©fernando montiel klimt | o artista
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

        

Jorge Elias Neto sabe como médico que manter a vida viva é o "milagre" da própria vida e, como poeta, que é escrever poesia. Não importa se rascunhada ou em definitivo, impressa em livro, a poesia sempre será "um arsenal reflexivo", "uma questão ontológica basilar", seja "tecendo críticas a esse mundo moderno, pragmático e utilitarista", ainda que com certo lirismo", seja para "apurar o poeta seu discurso no sentido de transmitir o mais claramente possível seu enunciado"; ou seja "por um sentido de deslocamento diante da ruptura de valores da modernidade e da queda de paradigmas (...) e ante a desestabilização de verdades universais, com "uma poesia de forte apelo social e grande senso humano", para resumir o prefácio feliz de Gustavo Felicíssimo para Rascunhos do absurdo, lançado em Vitória, em 2010.

Numa leitura escorreita tem-se: a observação do pássaro no panorama céu/terra/mar e a suposição de que o horizonte engole as asas em seu fulgor, já no poema "Solo" (21): "na perspectiva da ponte / o pássaro solitário nunca volta". O desafio das palavras ante o silêncio, o olho que observa com atenção o que significa o próprio olhar em "Dimensões" (22): "As palavras estão sempre lá / com seus olhos atentos / a me observarem do silêncio". Um quê de Manuel  de Barros em "Versejo com apetite": "Cato palavras de aluvião. / Sou sapo de língua comprida catando mosca. / Insisto na ingenuidade da metamorfose / (só sei transformar sapato em borboleta)". ("Régua quebrada", 23).

Sua rascunhagem mostra que a poesia começa assim: no mínimo inventando um novo verbo para a própria poesia — "emprenhar-se", para então, finalmente, "jogar-se nos trilhos para salvar a flor" (25). Em colóquio consigo mesmo, ou seja, singular com as palavras no "leito das páginas", mostra-se consciente de que "as águas só se abrem nas escrituras" (29) uma vez que compõe "percurso infindo" (35).

Em "Eh, Minas" (32) tem-se um cartão-postal da mineiridade no olhar do menino-poeta, fazendo-o debulhar pensamentos, escavar beiral de janela, empoçar os olhos em manhã nevoentas. "Pastora" é um outro momento lírico bem urdido: "Filha, não te embriagues com teu nome. / Passa tardes tosquiando nuvens, / sê cortesã do Sol. / Destila histórias. / Besunta, cada mão, com momentos / e molda tua vida com simplicidade". "Polos" (34) contém a lírica telúrico-doméstica que conta a histórica do pai como quem, de novo, debulha "fortuna de desejos" "campeando pequenos nadadas". Em "Dever de casa" (39) tem-se lírica realista, se é que se pode ter uma, de William Blake a Nietsche, da significação de Pierce à declaração de amor do poeta. Trata-se de uma bela e potente síntese poética a enaltecer o livro: "Aceitar o fato / que os grãos de areia / não sonham. / Glorificar / a insignificância das rubricas. / Entender / o poder dessa vontade / filha da puta. / Fazer por onde / sempre ter-te ao meu lado / para dizer-te / sempre: eu te amo".

Na segunda parte, intitulada "Estalo da palavra", o poema "Claro Enigma" (58) comprova a lição drummondiana de quem aprende com o tempo que a vida é uma geografia do passar ou, segundo Felicíssimo, "atmosfera movediça da contemporaneidade ante a desestabilização de verdades universais": "Cada manhã traz consigo uma nova geografia. / Deve-se, então, ver as nuvens / para entender os dias".

O poema "Rotina" (60) é camusiano, puro existencialismo, aliás, uma linha de condução da poética de Jorge Elias Neto e que põe na roda o tema morte. Em "Balada da carne" (69) há realismo de pensar a poesia com a própria poesia, com direito à mesma conclusão a que chegou, por exemplo, Haroldo de Campos: "Já que a palavra é uma puta / rasguem o poema". "A grande viagem" (78) provoca questionamentos diversos: qual seria "a música latente dos joelhos dentro dos 'vagões das misérias' que descem "através das sinuosidades"? E por que fora os dormentes [ficam] soluçando advertências? Por que se espera "a verticalidade absurda do abismo?".

Vertente da poesia de Jorge Elias Neto tende a balizar-se com a voz social antibélica contemporânea, caso do capítulo intitulado "Gaza" (91) em que hipoteca solidariedade poética a autores que incluem Sandikh Al Qassem, Fadwa Tukan, Tawfiq Al Zayad, Mahmud Darwish. Nesse caso, o absurdo é a própria guerra com seu céu de bombas que nem tempo dá ao poeta para se "nutrir de ódio" (93).

Uma pós-epígrafe de Camus — "o absurdo se encerra com a morte" — antecipada por reflexões sobre esse tema e a religiosidade existencialista, identificam outra tópica de leitura em Rascunhos do absurdo. Dada a "Rotina" (6) e ao "Espaço delimitado pelo absurdo traço da conveniência" – "pouco importava a singularidade da morte". O poeta recorda Heidegger: "o homem é um ser para a morte" (87). E a imortalidade não passa de um nome (o poeta, o poema, a poesia, a própria vida) escrito na areia. O poeta chama atenção para a "mais temida das mortes" — a verdade (98), conclamando o ser humano para enxergar o abismo contido nesse que é "o absurdo do tempo" (idem). E usando da ambiguidade da palavra "canto" como lugar afastado e poema lírico, simultaneamente, e existencialmente conformado, o poeta vai afirmar: "E eu que pensava que entendia a morte / fico recostado no canto / como uma besta, / perdido" (105).

A assertiva de sua finitude virá no poema desfecho seguinte: "Pois logo chegará a morte. Quem sabe a única esperança" (107).

Em pelo menos doze referências poéticas (62, 67, 72, 77, 79, 80, 81, 91, 103, 105, p. ex.) Jorge Elias Neto faz alusão a um existencialismo cristão no qual se percebe, poeticamente, a intenção precípua de assinalar o agonismo contra o risco da despersonalização, uma vez que o ser humano impõe-se como realidade suprema enquanto vida, mas concomitantemente alguém indigente de si mesmo, donde o penúltimo poema intitular-se "Moribundo" ser um momento épico do livro e do último, "Le papillon blessé", fazer analogia entre o homem e sua fragilidade, "aquele que, no absurdo da vida / se aperceber só" (109).  

Por esse viés, a poesia jorgeliasnetiana, amadurecida por sua vivência necessariamente realista de médico cardiologista, conduz ao que Armando Savignano chama de "resignação no desespero" e que Unamuno assume na posição original, centrada no agonismo, culminante na doutrina pré-existencialista da "doce e santa incerteza da salvação individual", o que, na reflexão profunda, significa uma meditatio mortis, cuja culminância traz de volta Heidegger: "o homem é um ser para a morte". Por isso, como a borboleta ferida no/ou pelo absurdo da vida, de Jorge Elias Neto, a palavra da/na poesia será sempre "seu signo" (109), o que, para Unamuno, é a "ânsia da palavra criadora".

 

Bibliografia

SAVIGNANO, Armando. O existencialismo cristão. In: Deus na filosofia do século XX. Giorgio Penzo (org.) et al. São Paulo: Ed. Loyola, 1998, p. 121.

 

 

 

 

 

  

Encaminho a reflexão seguinte em solidariedade ao poeta Luís Arias Manzo, do movimento Poetas del Mundo, que informou aos autores de poesia do planeta a invasão da página universal daquele movimento, que perdeu muitas informações e colaborações acumuladas naquele registro virtual.

O que leva hackers a raquear uma página de poesia? Teria algum poeta — ou vários — posto o dedo na ferida em favor de uma causa relevante que está sendo desdenhada pela ONU ou pela OEA? Seria alguém com imensa ojeriza de poesia? O que levaria um ser humano a ter tamanho ódio da palavra escrita, que via de regra, como nesses movimentos, se presta a solidarizar-se com questões de primeira ordem, como guerras, invasões de países, controles políticos autoritários, violência pela violência, entre outras?

O que leva, no mundo pós-moderno, a poesia a incomodar? Quantos atos de vandalismo virtual há que detonam a poesia e que nem tomamos conhecimento que nos impede de assumir atitudes críticas em função da humanidade? De resto: ainda existe mesmo uma humanidade? Não estaríamos vivenciando o tempo próximo do caos absoluto, de destruição do outro em nós mesmos? De violência degeneralizada consentida pela inconcebível e absurda impotência de se fazer alguma coisa contra a devassa total da Terra, pior, de sua gente? Da deturpação grandiloquente dos valores perante uma ética que agora pode ser comprada, vilipendiada, anulada por conluios e contratos sociais estabelecidos à revelia do mundo? Do afrontamento agressivo dos segmentos antes marginalizados? Da prostituição da alma? Da irreversível e definitiva quebra do cristal ante a exposição dos dejetos humanos? Das guerras étnico-religiosas em nome de um deus non sense? Da perda da privacidade via tecno-eletrônica imoral?

Os hackers que detonaram a página de Poetas del Mundo estariam conscientizados de que, como escreveu Cesare Pavese, "a literatura é uma defesa contra as ofensas da vida"? De que "escreveu, não leu, o pau comeu", como diz o provérbio? Que Virgílio já havia previsto na "Eneida" que "arma uirumque cano" ("as armas e o herói eu canto"), como faria Camões depois n'Os Lusíadas — "as armas e os barões assinalados"? Aperceberam-se esses ignomiosos que Shakespeare havia dito ser preciso "levantar armas contra esse mar de problemas, que é a vida"?

Teriam os hackers conhecimento de que "é preciso não ter medo de criar. Por que o medo? Medo de conhecer os limites da minha capacidade? Ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar", como admoestou Clarice Lispector?

Aprendeu essa estirpe daninha à vida que "metáforas concentram mais verdades em menos espaço", como assevera Orson Scott Card? Que "é impossível desencorajar os escritores de verdade, [porque] eles não se importam com o que você diz; eles vão escrever de qualquer jeito", como assinalou Sinclair Lewis?

Na escola da depravação humana, os hackers talvez tenham aprendido que a poesia, além de "ensinar e deleitar", como queria Horácio,  é "o ato de escrever como o ato de descobrir no que você acredita" (David Hare). Que a literatura é "uma arma pacífica de resistência", como pontuou Rubem Fonseca no conto "Intestino grosso". Que a poesia é uma arma de crítica e denúncia social. Que, como escreveu Marina Tzvietáieva, "enquanto houver palavra todo o país está em chamas". Que palavras são "armas secretas", preconizou Julio Cortázar. Que "a função dos sonhos é a mesma das histórias de ficção: simular na mente como nos sentiríamos se enfrentássemos conflitos que nos assustam e realizássemos nossos desejos mais secretos", disse Diego Schutt.

Ou então seria porque, como escreveu Fernando Pessoa, "a literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta". Que "a literatura é uma inspiração para a realidade" (Romain Gary). Que "palavras, uma vez que são impressas, têm vida própria" (Carol Burnett). Ou para coadunar propósitos e intenções com Augusto Roa Bastos: "Eu escrevo para evitar que o medo da morte se agregue ao medo da vida".

O fato é que é preciso se perguntar: por que os hackers tem o direito de usurpar a poesia? Você aceita passivamente que energúmenos vençam a virtude da vida? 

 

 

 

 

[poema concreto] 

 

        

A obrigatoriedade da nova ortografia, que resulta do Acordo entre os países de Língua Portuguesa, mas vigorando em caráter facultativo desde 2009, foi adiada até 1º de janeiro de 2016. Isso porque, agora, senadores como Cyro Miranda (PSDB, GO), Cristovam Buarque (PDT, DF), Ana Amélia Lemos (PP, RS) e Lídice da Mata (PSB, BA), entre outros, entendem a necessidade de extinguir do vocabulário linguístico as letras "ç", "ch", "h" e construções com dois "s", com o objetivo de substituir a "memorização, vulgarmente conhecida como decoreba, pelo raciocínio e entendimento", a "eliminação de contradições e duplas grafias e a redução máxima do uso de hífen ou também a sua eliminação". Segundo o professor Ernani Pimentel, da equipe do projeto "Simplificando o Português", "quase ninguém sabe a ortografia em nosso país e encontrar alguém que saiba usar hífen, j, g, x, ch, s, z é algo raro. Até professores precisam recorrer a dicionários para confirmar como se escreve uma palavra, de tão complexo que é o nosso sistema". Língua difícil, o Português, falado e escrito por 230 milhões de pessoas no mundo, confunde, exaspera, dificulta a alfabetização, desanima o hábito de leitura, mantém um rigoroso quadro de "errata", não é incluída facilmente no processo de comunicação estrangeiro, reprova em profusão em concursos e leva o povão a criar alternativas linguísticas que incluem gírias, formas apocopadas, reducionismo, pobreza de expressões, ambiguidades, entre outros deméritos. No ensino/aprendizagem da Educação, mantém-se a dificuldade de explicar — e convencer o alunado — por que "estender" se escreve com "s" e "extensão" é com "x"; por que "pé de sapato", "pé de chinelo", "água de colônia", "manda chuva" são escritas sem hífen, mas "pé-de- meia", "guarda-chuva" e "água-de-cheiro" têm hífen? Como justificar, na lógica da significação, a supressão da letra "c" na palavra "pacto", se sem essa letra o sentido conduz ao discernimento de "pato"? Seria possível um "pato social"?, questionam com bom humor portugueses do mercado editorial de Lisboa. Não há consenso ortográfico entre os oito países componentes da comunidade lusófona. Para o eurodeputado Paulo Rangel, o acordo ortográfico é merecedor de "boicote cívico a uma mudança arrogante e inútil". O Jornal de Angola, que não ratificou o Acordo, assim como Moçambique, publicou que "se queremos que o Português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio de palavras; há coisa na vida que não podem ser submetidas aos negócios". Mesmo reconhecendo ser o Português o quinto idioma mais falado do mundo e o sexto idioma mais falado/escrito na internet, o lusitano Pedro Miguel do Amaral, declarando-se não ser um "purista da língua portuguesa" e sob o título "Democracia das falácias", reconheceu também que "muita da pobreza que ficou em países como São Tomé, Guiné ou Timor é fruto da nossa descolonização, e agora que temos os meios para agir [em função do Acordo Ortográfico] não vamos perder esta oportunidade". E deu uma alfinetada no Brasil: "Se a origem no Português está na Velha Europa, por que temos que imitar os do outro lado do Atlântico?". O imenso Mário de Andrade, já em 1943, quando se propôs uma reforma ortográfica, escreveu: "Não me interessa discutir se esta ou aquela é a ortografia que presta ou não. Precisamos é de acabar com a bagunça. Aqui, todo mundo escreve como bem entender. O Estado da Bahia tem h. A baía de Guanabara não tem. Acredito que a questão ortográfica tem contribuído muitíssimo para a desordem mental no Brasil". A bronca procede: segundo os professores Marcelo Módolo e Henrique Braga, da USP, "os alunos erram problemas de outras matérias porque não entendem a Língua Portuguesa". Por isso, para a escritora portuguesa Inês Pedrosa a questão da reforma ortográfica é "um acordo em desacordo". Contudo, o Nobel José Saramago asseverou que "se o Português quer ganhar influência no mundo, tem de apresentar-se com uma grafia única". Com  o título "Reforma estúpida", o filósofo e escritor Hélio Schwartsman publicou na Folha de S. Paulo que "nunca foi meia dúzia de consoantes mudas, como nas formas lusitanas "adoptação" e "óptimo", que constituíram barreira à intercomunicabilidade entre leitores e escritores dos dois lados do Atlântico". Helena Topa, defensora crítica do Acordo Ortográfico, levantou várias questões alusivas: "Como avaliar a escrita em função da articulação de cada aluno? Como ensinar a noção de norma se ela admite exceções e regras facultativas? O que mais me preocupa não é haver pessoas radicalmente contra ou a favor, é haver muita ignorância e uma multiplicação de artigos de opinião que pouco fazem para esclarecer".

         Minha opinião: Nelson Mandela disse que "os tempos mudam e nós temos de ser suficientemente inteligentes para mudar com eles". O Brasil precisa ter independência idiomática. É imperativo oficializar para o país uma Língua Brasileira, enriquecida pela ampla miscigenação cultural e que se amplia com a globalização. Nesse sentido, nós somos uma Babel feliz.

 

(Essa crônica transformou-se em um ensaio com nove laudas, por sugestão do escritor Jaime Prado Gouvêa, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, onde será publicado. Se o(a) leitor(a) quiser cópia, basta solicitar por e-mail.) 

 

 

 

 

 

 

        

Sob os próprios pelos: seres extraordinários inscreve-se entre (os poucos) romances inovadores brasileiros que ousam tsunamiar a estrutura canônica do gênero (como o faz — e bem — Pedro Maciel em Como deixei de ser Deus), em que predomina o realismo fantástico com descrições acentuadamente lúdicas de linguagem em um livro em que Marco Aqueiva se inaugura em prosa transferindo para a narrativa muito de sua vivência poética.

Qual é o enredo desse romance em minificção? O autor respondeu em entrevista: "Narrativa centralizada em torno das experiências inusitadas de um escritor frustrado (leitor compulsivo e colecionador de títulos de qualidade duvidosa, frequentador de sebos e antiquários), a partir da descoberta, em um sebo, do manual de um certo coletor de risos. Essa descoberta leva-o a retornar ao sebo e travar relacionamento com Teodoro Baldanders, o outro que lhe serve de guia, dando-lhe margens para buscar quem é numa jornada que oscila entre o onírico e o inexplicável no âmbito do real. Cria-se então uma atmosfera parabiótica [protagonista e seu duplo (Teodoro) numa jornada pelas águas indistintas do sonho e da realidade], que transcende as aparências e passa a envolver o protagonista desde a presença obsedante do ovo em seus sonhos até sua prefiguração epifânica nas baias do real, sobrepujando os limites da razão: taxonomias/compartimentações. Pretendeu-se nesse sentido propor ao leitor uma jornada que avance sobre essa coisa monstruosa e impura que tem muitos olhos e patas e que desliza insuspeita sob as tramas da pele e do mundo: museu, salão oval, a grande mesa oval no interior do salão oval, ovo do dragão, homem metido no ovo que está no interior da gaiola. Engaiolados e perseguidos, homens, dragões, quatatis — perseguindo um fundo inacessível — seja sob as próprias ventas seja sob a superfície, junto aos próprios pelos. Os três, quem são mesmo?!".

Seu relato fantástico situa-se entre o surreal e o onírico com humor nas entrelinhas. O ser diante de aporias (ou dos áporos?) existenciais a partir — de novo! — da história do ovo. A memória como invenção de um futuro para a linguagem. A ficção-científica como leitmotiv da realidade onírica. O riso como (possível) solução para a perplexidade: o coletor de risos como esperança de humanização do caos ante "o real valor das coisas" e a certeza de que "só o amor e o riso conhecem o que é a verdade".

Bazar do mundo: ser exortativo, monge budista, tela de Magritte, homem com chapéu coco e sobretudo, maresia e gaivotas, excesso de loucura, pequenino segredo, pedras, peixes e pães, secura comunicante, gládio de luz = quadros de uma literatura a serviço da imaginação: preparação de um ovo galático? A chave do manual do coletor de risos? A ressaca da "voraz vertigem que mais alucina que emociona?". Um "magnificente wunderkammer" (gabinetes de curiosidades; quartos de maravilhas) cegando com o brilho de sua rara relíquia: minimalismo compondo minimalismo, mas "guardião de tantas revelações". Uma repassada de leitura de leituras, no espaço e no tempo da memória que constrói o conhecimento. Cosmogonia e tecnologia em diálogo, aliás, prosa óptica. Quatatis versus matrix. "Solaris destinada a ser pasárgada". O óbvio e a expetação. Realidade fantástica. Fantasia real.

Desde o início a colocação de uma situação absurda, kafkiana, na qual se distinguem leis "lógicas" ou "psicológicas" de materializações "literárias", "ficcionais", que exercem funções operacionais no (con)texto narrativo: "Com que palavras exprimir esta vertigem insuportável e quase impossível de ser partilhada? Nascem-me muralhas entre mim e um inimigo que ignoro completamente enquanto sonho. (...) Sou um colecionador daqueles livros em geral absolutamente indesejáveis. (...)".

Supondo-se em uma "errância limite", o personagem que busca o manual coletor de risos na "cidade ovo" sabe, porém, que "todas as personagens" se ignoram completamente e que o destino de cada uma delas é determinado "pela escrita de um terceiro", que é "um perseguidor implacável que nunca se dá a conhecer", mas que, provocativamente, leva o leitor a perquirir: "Onde está então esse ficcionista insuspeito que nos faz instrumento e resultado de seu experimento e habilidade?"

Em que o romance de capítulos curtíssimos é inovador? Aqueiva responde: "Não sei se o é. Mas intuí o projeto (entendido estritamente como etapa técnica de elaboração de um texto metodologicamente definido) desde o início como aposta, jogo. Minha vocação literária original é a de poeta que faz versos, guiado pela sorte da conjunção de ritmo e imagem. Imagem e ritmo, para mim, são a primazia. O poema como resultado de uma faísca sonora e imagética. Quase sempre, o sentido, secundando ritmo/imagem, é apenas um termo agregado dessa mediação que define de um modo geral o caminho da poesia que faço nos últimos dezessete anos. Vale ainda considerar que essa determinante do poético é também uma face do aspecto lúdico preponderante a que me referi. Postos o prazer do jogo e a matriz poética da literatura que faço, talvez possa dizer que não é nos propósitos/intenções que se aclara Sob os próprios pelos: seres extraordinários. Associar a preferência pelo prodigioso/fantástico como instrumento de denúncia disso ou daquilo é algo que eu como professor talvez dissesse movido pelo didatismo  (em vista de um determinado grupo de estudantes). O fato é que, em que pese a matéria narrativa (as narrativas no interior do livro podem ser lidas como uma sucessão de episódios fantásticos sem uma melhor coerência a dar-lhes unidade — acho que haverá leitores que se sentirão logrados por essa visão), houve a preocupação inicial em determinar um ponto de partida, duas personagens e duas/três imagens de raiz poética a sugerir-lhes um caminho. O mais foi, sob o impulso inicial de uma certa compreensão literária que não vê fronteiras entre o poema e o romance (pensemos no surrealismo), dar liberdade a essas personagens".

O mito, o sonho e a fantasia poderiam ser essas imagens de referência a que alude o autor para sequenciar sua narrativa do poético para a diegese. Excertos elucidativos: "Nascem-me muralhas entre mim e um inimigo que ignoro completamente enquanto sonho. Acordo, e as muralhas ainda ainda permanecem quando me deparo com a sombra desse guerreiro em meu encalço. (...) Compreendi então que suas fábulas me podem ver e compreender como se subsistisse na força das palavras um condão de natureza oracular que é preciso, em carne e espírito, assumi-lo ou frontalmente rechaça-lo por todo o arbítrio que me recorta até aqui a existência. Sei que não sou exatamente um homem, e sim uma ausência cortada ao meio pela extensão imposta por uma estranheza talvez de impossível nomeação. Não sou exatamente um homem. Com todo o peso das palavras, em vista de Baldanders, sou menos um narrador que um sujeito que se perdeu. Ele está à minha frente e sei que me atravessam suas palavras como uma outra consciência que se impõe e é difícil determinar-lhe o sentido ou rumo. (...) Sofia, lembro-me de quando corrias, a cabeleira solta ao vento, deixando para trás tua voz que miava no telhado dos dias por entre as pedras e fomes do caminho. Tua cabeleira esvoaçante que, alastrando-se pelo corpo, agita-se como couraça contra a sementeira da indiferença. Tua voz que multiplica direções a tudo que alcançamos e perdemos é o princípio e a preparação do espírito do tempo. Nessa tua cabeleira que te esconde a face de menina fera desborda a imagem da ferida já nascente. Essa tua voz, germe da palavra e do silêncio, do real e da antimatéria, dispersa, de estrela em estrela, as nuvens pétreas da indiferença, e prepara os restos do defunto para dar de comer aos poetas".

Diria mesmo haver qualquer coisa do "automatismo psíquico" de Breton na narrativa aqueiviana, que só é válida, diria Franco Fortini, a partir de uma escrita intencional. Como é notável a introdução nessa mesma narrativa do insólito, de experiências mentais conscientes e inconscientes, fazendo com que, através de construções surreais, a própria obra se auto-organize dentro de uma presumível lógica.

Por que o autor escolheu o realismo fantástico como forma de expressão? Aqueiva respondeu: "Não saberia fazer prosa narrativa convencional, em que o material discursivo é produto consciente do romancista. É claro que há muitas possibilidades ficcionais na esteira do realismo, até aquela em que técnicas narrativas limitam essa consciência lúcida do romancista. Talvez não soubesse fazer bom uso dessas técnicas narrativas mais convencionais. O escritor faz o que sabe. Eu busco explorar as possibilidades lúdicas. Criar sentidos a partir da associação de elementos inusitados. Este aspecto, desconfio, não é apenas um recurso que impulsiona a metáfora poética. Mas está no cerne de uma experiência literária libertária (e lúdica, por isso mesmo!), liberta de todo correlativo objetivo em que o chão ficcional é produto da própria palavra".

Que autores realistas fantásticos o autor admira ou tem por influência? Marco Aqueiva respondeu que "são tantos". "Hoffman (O homem de areia), Poe (tudo), "Cortázar (tudo, com destaque especial para História de cronópios e famas, Todos os fogos o fogo), Borges (Aleph), Virginia Woolf (Orlando), Moacyr Scliar, Murilo Rubião.".

Sob os próprios pelos: seres extraordinários é particularmente um livro muito rico porque condensa o realismo fantástico desde suas raízes mais genuínas em muitos de seus autores emblemáticos, constituindo por isso uma referência que renova o gênero sem repeti-lo ou desgastá-lo no cânone.

Os principais ingredientes do gênero estão aí concentrados de modo renovado, ou seja, dialogando agora com a pós-modernidade referencial, mas têm raízes ancestrais, nos mitos e lendas, nos acontecimentos imaginários intrigantes desde os tempos mais remotos, dos dragões e suas simbologias, nas religiões de base, do sobrenatural à exploração do psicológico, da zooliteratura e das fabulações inquietantes, das angústias existenciais e dos avanços tecnológicos.

Tudo isso mostra para um leitor prazeroso de leitura que o gênero fantástico contido neste romance arrebatador não é algo estagnado no tempo e no espaço, algo non sense ou déjà vu, mas, ao contrário, um texto ávido, brilhante porquanto urdido com farta imagística a deleitar e a fazer pensar.

Também nesse romance, de acordo com Todorov em seu Introdução à literatura fantástica, a essência consiste na irrupção de um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis racionais, cuja ambiguidade leva a incerteza a por-se diante de um fato aparentemente sobrenatural, donde o estabelecimento do fantástico dos seres extraordinários.

E também nesse romance, e conforme Todorov, "primeiro é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, a hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem [o coletor de risos ou por seu alter ego Teodoro Baldanders]. Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação "poética".

Talvez a aceitação do realismo fantástico venha então, pois, por um posicionamento leitoral antinômico, de aceitação da combinatória da irrealidade ao realismo, quando "o insólito e o estranho ocorrem no universo familiar, e o cotidiano se caracteriza pela mistura do desconhecido com o conhecido." A fluição das fronteiras vem do embate ideológico caracterizado pelos personagens que constroem e desmantelam a ideia do que se passa dentro e fora do ovo — ab ovo — "desenrolando os fios de conformismo para tatear as cambiantes das cores e mudar a direção do olhar e ouvir os apelos ignorados à vida", como escreve Aqueiva num dado momento-chave do texto.

Aqui, o realismo fantástico entra no desenvolvimento da narrativa, evoca a "poética da incerteza"; expõe a ironia sutil e mágica de Murilo Rubião; os cronópios cortazarianos como os quatatis, que presumivelmente serão desenvolvidos em uma outra obra; as situações surrealistas que tornam o insólito deliciosamente palatável; certas imagens assustadoras decorrentes desde o romance gótico de Poe; e pela incoerência e contraditoriedade entre elementos do cotidiano, no surgimento do absurdo kafkiano/borgeano a partir do bestiário dos seres imaginários, cuja comparação de um animal a outro, conforme leitura de Piskorski, desliza para o "registro poético", uma vez que a poesia sempre é o meio daquilo que já deriva para o incompreensível; o aprendizado com Virgínia Woolf, mormente a lembrar o conto "Objetos sólidos", que tem por personagem o obcecado colecionador de objetos, que remete ao colecionador de livros "em geral absolutamente indesejáveis" e frequentador de antiquários de Sob os próprios pelos: seres extraordinários.

Como o fantástico implica numa integração do leitor com o mundo  das personagens, neste romance, diria Todorov, a percepção desse leitor implícito está inscrita com a mesma precisão com que o estão os movimentos das personagens. Seja ela Sofia, Gog, Dumbt, Flora, Aleixo, entre outras.

Um romance para engrandecer a literatura brasileira de bom exemplo, cuja produção foi "prazerosa como quem conhece as delícias da dor; perturbadora como aquele que desconfia que o limite entre o prazer e a dor depende do leitor", como frisou o autor.

 

 

 

 

 

 

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