"É proibido fumar neste local". A lei antifumo, que está redefinindo hábitos cotidianos em várias partes do Brasil, parece ter chegado à literatura. A Jovem Guarda, na década de 60 já decretara na música, com Roberto Carlos, o seu "É proibido fumar", que o cantor vira em um aviso. Porém, ao contrário da lei e da música popular brasileira, o livroEstive em Lisboa e lembrei de você, do escritor mineiro Luiz Ruffato, não proíbe o ato de fumar: propõe abandoná-lo para retomá-lo em seguida. Dividido em duas partes, com os títulos "Como parei de fumar" e "Como voltei a fumar", o romance aborda as idas e vindas de um personagem brasileiro, Sergio, que, sem perspectiva no Brasil, busca, na imigração ilegal a Portugal, a possibilidade de melhorar sua vida.

 

Dividido entre a dificuldade em abandonar o vício de fumar, enfrentando os desafios de uma vida pobre e com alguns percalços em Minas Gerais e a "fraqueza" da volta ao tabagismo do outro lado do Oceano Atlântico, onde as expectativas de melhorar a vida não se confirmam, Luiz Ruffato escreve um livro em que a divisão se apresenta como uma sereia (um ser mitológico em si mesmo dividido), que atrai suas vítimas para em seguida enfeitiçá-las. É dessa maneira que a narrativa nessa obra é construída: existe um fato que atrai os personagens para depois dividi-los, como quem fuma um cigarro que, a princípio se mostra completo e cheio de nicotina que relaxa e acalma, para depois desaparecer entre os dedos de quem o segura, deixando apenas o vazio no ar com cheiro de fumaça.

 

Luiz Ruffato escreve com fôlego de não fumante ou talvez de ex-fumante. Sua narrativa escorre pelas páginas do livro em fluxo de consciência que parece querer sempre adiar o ponto final. Há, em decorrência disso, um excesso de vírgulas, conectando ideias díspares, culturas díspares e línguas iguais que não se misturam. É através de uma linguagem econômica em pontos finais e abundante em vírgulas que Ruffato dita o ritmo veloz de sua prosa elástica e resiliente, esticando períodos sem dar tempo ao leitor de relaxar. Ruffato é dono de um texto, portanto, que flui de maneira ansiosa, regido pela ansiedade de um fumante que já pensa no próximo cigarro ao ver o que tem entre os dedos se aproximar do fim. Ou de um ex-fumante que conta os minutos e dias contra os quais luta para largar o vício.

 

O protagonista Sergio decide deixar sua cidade natal, Cataguases, em Minas Gerais, onde tem um filho com Noemi (a quem ele não ama), para tentar a sorte em Lisboa. Lá, sem qualificação profissional ou acadêmica, ele deixa de ser Sergio para se transformar em estatística rotulada. Sergio, que também é o narrador de Estive em Lisboa em lembrei de você, cuja primeira pessoa é enfatizada duas vezes já nos dois verbos do título, passa a ser o imigrante, o brasileiro, o garçom, o desempregado, o ilegal. E todos estes rótulos são sustentados pelo sonho de ganhar dinheiro e a possibilidade de voltar para Cataguases e ter uma vida confortável. As vírgulas vão se acumulando na narrativa e vão adiando a volta de Sergio ao Brasil. Em Lisboa, ele conhece Sheila, uma brasileira de Goiás, que também vive em busca de (vírgulas, vírgulas, vírgulas...).

 

Concebido como parte de um projeto da Companhia das Letras intitulado Amores Expressos (que traz a ambiguidade no adjetivo "expressos", que tanto pode significar que ou o que vai do ponto de partida ao ponto de chegada sem parar, ou parando muito pouco, em escalas ou estações intermediárias, como que se exprime em termos explícitos), Estive em Lisboa em lembrei de você trabalha bem esta duplicidade apresentando personagens que remetem a temas universais a partir do interior dos próprios nomes: o ser em Sergio e o Noé bíblico, em Noemi. A mãe de seu filho funciona como aquela que oferece a Sergio um verdadeiro dilúvio existencial, justamente por dar-lhe uma cria, forçando-o a buscar alternativas para si mesmo, para o filho e para a mãe. Ao apontar para a ex-metrópole (Portugal), Sergio, de certa maneira, vai ao encontro de suas origens: é um retorno, uma reconexão, um "religare", oferecendo uma leitura, em um nível mais sutil, religiosa desta viagem. Sergio decide "embarcar para as lonjuras de Portugal, sem ninguém, meu deus do céu!".

 

Inserido no conceito proposto pela Companhia das Letras em Amores Expressos, Ruffato constrói a relação histórica entre Brasil e Portugal remetendo-a a um namoro e à família, cujo início é uma descoberta amorosa e apaixonante (bem ao estilo idealizado de um José de Alencar), em que o pai da noiva (Brasil) oferece um belo dote (terras e riquezas naturais) em um casamento cheio de tensão e que termina em divórcio (Independência). Hoje são amigos e seus filhos (Sergio) dividem uma guarda compartilhada (padarias, portugueses no Brasil, e dentistas, brasileiros em Portugal, por exemplo — ambas áreas profissionais que lidam com a boca, órgão da comunicação. São dentes que mordem o pão: em português). Por isso, Sergio busca ganhar a vida em Portugal (o pai), que para ele poderá pagar o seu sustento.

 

Portugal é retratado como o vértice de um triângulo que situa as ex-colônias em sua base. Os imigrantes destes países para lá são atraídos e "deixam a situação de penúria, dão a volta por cima, transformam desespero em desafio". Este é o grande viés da viagem de Sergio, da travessia do Atlântico: a transformação, a transmutação alquímica do Ser(gio) humano, que deixa o ser(tão) em busca de decência na terceira margem do oceano. No entanto, a única margem que encontra é a marginalidade: "Aqui em Portugal não somos nada, 'nem nome temos', somos os brasileiros". Pronto, o rótulo está colado e, com ele, abre-se uma estrada rumo a estereótipos preconcebidos e redutores de uma metonímia equivocada. A viagem de Sergio é um retorno à posição fetal, é uma viagem para o interior genético de uma (inter)nação geográfica e psicológica. Não parece ser coincidência o fato de ambos, Sergio e sua parceira brasileira que ele conhece em Lisboa, serem originários de Estados que não são banhados pelo mar no Brasil (Minas Gerais e Goiás, respectivamente). São, portanto, estados de alma secos e buscam no Velho Mundo a água atlântica que refresca e molha o meio em que todo feto se sente seguro no ventre materno. É a nau de Noé matando a sede existencial.

 

A língua portuguesa é o elo que mantém Brasil e Portugal próximos. No entanto, Luiz Ruffato trabalha a proximidade linguística em paralelo com a distância geográfica. Assim, o Oceano Atlântico testemunha em Sergio a viagem de volta da nau de Cabral, vendo o personagem principal incorporar sotaque e vocabulário lusitanos à sua mineirice brasileira. Brasil e Portugal são, portanto, neste Estive em Lisboa em lembrei de você, irmãos siameses que foram separados por fórceps, mas condenados a viver juntos para sempre. No início do livro, Sergio fuma; depois para de fumar, ainda em Cataguases. Já em Portugal, após atravessar o Atlântico, volta a fumar. A fumaça nicotinada é a âncora de sua nau linguístico-cultural, em cujas tragadas Sergio inala 500 anos de História (o verbo "lembrar" do título carrega a referência à memória histórica. "Lembrei", no pretérito perfeito, aponta para um passado realizado; porém, semanticamente, o verbo "lembrar" não permite que esse passado desapareça). A mistura dos países aparece em expressões que incorporam o falar de cá com o de lá no protagonista-imigrante, como "ô raio, sô!". Sergio parece comer pão de queijo com bacalhau.

 

O sotaque mineiro está exposto já no título deste Lembrei de você..., seguindo a tendência comum, no português falado em Minas Gerais, de não usar como reflexivos verbos (espalhados pelo livro) como "agasalhar-se", "casar-se", "deitar-se" e "lembrar-se", entre outros. O sotaque mineiro vai se misturando ao lusitano a partir da travessia (real e metafórica) que Sergio encara da primeira para a segunda parte do livro, contagiando o narrador da obra. Infelizmente, na segunda parte, ao aportuguesar sua linguagem, as palavras lusitanas aparecem em negrito, subestimando a capacidade de percepção do leitor de Ruffato. É gostoso perceber que Sergio está "pegando" o sotaque do país de Camões e misturando-o ao brasileiro. É justamente por deixar em negrito as palavras e expressões portuguesas, que neste livro de Luiz Ruffato as culturas de Brasil e de Portugal não são amalgamadas: tornam-se uma mistura heterogênea, como água e óleo.

 

A viagem descrita aqui por Luiz Ruffato é narrada por um personagem sem bagagem. Sergio leva para Portugal apenas seus sonhos e sua brasilidade mineira. Ele vai para a Europa pensando sempre em voltar. Mas nunca chega a lugar algum. Nem lá, nem cá. E, nesse percurso, volta a fumar. No trago de cada cigarro, injeta em seus pulmões a desobediência civil de leis que não conduzem o leme das naus que cruzam oceanos sem margem. E carimba seu passaporte. Com fumaça.

 

 

 

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O livro: Luiz Ruffato. Estive em Lisboa e lembrei de você.

São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 83 págs., R$ 31,00.

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dezembro, 2015