QUANDO O AMOR ACABA

 

 

Cor de nada é a nódoa.

 

 

 

 

 

 

*

 

Quando voo,

Vale a eternidade

Do breve tempo

De pássaro.

 

 

 

 

 

 

DA SÉRIE MEMÓRIAS SECAS

 

 

— Quero mudar de sexo.

— Ser o quê?

— Pedra.

— Pedra?

— Que vira areia,

Que vira pó.

E, com os ventos,

Vadiar em estado de folha.

 

 

 

 

 

 

DA SÉRIE MEMÓRIAS SECAS II

 

 

No quarto quente, o corpo suado exalava tabaco, álcool, perfume e inhaca de fêmea. Na gola encardida, lábios de batom carmim. Roncava.

— Traz a faca aí.

— A de pão ou de carne?

— A de castrar e sangrar porco.

 

 

 

 

 

 

A TRISTEZA SEGUNDO LIZ

 

 

— Por que você trespassou meu peito?

— Porque ele das dores sempre foi leito.

 

 

 

 

 

 

*

 

Num terreiro, uma vez:

"Quero fazer um haikai".

Bashô um japonês.

 

 

 

 

 

 

DORES DA COLÔMBIA

 

 

Entro pelas veias abertas da América

latina

E chego ao dorso do continente:

A cordilheira onipresente

Andina.

 

Entre pincéis e guerrilhas

Canto para ti, "pacha mama",

Este dolorido bolero:

Fernando Botero:

A paz branca dos túmulos

Não quero.

 

 

 

 

 

 

*

 

O amanhecer

É um vão

Entre a terra e céu,

A luz e o breu

onde a melancolia

Nasceu.

 

 

 

 

 

 

RECEITA ARGENTINA

 

 

Evite

Evita.

 

 

 

 

 

 

CALENDÁRIO

 

 

Hoje é sámbado

Amanhã, domínguo.

 

 

 

 

 

 

*

 

Camaleão, camaleoa,

Kamasutra,

Toda cama é boa.

 

 

 

 

 

 

*

 

— Você é de Curitiba

Ou do Leme?

— De Leminski.

 

 

 

 

 

 

*

 

E ela deu-lhe uma aula:

— Vulva não é válvula.

 

 

 

 

 

 

OLHANDO O FOGO

 

 

Nero gritou:

De trás pra frente

Roma era amor.

 

 

 
 
 

AMANHECER

 

 

Galo não canta aurora

Lamenta a madrugada

Que foi embora.

 

 

 

 

 

 

LIÇÃO

 

 

Não pense que a vida

É só pra nós.

A vida é soprar nós.

 

 

 

 

 

 

É VERO

 

 

Acho um despropério

Enterrar palhaço

 

Em cemitério.

 

 

 

 

 

PRECE

 

 

Se poesia for ruim

Que um haikaia

Sobre mim.

 

 

 

 

 

 

NOS TEMPOS DA CASA GRANDE & SENZALA

 

 

Os brancos

Vestiam preto

E iam à Capela Dourada.

Os negros,

De branco,

Ao terreiro.

Casas coloridas

De um Deus incolor.

 

 

 

 

 

 

HAIKAIANDO A RELAÇÃO

 

 

Me deixou gripado

Esta tua frieza

Neste calor arretado.

 

Questão de gosto

Não se diz

Curte.

 

 

 

 

 

 

HACAINDO DO DÉCIMO TERCEIRO ANDAR

 

 

Era um performático

Até no suicído

Foi acrobático.

 

 

 

 

 

 

ASCENSÃO

 

 

Domingo

Pela primeira vez

Comeu carne de segunda

Num país do terceiro

E quarta pior cidade

Da quinta maior economia do mundo

Na sexta laje

Da sétima puxadinha

Da família.

 

 

 

 

 

 

*

 

— ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, o que você sente quando não faz amor?

— Sinto falta de ah!

 

— ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, de onde vem o eterno?

— Do interno.

 

— ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, qual a nacionalidade desse Poeta?

— Ele é um cidadão drummondo.

 

— ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, que achas desse autor?

— É de Cortázar coração, esse Julio.

 

— ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, que fazem os jornais?

— Embrulham notícias e estômagos.

 

— ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, cromossomos?

— Como os nossos pais.

 

 

 

[imagens ©lizandra santos]

 
 
 
Wilson Freire. Brasileiro, nascido em São José do Egito, Sertão de Pernambuco, em 1959, vive em Recife. É médico, escritor, compositor, cineasta. Participou  das coletâneas Novo Conto Português Brasileiro PUTAS (Vila Nova de Famalicão/Portugal: Quase Edições, 2002) e Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (São Paulo: Coleção Cinco Minutinhos Ateliê Editorial, 2004). Autor do romance A Mulher que queria ser Micheliny Verunschk (São Paulo: Edith, 2011) e do livro de haicais Haikaiando (Recife: Candiero Produções, 2012). Parceiro de Antônio Nóbrega nos CDs Na Pancada do Ganzá (Prêmio Sharp de Música 1997 / Melhor música e melhor CD); Madeira que Cupim não Rói, 1998; Pernambuco Falando para o Mundo, 1999; O Marco do Meio Dia, 2000; Lunário Perpétuo, 2002; 09 de Frevereiro, 2006 e 2007. Autor do conto "Conceição", adaptado para o cinema (curta-metragem com direção de Heitor Dhalia). Co-roteirista, com Heitor Dhalia, do longa-metragem As Três Marias (roteiro premiado pela Fundação  Hubert Bals, Roterdã, Holanda, 2000). Roteirista e diretor do filme Uma Cruz, uma História e uma Estrada (vencedor do concurso do DOCTV III/PE. Vencedor do festival de Vídeo Eco, Amazônia, 2008 / melhor fotografia). Roteirista e diretor do filme Miró: Preto, Pobre, Poeta e Periférico, 2008 (documentário. vencedor da Amostra Pernambucana de Vídeos Cine PE/2008. Vencedor do Festival de Vídeos de PE/2008. Vencedor do prêmio Melhor Documentário do 1º Festival de Cascavel/PR, 2008. Vencedor do Festival de Vídeo de João Pessoa/2008 como melhor documentário). Roteirista e diretor do curta-metragem Zé Monteiro, O Homem que venceu as Cinco Mortes, 2012 (Melhor filme: júri popular e oficial / Amostra Os Sertões, festival de Triunfo/PE).