Pequeno
Mapa do Medo
Para
Ana Paula, que não tem medo de
nada
A
ansiedade é a véspera do medo. O pavor, a
ênfase.
Quando
não domesticado, o medo pode se transformar em doença, uma
péssima companhia que nos influencia e transtorna, e que nos
leva a viver um lugar árido e frio, uma espécie de cidade
pavimentada pela tristeza, 'desiluminada' pela
dor.
Sou
defensor da tese de que em doses homeopáticas ele pode jogar a
nosso favor.
Pode
demarcar limites benéficos e, assim, nos dar uma sensação —
nem sempre verdadeira — de segurança.
Na
infância eu tive um amiguinho, que tinha medo de borboletas.
Foi o primeiro caso de motefobia de que tive
notícia.
A
mesma borboleta que um dia enfeitou a primavera e que pousou
em flores.
Vista
bem de pertinho em um microscópio, era um monstro horroroso,
vestido de falsa alegoria.
Ele
percebeu, ali, que de perto ninguém é perfeito. Ninguém é tão
bonito. Ninguém.
Naqueles
mesmos dias passariam por mim a mula sem cabeça e o lobisomem.
E eu sobrevivi.
E
eu ainda temia o caboclinho d'água, uma lenda do rio que
corria pela minha infância.
Por
isso nunca pescava sozinho.
Veio
daí essa tendência gregária — já adulto —, esse hábito de só
andar em bando.
A
vida tem tantos outros medos, constataria, à medida que
molhava os pés na água.
Mais
medos do que certezas, concluiria.
Medo
da cuca, que vem pegar.
Medo
de andar de avião.
Medo
de andar.
Medo
de lugares fechados.
Medo
de o elevador despencar.
Medo
de dirigir um automóvel.
Medo
de entrar na multidão.
Medo
do escuro, da chuva, do relâmpago e do
trovão.
Medo
da violência urbana, de parar no sinal de
trânsito.
Medo
de seguir em frente.
Medo
do pivete, do sequestrador relâmpago e das
polícias.
Medo
do ladrão e de quem se parece com um.
Estereotipamos,
já perceberam? (É o medo nos
manipulando.)
Temos
medo de qualquer um. Às vezes temos medo de nós
próprios.
Medo.
Muito medo.
Medo
de cair para a segunda divisão.
Medo
de cair e não levantar.
Medo
da mão pesada de Deus.
O
tal temor a Ele, anunciado nas
escrituras.
Medo
de morrer e ir para o inferno.
Da
chapa quente do inferno, do chifrudo de olhos vermelhos e seu
tridente pontiagudo.
Medo
do fracasso.
Medo
de broxar.
Medo
de arriscar, mesmo sabendo que "quem não arrisca, não
petisca".
Medo
de se libertar.
Medo
da autonomia.
Ablutofobia,
Acrofobia, Belonefobia, Bienofobia, Claustrofobia, Lalofobia,
Lactofobia, Motefobia, Nasofobia, Queimofobia, Tafefobia e
Xenofobia.
Tudo
é medo, medo, medo, como cantou o cearense Belchior, em
"Pequeno Mapa do Tempo".
E
existem muitos outros, comprova a
ciência.
O
pior de todos, no entanto, é o medo de ser
feliz.
Posso garantir e passar
recibo, meus amigos, não existe medo
pior.
Papoulas
de Kandahar
Para
Tavares Dias
Como
na letra de "Trocando em Miúdos" (Chico Buarque), caímos na
armadilha da mesquinhez e passamos a não abrir mão do disco de
Pixinguinha e a exigir a devolução do Neruda que o outro não
leu. E o que era "meu bem" passou a ser "meus
bens".
Até
aquela canção que fazia o coração bater mais rápido e
arrepiava a pele, já não toca mais no
rádio.
Ela
já não lhe "toca". E nunca mais tocará.
E
se tocar, por engano, dedos ágeis mudarão a
estação.
Nossos
ouvidos ficaram moucos, pois o desamor provoca a surdez e a
cegueira, e extermina sumariamente todos os sentidos que
despertam a felicidade nos seres
humanos.
O
que resta depois do "não dá mais" é essa mistura de
desassossego e paz.
Paz,
porque já não temos mais que conviver com os defeitos e
imperfeições do outro.
Desassossego,
pela falta das essenciais virtudes que o outro tem e que nos
completaram até aqui.
Ou,
porque o amor (ou o seu fim) é como um leito de rio e sua
relação essencial entre terra e água, com sua urgência de
completude.
É
assim que ele desassossega o homem e a
mulher.
E
quando o sentimento de pesar alia-se ao desmedido medir
—
custo/benefício —
de emoções e afetos, posicionamentos e coisas materiais, tudo
se enfeia.
É
nesse momento que descobrimos o quanto é mesquinha a alma do
outro.
É
quando nos sentimos tão injustiçados, que nem percebemos que o
outro descobriu exatamente o mesmo a nosso
respeito.
Depois
que baixa a poeira e faz aquele silêncio pós-grande explosão
—
e, imagine-se aqui um cogumelo atômico —
dentro de nós cantará um grilo, uma cigarra, ou uma gralha se
esganando na distância.
E
tudo doerá.
Descobriremos
a nossa vocação para Hiroshima e tudo que nos diz respeito
ficará contaminado para sempre.
Como
ficaram os pelicanos do Golfo do México e as papoulas de
Kandahar.
E
é assim, maculados, que permaneceremos juntos às uvas de
Chernobyl e às inocências roubadas de Columbine, até o
fim.
As
linhas do destino na palma da mão de ambos se transformarão em
cicatrizes invisíveis, que o olho nu da cigana já não
conseguirá ler.
O
futuro ruiu.
Tudo
erodiu.
Já
foi.
Mas
restaram estes botões de rosa nas mãos sujas de um menino
sobrevivente do massacre da Candelária.
Ficaram
estes ratos roendo por dentro, como se tivéssemos uma úlcera
na alma.
A
partir de agora passou a ser cada um por
si.
E
o diabo por todos.
O
Quintal Onde Ele Jaz
Para
Carlos Antônio, meu anjo da guarda
Aquele
menino tinha tesouros que valiam mais que
ouro.
Mais
que prata.
E
do que queijo e requeijão.
Ele
tinha um embornal com bolinhas de gude, um pião de madeira e
um álbum de figurinhas do Grande Circo
Mexicano.
Tinha
cadernos da escola, um livro de tabuada e uma caixa de lápis
de cor.
Ele
tinha um cãozinho que fazia companhia e lhe lambia as
mãos.
E
tinha uma andorinha fazendo ninho na cumeeira da varanda, um
canarinho cantando ao longe e um girassol que
sorria.
Ele
tinha um coreto de igreja e uma igreja com torre e
sino.
Tinha
um pátio embandeirado e uma fogueira de São
João.
Tinha
dez padre-nossos e quinze ave-marias.
Tinha
um catecismo.
Um
terço e um sermão do padre João.
Levava
um santinho no bolso da camisa e um anjo da guarda, no
coração.
Tinha
uma solidão domingueira e uma febre de
gripe.
Tinha
um rosário de lombrigas e um medo de
morrer.
Tinha
caxumba, catapora e uma tatuagem no braço, como prova da
vacinação.
Tinha
um redemoinho que levantava a poeira da rua e onde vivia o
cramunhão.
Tinha
também um oratório, a morada de Deus.
E
tinha Deus.
Aquele
menino tinha um terreiro, que era um latifúndio do tamanho do
mundo.
E
um varal pendurando as roupas que à noite se transformavam em
fantasmas que lhe afugentavam o sono, trazendo as
'pisadeiras'.
O
menino tinha um vento com voz de Caruso que varria os
telhados.
E
uma chuva nervosa fazendo algazarra no
milharal.
Ele
tinha uma janela pra o rio.
Tinha
um rio.
Um
relâmpago e um trovão.
Tinha
um amigo imaginário e outro, filho da
vizinha.
Tinha
calções sujos de terra e um exército de
formigas.
Um
rebanho de boizinhos de melão de São Caetano e um canavial de
capim.
Tinha
vulcões de formigueiro, pequenos vesúvios que jamais entraram
em erupção.
E
ossos de galinha enterrados na terra, material de arqueologia
vã.
Aquele
menino tinha dinossauros fantasiados de lagartixas e calangos
que sabiam dizer sim.
E
outras criaturas pré-históricas, como o louva-a-deus que
molhava a bunda na poça d'água, besouros encouraçados e
esperanças verdes.
Aquele
menino tinha uma orquestra de cigarras à hora da Ave-Maria. E
tinha Maria, uma irmã.
No
quintal daquela casa ele escreveu seus primeiros evangelhos,
pensou nano-pecados e cometeu insignificantes
heresias.
Foi
lá, no número 149 da Rua Topázio, que ele enterrou sua
infância, alguns sonhos de algibeira e todas as certezas desta
vida.
Afinal,
o quintal da casa é o cemitério da inocência, chão sagrado e o
início do fim.
E
aquele menino tinha um quintal.
E
aquele quintal é o lugar onde, hoje, um homem
jaz.