!

Meu coração, por dois motivos acelerou, em primeiro pelo uso do pronome "lhe" no plural, sinalizando significativamente que o sacana também estava convidado, em segundo, pelo medo de que, durante as triviais conversas à mesa, ela fizesse uso de outros apelidos íntimos ao referir-se à minha pessoa. Pior ainda se os utilizasse no diminutivo.

Ao contrário do canastrão que despejou toda a sua verve verborrágica para relatar inúmeros sucessos em vendas. Durante todo o almoço decidi não emitir sequer um pio e segurar até mesmo as flatulências.

— A venda dos meus produtos pode representar grandes dificuldades para vendedores concorrentes, porém nunca senti essa mesma dificuldade, sempre encontrei portões abertos que me permitiram desfrutar de ampla liberdade, meus custos são reduzidos ao ínfimo, uma vez que desfruto do almoço com meus clientes. Meus concorrentes vendedores são bastante ingênuos, alguns até mais que meus próprios clientes. Sim, afirmo que os clientes também são ingênuos, pois não percebem que as mulheres necessitam de cuidados especiais (ao dizer isso o pilantra piscou para minha esposa) bem maiores do que aqueles oferecidos por seus maridos, os quais perdem dias inteiros a realizar pequenos consertos e descuidam desses interesses femininos tais como a aplicação de hidratantes. Quanto a mim, não posso me queixar, pois as vendas estão de vento em popa. Hoje mesmo, com as vendas que aqui realizaremos, vou atingir a meta do mês, e ainda nem concluímos a primeira quinzena. O negócio é levantar cedo, planejar o dia, observar as vítimas, construir uma boa rede de clientes, entender a necessidade das esposas, manter o cadastro atualizado. É assim que consigo bons resultados: com preparo, trabalho e otimismo. Ficar procurando desculpas não leva a nada, colega. Mude seu comportamento e você mudará seus resultados.

— E hoje o Patrão terá oportunidade de presenciar, durante a grandiosa demonstração, toda a minha perícia na aplicação dos hidratantes. Se o Patrão permitir, colocaremos sua esposa deitada nessa mesa de jantar vestida apenas com a sua lingerie e realizaremos uma obra de arte. Pode confiar.

Nesse momento eu pedi mil desculpas, pois precisava ir urgente ao banheiro. Tentei aproveitar essa distração do vendedor com a realização do seu discurso e sinalizei à minha esposa que ela também deveria pedir licença e vir comigo para que eu pudesse lhe passar algumas instruções de como deveríamos agir para livrar-mo-nos de vez daquele intruso. Infelizmente, ela não percebeu ou não entendeu os meus sinais. Fui obrigado a correr até o lavabo, realizar algumas necessidades urgentes e retornar correndo, a tempo de ouvir:

— Patroa, o almoço servido estava simplesmente divino. Agora, se me permite, enquanto a senhora lava os pratos, preciso descansar um pouco. Dito isso, o folgado tirou os sapatos e acomodou-se confortavelmente no sofá.

Tentei deslizar silenciosamente em direção à cozinha com intuito de tramar alguma vingança contando com a cumplicidade de minha esposa, porém, ainda que de olhos fechados o execrável ordenou:

— Patrão, por favor, coloque alguma música que eu possa ouvir enquanto descanso, pois dessa forma poderemos aferir se os teus consertos foram bem realizados e resultaram frutíferos.

Chegou à ponta da minha língua a recusa em atender a esse pedido, seguido de um insulto bastante sonoro, de tal forma que aquele canalha sentisse todo o poder da minha autoridade perante minha esposa, contudo, raciocinei que, em volume bastante alto a música permitiria que eu dialogasse tranquilamente com minha esposa sem interferências do velhaco.

— Uma melodia suave, em volume bem baixo, por favor.

Foi o que ele ordenou.

— E deixe o controle remoto comigo, completou. Em agradecimento a esse saboroso almoço, prometo descontos promocionais bastante vantajosos para o patrão e para a patroa.

Postado ao lado do equipamento de som tentei várias vezes atuar no botão de volumes para constituir uma barreira de massa sonora, o que clamufaria minhas conversas com a esposa, porém o velhaco manejava muito bem o controle remoto, impedindo que eu lograsse êxito em minhas intenções. Decidi aguardar até ouvir o primeiro ronco do energúmeno, e pé ante pé fui à sala do telefone.

— Alô.

— Pois não!

— Necessito urgentemente que me forneçam informações a respeito do vendedor ambulante.

— Quais informações, exatamente?

— Aquelas que lancem suspeitas sobre as fanfarronices do velhaco.

— Meu Senhor, favor baixar o tom de voz e especificar melhor suas desconfianças.

Nesse momento percebi certa movimentação de minha esposa com uma escada de alumínio, movimentação essa que só entendi quando ela posicionou a referida escada ao lado do sofá onde roncava o estúpido.

Larguei o telefone e corri em seu auxílio. Suavemente, colocamos o corpo na maca improvisada e arrastamos o galã até a porta de saída, subimos a rua até uma praça nas proximidades e lá o deixamos.

Senti certa compaixão ao olhar para trás e constatar que um grupo de curiosos se aglomerava ao redor do indivíduo sendo que alguns surrupiavam hidratantes da sua mala. Pensei em retornar para dispersar a aglomeração, contudo, as unhas de minha esposa fincadas em meus braços não permitiram. Trancamos o portão com um grande cadeado e retornamos aos afazeres domésticos.

 

 

 

 

 

[imagens ©bruno casonato]

 

 
 

Carlos Alberto Muzille. Escritor, nasceu na cidade de Cornélio Procópio/PR e reside em Piraju/SP. Estudou música no Conservatório Dramático Musical de Tatuí e, posteriormente, formou-se em Análise de Sistemas. Publicou o livro Alma Lesma [Atrito Art, 2007] com o qual participou do Festival Literário de Londrina (Londrix). Participa também de algumas coletâneas e revistas. Periodicamente, escreve em jornais regionais.

 

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