Dizem que o imperador romano Júlio César — grande político, notável estrategista e um dos mestres da literatura latina — conseguia ler relatórios oficiais, escrever cartas particulares, conversar com seus ajudantes sobre vários assuntos complexos e ditar suas primorosas Memórias das guerras gálicas... ao mesmo tempo, não raro às pressas, acompanhando o seu exército a cavalo ou numa quadriga militar. É natural que as pessoas desse tipo, excepcionais em qualquer época e país, suscitem o mais vivo interesse dos contemporâneos e pósteros. Nosso entrevistado de hoje, carioca Marcelo Moraes Caetano, talvez não seja um César de terno e gravata, porém a riqueza de seu intelecto e a diversidade de suas inclinações criativas fazem com que mereça uma atenção bem especial. Professor universitário e pesquisador, autor de textos prosaicos e poéticos, ativista cultural e músico talentoso... será que estou deixando algo relevante fora da nossa lista? Vejamos, então, quem é esse "demiurgo grego, por acaso transferido para o presente", como o caracterizou um dia a poetisa Paula Cajaty, e se sua imagem idealizada corresponde à realidade. [Oleg Almeida]

 

 

 

 

 

 

 

Oleg Almeida – Pois bem, Marcelo, já venho logo com uma leve provocação. Você tem porventura algum parentesco com o Doutor Marcello Caetano, o primeiro ministro de Portugal deposto pela Revolução dos Cravos?

 

Marcelo Moraes Caetano – Sim, e um parentesco que ultrapassa os âmbitos atlântico e consanguíneo, para subjazer à superestrutura ideológica.

 

 

OA – Como se sabe, a personalidade humana se forma, pelo menos em traços gerais, nos primeiros anos da vida. Poderia contar-nos um pouco da sua infância? Suas primícias literárias remontam àquele tempo?

 

MMC – Sou filho único, e essa circunstância me dotou de uma inevitável solitude, isto é, de um necessário contentamento em estar só. Graças a isso, minha personalidade certamente foi-se tornando introspectiva, quase convoluta, paralelamente a uma tendência, que sempre demonstrei, de ser bastante alegre, trepidante, extrovertido. Portanto, desde que nasci, fui posto numa espécie de tensão dialética entre os dois "tipos psicológicos" a que Jung faz menção, aludindo às faces de Robert Schumann, fazendo-as conviver, em mim, num eterno diálogo, felizmente nunca no conflito schumanniano. Conheço a dinâmica dialética na prática, e não apenas na teoria. A minha face introspectiva precisava, como eu disse, festejar-se na reflexão e na especulação, locais onde sempre encontrei guarida para os mais efusivos momentos íntimos de criação, inspiração, trabalho, construção. Isso responde à pergunta da seguinte maneira: minha infância introjetou em mim um amor implacável pelas letras e pela música, formas de manifestação artística que sempre me conduziram, mais do que acompanharam. A arte é comunicação expressiva, transbordamento dos estados que se aproximam muito do inconsciente, e, ao mesmo tempo em que é referenciação simbólica da realidade singular e idiossincrática, compartilha um saber e uma competência histórico-social que torna os artistas espécies de elos entre o indivíduo, o ego e a identidade social. Na minha infância, dediquei-me de modo quase extenuante, quando não estava junto aos amigos, à música e à sua exigência intransigente. A literatura, naquele momento, compunha em mim um refúgio que, a bem dizer, continua a compor até os dias de hoje. Mantenho a literatura e a música, até hoje, para recorrer à etimologia, mais no campo do ócio do que no do negócio. Faço questão de ser um diletante, e não um especialista, apesar de rumos muitas vezes profissionais que música e literatura solicitam do meu feudo criador.

 

 

OA – Em 1989 e 1990, tendo apenas 13 ou 14 anos de idade, você ganhou toda uma série de prêmios em concursos nacionais e internacionais de piano clássico. Isso quer dizer que sua atração pela música erudita também surgiu muito cedo. Daí a minha segunda provocação: foi algo mozartiano?

 

MMC – No sentido de que Mozart foi uma criança que desde cedo teve de aprender a lidar com a responsabilidade de dois mundos − a infância e a aprovação pública —, sim. Mozart foi um menino muito sacrificado pelo pai e até pela irmã. Viveu em dois ambientes antagônicos: o de pequeno-burguês e o da alta aristocracia e nobreza da Áustria e da Europa. Nesse sentido, creio que em mim, felizmente, não clarine o timbre mozartiano. Creio que Mozart, ainda mais do que Bach (ao menos para o piano), é a grande base musical. Todos os grandes compositores têm e retêm no gênio de Mozart algo de basilar. Beethoven, Schubert, Liszt, Brahms, Chopin, Ravel, Tchaikovsky, Scriabin etc. não se estorvam da base musical do menino de Salzburgo. Creio que os pianistas todos somos mais do que tributários da técnica de Mozart: somos-lhe caudatários. Nesse sentido, volto a afirmar: eu, tal qual todos os envolvidos com o piano, seja como intérpretes, seja como compositores, somos mozartianos.

 

 

OA – Suas vocações principais — a ciência, a literatura e a música — já entraram alguma vez em conflito? Você já se deparou com a necessidade de escolher entre diversas opções de igual importância?

 

MMC – Falei há pouco do lugar da literatura e da música na minha vida. A ciência posiciona-se em outro patamar: o da minha verdadeira ambição e projeto pessoal. Não fui eu que escolhi a ciência, foi ela que me escolheu. Eu tenho alma de cientista, e o artista cujo frêmito se embrenha nesta alma é um alegre jogral de quem aprendo a emprestar ao meu olhar científico um halo poético. A física e a metafísica, para criar metonímias da ciência e da arte, respectivamente, tocam-se como as paralelas que se tocam no infinito. Nesse aspecto, considero-me um felizardo por ter permitido que o cientista que conclui a minha essência se expresse não como um retórico empedernido, mas como um menestrel rapsódico.

 

 

OA – Onde você estudou? Como foi a instrução acadêmica que recebeu?

 

MMC – Estudei em muitos centros acadêmicos de excelência, no Brasil e na Europa. Agradeço muito aos meus pais pela forma prudente e, ao mesmo tempo, aventureira com que me permitiram formar-me. Grandes mestres passaram pela minha formação. Eu não teria como citar todos, mas ouso sublinhar alguns. No campo científico: Eneida do Rego Monteiro Bomfim, Evanildo Bechara, Claudio Cezar Henriques, Maria Tereza Gonçalves Pereira, Maria Emília Barcellos da Silva, André Valente, José Carlos de Azeredo, Jacques Derrida, Élisabeth Roudinesco, Katarina Frostenson, Elfriede Jelinek, Julia Kristeva, Boaventura de Souza Santos, Ana Maria Machado, Antonio Carlos Secchin, Marcos Almir Madeira, Raquel de Queirós. No campo da música: Maria da Penha, Linda Bustani, Myrian Dauelsberg, Ingrid Häbler, Paul Badura-Skoda, Ludwig Brosens. Em termos de centros acadêmicos que constituíram minha formação, posso citar a UERJ, a UFF, a PUC, a École des Hautes Études en Sciences Sociales, o Mozarteum de Salzburgo, o Conservatório Real de Bruxelas.

 

OA – Poderia esboçar para nós o círculo de suas preferências científicas? Quais são os temas de pesquisa e ensino que mais o interessam atualmente?

 

MMC – As interseções entre a linguagem e seus aspectos social, psicológico, neurológico, ideológico, político, físico, fisiológico, artístico, gramatical. Não vejo nenhuma lógica em clivar-se a linguagem a um espaço restrito que manifeste exclusivamente um aspecto. Vejo a linguagem como a essência da Epistemologia (Filosofia da Ciência) no próprio cerne de sua criação, transmissão, recepção, decodificação e devolução. Todas as ciências devem ser objeto de diálogo com a linguagem, pelo fato, que deveria soar como truísmo, e nunca como paradoxo, de que todas as ciências são simplesmente formas específicas de linguagem, com signos, significantes, significados, símbolos, ícones e referentes análogos. A operação que envolve a consubstanciação da linguagem é idêntica em todas as ciências, porque todas as ciências não passam de extensões da linguagem. Assim como o ser humano evoluiu, desde o Paleolítico Inferior, por causa de extensões dos sentidos e dos órgãos ou membros — a extensão da visão, do tato e do paladar com o domínio do fogo; a extensão das mãos com a invenção do arco e flecha; a extensão do cérebro com o desenvolvimento da escrita etc. —, da mesma forma as ciências são extensões da linguagem humana, e formas distintas de reproduzi-la, transfigurá-la ou assentá-la sobre bases que divergem quanto aos fins, mas que convergem quanto aos princípios e aos meios. Compreender a linguagem significa compreender todas as ciências. Trata-se da pedra filosofal que os alquimistas soíam buscar em símbolos míticos.

 

 

OA – E quanto às suas atividades de escritor... Qual é o seu gênero predileto: poesia ou prosa de ficção?

 

MMC – Creio que cada um desses gêneros tenha seu momento próprio. Chegar-se ao estado de poesia é, a meu ver, o ponto mais alto do escritor, independentemente de esse estado (conteúdo) ser expresso em prosa ou em poema. Comunica-se muito com a prosa para realidades específicas. Vejo poesia e prosa como complementares. O fato de alguns escritores dominarem mais um gênero que o outro se deve a um desses mistérios do universo, e não a uma superioridade de progênie ou de prosápia.

 

 

OA – Suas obras literárias são uma espécie de mosaico verbal em que os elementos modernistas, parnasianos e realistas se misturam de modo tão original quanto harmônico. Existe alguma escola, algum movimento específico a que elas pertencem ou tendem formalmente?

 

MMC – Há uma tríade indispensável, e nem sempre de fácil equação, na vida do artista: autor, obra, público. Comunicar-se sem desmantelar-se é o desafio do artista. Mantenho minha estrutura artística num frágil equilíbrio mais ou menos consciente desse dínamo incendiário. Busco criar o que for preciso para estabelecer esse equilíbrio calcado no desequilíbrio imanente à posição do artista. Muitas vezes o artista precisa estabelecer para si o "efeito Münchhausen", alusivo ao famoso barão fleumático que conseguia tirar-se da areia movediça puxando a si mesmo pelos cabelos. O artista é um engenheiro de bolhas de sabão, ou um alquimista de pontes de ferro. Nossa comunicação se dá ora num contexto monológico dialogal, ora num contexto dialógico monolítico. Eu escrevo para chegar a este fim. E, como seu caminho seja caleidoscópico, o resultado é uma escrita itinerante, às vezes pré-lógica, às vezes matemática, racional ou onírica. Não é razoável nem irrazoável — é isto que está aí, como diria Wittgenstein.

 

 

OA – Agora passaremos à dimensão internacional de seu trabalho científico e artístico. Que línguas estrangeiras lhe são íntimas?

 

MMC – Inglês, francês, alemão, espanhol, latim, italiano, galego, flamengo, grego, mandarim e russo. Isso não significa que eu as fale todas, mas que posso ler e/ou escrever e/ou me comunicar em todas elas. As que me são mais afins são o inglês, o alemão, o italiano, o latim e o grego.

 

 

OA – Você já morou no exterior? Comente, por gentileza, acerca dessas vivências. Que papel teve o seu distanciamento em relação ao Brasil? E, aproveitando o direito a mais uma provocação que me cabe: você nunca sentiu vontade de mudar-se, digamos, para a Europa e desenvolver sua carreira naquelas plagas, como Vicente do Rego Monteiro ou Bruno Tolentino?

 

MMC – Sim, na Áustria, França e Bélgica. E sim, tenho vontade, às vezes, de morar num desses lugares novamente. O distanciamento nunca foi problema para mim. Sou como um felino, que é feliz onde for sua casa. Não me sinto um cidadão de lugar nenhum do mundo. Tenho raízes flexíveis e ubíquas. Fico feliz onde quer que possa tomar café, estudar piano, ler, rir com amigos (não importa em que idioma), pesquisar o verso, o anverso e as fímbrias da linguagem. Nunca me sinto distante se tenho esses elementos ao redor. Meu quintal é maior do que o mundo.

 

 

OA – Como você avaliaria o lugar que a cultura brasileira ocupa neste mundo globalizado de nossos dias? A literatura, a música, as artes visuais do Brasil são capazes de concorrer, com pleno êxito, no mercado transnacional?

 

MMC – Num certo sentido, sim. A globalização — entendida como a expansão do capitalismo, depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, ou da dissolução da União Soviética, em 1991 — pasteurizou e domesticou as artes, muitas vezes nivelando-as por baixo, e isso permite incluir qualquer país ou expressão de cultura no panorama transnacional. A mundialização (substantivo de cujo cerne se percebe um viés franco-germânico e não anglo-americano, como o anterior), ao contrário, valoriza e encarece as diferenças, o regionalismo, o pitoresco das culturas e das gentes. Também nesse sentido há lugar para as artes brasileiras, como expressiva de um entrecruzamento étnico, ideológico, autóctone, alóctone como não se vê em nenhum outro lugar do mundo. O Rio de Janeiro, por exemplo, cidade onde nasci, conjuga discrepâncias harmônicas, escândalos elegantes e merismas totalitários inconcebíveis em outras urbes do nosso orbe. Nem Nova Iorque, nem Londres, nem Amsterdã, nem Sydney, nem São Francisco, nem Tóquio congregam tantas células sociais quanto o Rio. Mas, no sentido do mercado, vejo as artes brasileiras ainda muito aquém do nível solicitado no exterior. O mercado é um fator externo às artes, mas que decerto lhes molda contornos bastante discretos, bem pouco fronteiriços, muito rigorosos até, eu diria. É-lhe externo, sem ser-lhe transcendente. As artes exigem muito trabalho e aderência para concorrerem neste acidulado rincão, o mercadológico, o terreno do "empório"; e trabalho e aderência, além de disciplina, paciência e entrega, constituem atributos que, como afirmam todos os etnólogos ou antropólogos, desde os impressionistas como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, até os científicos como Raymundo Faoro e Claude Lévi-Strauss, não compõem a estrutura subjacente à cultura (autônoma) brasileira.

 

 

OA – E qual é, a seu ver, o futuro da lusofonia tida como um sistema, ou melhor, um ambiente linguístico e cultural? A língua de Camões se tornará realmente universal ou permanecerá, de certa forma, à sombra do inglês e do espanhol?

 

MMC – Em termos quantitativos, não me arriscaria a esboçar uma resposta sobre isso, pois padeceria, qualquer que ela fosse, de falta de substrato científico, paliado pelo anódino de uma mera tergiversação malbaratada. Em termos qualitativos, entretanto, a língua portuguesa não está à sombra de nenhuma outra do mundo, porque é uma das línguas que aliam com mais estro e destemor o aspecto selvagem e histórico, de língua primitiva e de cultura, como o inglês, por exemplo, não chega a alcançar, por tratar-se de língua menos gratuita e mais pragmática. Talvez o espanhol chegue perto da língua portuguesa, por compartilhar com ela a gênese e fixação a partir de um momento histórico de até hoje insuperável encruzilhada de engenhos — os séculos XV e XVI, momento do fim da Idade Média, descobrimento do Novo Mundo, invenção da imprensa, Reforma de Lutero — em que a Península Ibérica dispunha da munição ideológica e náutica capaz de alçá-la às terras desconhecidas e, com isso, ceder-lhe o salvo-conduto de arauto das necessidades de criação das "comunidades imaginadas" (no dizer feliz de Benedict Anderson) pautadas numa língua que conseguisse a proeza de flexibilizar-se e endurecer-se, centrípeta e centrífuga, para corresponder a duas necessidades muitas vezes destoantes: a do entreposto internacional e a da formação nacional. A língua portuguesa, em se confirmando a hipótese de Sapir-Whorf, é uma das que possuem maior quantidade de meios de expressão morfológica, sintática, discursiva, semântica, lexical e até fonético-fonológica, porque é das raras línguas do mundo a um só tempo conservadora e inovadora (até pelas razões históricas aludidas), e, por isso, pensar em português significa pensar de um modo sem fronteira nenhuma, sortilégio raríssimo entre as línguas do mundo, de hoje e de antanho.

 

 

OA – Muito obrigado, Marcelo, pelas suas digressões sinceras e sábias. Espero que nossos leitores também gostem de sua entrevista. Ela prova, sem exagero algum, que o ideal greco-romano e renascentista de homem múltiplo e multifacetado, capaz de atuar simultaneamente nas mais diversas áreas de conhecimento e arte, ainda existe em nosso mundo cada vez mais padronizado. Acho que seria interessante finalizá-la com alguns textos poéticos de sua autoria. E quem os criou — diletante ou profissional de escrita... deixemos que os leitores julguem a respeito disso!

 

 

 

 

POEMAS DE MARCELO MORAES CAETANO

 

 

Potência de Fênix 

 

 

O palito de fósforo contém
o fogo estacionário dos incêndios;
com o vento, em seu harém,
amansa-os, empresta-lhes, reacende-os.

O poema e a ferrugem
não são nem bem, nem mal.
Não penetram sem que se sujem
no nauta, no pavio, no mar, na cal.

Um verso que se domina
pode-se ver do erro
da régua da indisciplina
do carvão da neve do ferro.

O fato mais comezinho
é que poesia dorme:
cedo acorda e vai passarinho,
águia, embora (ou) conforme.

Escrever é falar sem manto,
começo no ponto final?
Segue-se, apesar do entretanto,
mirando-se, estátua de sal.

Escreve-se porque não se escuta
a fala, tão pouco loquaz.
Tampouco se espera que a luta
acabe. E acaba-se em paz.

Acento, o silêncio e seu ensaio,
fogo se desfia;
Pássaro adentro. Pensai-o
Poesia.

 

 

[1º Lugar Prêmio Paulo Henriques Brito, PUC-Rio, Globo Universidade, Editora Record, 2010]

 

 

 

 

 

 

Trabalho fluente

 

Para o Antonio Carlos Secchin

 

 

Escrever é aportar uma ideia;

cheia, um barco de pesca, uma fragata.

Somos feito os pescadores à cata

de peixe: versos que alimentam nossa aldeia.

 

O poeta joga a rede e se resume

a pedir à Deusa (a Água) uma resposta.

No litoral, bem próximo da costa,

enche o balaio de poema e de cardume.

 

Penso quanto é útil este mudo aprendizado:

a nau em lua cheia colhendo os marítimos

caranguejos, cações, sardinhas em boana.

 

E lá na Atlântica, o poeta acordado

amanhece o silêncio, escrivaninha em ritmos

de um soneto atracando em Copacabana.

 

 

[1º lugar Patrimônio Fluminense, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional, Fundação Casa de Rui Barbosa, Fundação Osvaldo Cruz, 2012]

 

 

 

 

 

 

Fábrica de anjos

 

 

A uva quando sofre gera vinho.

Trigo morre quando renasce pão.

Rosa é bela, mas quem resta é o espinho.

Azeite pinga só quando há pressão.

 

Pérola cresce quando a ostra sofre.

Mortificam-se os pés da bailarina.

O chumbo torna-se ouro pelo enxofre.

Pobre lagarta: a borboleta é sina.

 

Papel é árvore desarvorada.

Escrever é uma dor que dói no peito.

Quem crê em Deus crê em Gnomo e em Fada.

 

Quanto mais alto, mais ar rarefeito.

Porém só de cima é que a vista é rica.

Subir é a lei do anjo: é o que o fabrica.

 

 

 

 

 

 

Ilíada Nordestina

 

Para o Lêdo Ivo

 

 

Por sertões acres que me desbravam à adaga,

cheios de igarapés, frêmitos e caranguejos de rubi,

anchos de misticismo, Neit, Oxóssi, Posseidon e Banshee,

ardem fogueiras como ascetas de Core e de Baba Yaga.

 

Evocam-se intermitências do Rio de Janeiro a Bang Hu,

crepitam desejos ígneos das Salamandras de Exu,

varrem-me os trovões de Xangô, os raios de Yansã

na valorosa força de Freya, Hórus e Thor

para acender sobre mim o cajado de um Xamã

no Havefruss de Deméter, nas Iaras do Rio Maior.

 

(No Reno, correm lendas azuis como o Danúbio.

Se as marés de vento em Góbi

desenham ondas de ar para os elfos núbios,

Osíris manda e Ísis sobe

indo ao Olimpo e ao Asgard encontrar Zeus.)

 

Lá, ao seu lado, está Oxum,

abençoando o Japão, como Xogum,

molhando os olhos sagrados de todos os ateus.

 

Com a força de Oxalá,

salvem as Valquírias da Alemanha!

Que as odaliscas do califa de Bagdá

sejam abençoadas por Ossanha!

 

Venha sobre nós a eterna primavera

como um convite

austero (implacável) como Hera,

ardoroso (pelitude) como Afrodite.

 

Suba de nós um vapor fino, uma luz esbelta

como a de todos os Deuses da Camolodúnum Celta.

 

Mas quando tudo já for novamente amor,

como este pântano doce de Nanã,

o universo retumbará como um tambor,

e Jeová, com seu atabaque, será seu grande Ogã.

 

— No éter, um rubiáceo corisco

anunciará o cerúleo São Francisco.

 

— Todos os Deuses criarão uma Espiral

onde o Bem eliminará o (sempre indiscreto) mal.

 

— Foi assim que o grande Rei, em pé,

fez erigir-se a inefável maré.

 

Pois a Virgem Maria, pisando a serpente,

cercada de Hermes, Íris e um bardo menestrel,

tornou o universo uma poesia chamada "São Miguel":

remiu com doce valentia toda a gente.

 

A rasitude das liturgias

se confundirá com todas as melodias;

de todos os recantos afluirão Deuses à Borda

do Argênteo oceano da vida, evolando Sursum Corda!

 

TROVADOR: Só haverá coros de arcanjos, maestros Serafins

regerão a Sinfônica morte da maldade, já nos confins.

 

MENESTREL: Não haverá mais Babel:

todos anunciarão a língua de São Gabriel.

 

RAPSODO: O Cosmo tocará a lira de Apolo, arcana

feita uma canção napolitana.

 

CORIFEU: É que ninguém, nada ficará de fora

desta Grande Vereda Sincrética Sertaneja que aflora.

 

 

dezembro, 2014
 
 
 
Marcelo Moraes Caetano é escritor (crítico literário, ensaísta, ficcionista, poeta, dramaturgo), pianista clássico, gramático e professor universitário (IBMR/Laureate International Universities, Kendall-Chicago, Universidade de Bruxelas; Author and content developer da California State University). Bacharel em português e grego – UERJ. Especialista em Educação – UFF / École des Hautes Études en Sciences Sociales. Mestre em Estudos da Linguagem e em Língua Portuguesa – PUC-Rio. Doutor Honoris Causa em Filosofias e Letras Clássicas – Universidade de Coimbra. Doutor Honoris Causa em Artes – Federação Brasileira dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes. PhD em Língua Portuguesa – UERJ. Tradutor de inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, latim, grego e mandarim. Autor de mais de 20 livros publicados no Brasil e no exterior. Recebeu vários prêmios no Brasil e no exterior, entre eles: Concurso Internacional de Solistas Instrumentistas Ciudad de Cordoba, 1989; ONU-UNESCO-Academia Brasileira de Letras, 2005, 2006; Solistas da Orquestra Sinfônica de Viena, 2010; Médaille de Vermeil, 2011 (Paris); Prêmio Claudio de Oliveira (Academia Brasileira de Letras e PEN Clube do Brasil), 2012. É membro, entre outras Academias, do PEN Club International (Rio-Londres), da Académie des Arts, Sciences et Lettres de Paris, da Academía de Letras y Artes de Chile.
 
 
 
 
Oleg Almeida (Bielorrússia, 1971). Poeta e tradutor, sócio da União Brasileira de Escritores (UBE/São Paulo). Autor dos livros de poesia Memórias dum hiperbóreo (2008) e Quarta-feira de Cinzas e outros poemas (2011) e de numerosas traduções do russo (Dostoiévski, Púchkin, M. Kuzmin) e do francês (Baudelaire, P. Louÿs). Mais em www.olegalmeida.com.
 
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