meia furada

 

 

são trinta,

trinta e cinco

centavos

 

trinta e cinco

segundos

 

trinta, trinta

e tantos avos

desesperados

 

essa meia furada

sou eu

por isso amor,

não me ligue a cobrar

 

 

 

 

 

 

urbano rapaz

 

 

ele me aparece nublado


como um sentimento clínico

agendado

bate duas vezes na porta


sem resposta, vai-se embora


com aquele espectro de lixeiro

levando meu coração aos cacos

 

 

 

 

 

 

latin lovers

 

 

um dia você vai entender

que eu não sou nada daquilo que

você esperava

 

príncipe de bengala

escondendo a espada

 

um dia você vai esperar

que eu nade a favor da corrente

rente à raia da ponta esquerda da piscina

onde você me aguarda

com raiva e uma toalha

 

meu piscalerta aceso

minha saída da sauna ou da praia

 

um dia você vai nadar e nadar e nadar

não dar em nada

 

e até lá talvez você me interne e eu te entenda

e passemos a nos frequentar religiosamente

às terças

 

um dia trocaremos enfim o sexo

e os papéis

e leremos juntos a gê magazine

do vampeta

 

e desse dia em diante

todo canto de sereia

será regido

por escopetas

 

 

 

 

 

 

latido

 

 

eu vi os artistas da minha geração

comendo costelinha c/ molho barbecue

no outback

vagando feito espectros em blogues e redes sociais

da internet

fumando cigarros mentolados ilegais


falando sobre pós-modernidade

da moda da música do cinema da literatura

da filosofia do comportamento das novelas

da publicidade


invejando brandamente o sucesso

alheio
e pleiteando novos esquemas

espaços e vantagens


eu vi os artistas da minha geração

gritarem em vão

por reconhecimento


até serem descobertos

e descartados pelo mercado

 

percurso efêmero até o abismo

o ostracismo o instagramismo

e o esquecimento

 

 

 

 

 

 

casamento/conversão

 

 

este sou eu

fumante traveco boêmio poeta palhaço

(mãozinha pro alto, aleluia sr!)

um dia antes de você me transformar em:

santo barroco, marido de louça,

codorna assexuada, manequim de

loja de 1 e 99

dessa triste cidade

 

nosso amor é limpo

e asséptico

não aceita devoluções

cheques nominais ou revoluções

 

todos esperam dele a nova safra filial

crianças destruindo o playground fugindo

pelo ladrão às pencas

 

nosso lindo legado é um enorme cacho

de bananas verdolengas

a música-tema da última novela das oito

pairando sobre todas as cabeças

 

toalhas de banho bordadas com

as nossas iniciais

e nada maaaaaaais

 

 

 

 

 

 

saravá onan!

 

 

um lance de dedos jamais abolirá

o desejo

 

 

 

 

 

 

overture XXX

 

 

augusto de campos recita poemas visuais

numa praia de nudismo

manoel de barros compra um grill 

no magazine luiza

adélia prado vai com preta gil 

passar o carnaval na bahia

poetas marginais dão aulas de etiqueta 

na ABL

e você aí

esperando godot

comendo trakinas

perdendo noites de sono 

com o monstro do ralo

 

 

 

 

 

 

afinidade

 

 

tenho carinho especial por canetas

isqueiros e bujões de gás


sem desmerecer chapéus & óculos

que também entram na lista dos favoritos


nossa relação sempre foi harmoniosa


só fico deprimido com despedidas

repentinas

muito difícil tapar o buraco que fica

transferir os sentimentos


o dom de amar deve ser mais ou menos

isso

como escreveu certa vez

paulo henriques britto

 

 

 

 

 

 

western spaghetti

 


a trégua cessou com a chegada

do carteiro

não se aproxime, eu disse

ele ignorou

adverti-o novamente

me olhou de esguelha

um feno cruzava as duas extremidades

da garagem

um carro de som anunciava as pamonhas

de piracicaba

as contas do mês

me acertaram mais rápido que

qualquer bala

 

 

 

 

 

 

lição 100% algodão

 

 

a mãe adoeceu,

não teve jeito

 

aprendeu sozinho

a lavar

as próprias roupas

 

desde então

nunca mais tirou da

cabeça

as pequenas coisas

                importantes

 

a mãe, o alvejante

 

 

 

 

 

 

o sonho antes do sonho

 

 

isto não é

uma notícia

ou sequer um cachimbo

não é música
poema
abismo

não são anjos caídos
tocando violinos no meio-fio da vida
não são números primos

não é concerto
a céu aberto
reunião de família
fonte alternativa
de energia

mas pode ser silêncio
seca
escassez

pode ser o lado
escuro da lua

um enroladinho
de salsicha

a vizinha gostosa

o universo numa casca
de noz

ou tudo ao contrário

cinemas assistindo pessoas

 

cidades gozando
pontes

automóveis sonhando avenidas

rotinas ofuscadas
pelas supernovas destes dias

 

 

 

 

 

 

o amor, este náufrago

 


ilhado
entre o horizonte e o mar 

 

sonhando acordado

na fenda secular

de cada dia


desastrado que é

no seu labor de


vida

engendra

gestos artificiais

&
flores do mais


no jardim onde dois

pares de remelas


são milagres matinais

 

 

[ Poemas de Livre-me. Patuá, 2013]

 

 

 

 

 

 

 

Caio Carmacho  nasceu em São Paulo, cresceu em Paraty e mora, atualmente, em Piracicaba. Publicou Livre-me (Patuá, 2013). Escreve no blogue Noutratez [noutratez.zip.net], organiza todo ano o sarau poético Picareta Cultural [picaretacultural.blogspot.com] e é um dos curadores da OFF FLIP de Paraty [offflip.paraty.com].