GERMINA - REVISTA DE LITERATURA & ARTE
©gabriel amaral | estudo para a capa do livro "uma denise", de roberto amaral
 
 
 
 

 

 

Todas as semanas, aos domingos pela manhã, tenho o hábito de ligar para os meus pais. Trata-se de um telefonema alongado, mediante o qual costumamos colocar em dia a resenha dos acontecimentos da semana. Uma tentativa quase sempre malograda de satisfazermos nossas mútuas saudades. Apesar de, viva Graham Bell! Viva Antonio Meucci!

Mas no domingo de hoje, 23/11, o nosso telefonema dominical teve sabor diverso.

Na sexta passada, recebi uma ligação extemporânea do meu paizão, me informando, emocionado, que o carteiro acabara de entregar uma encomenda, cujo desembrulhar revelou a chegada de meu novo romance uma denise. Há tempos não via meu querido pai tão entusiasmado, tão vibrante! O contágio dessa emoção foi imediato, alcançando-me por inteiro.

Tal emoção também se justifica por uma outra razão. Dediquei o meu uma denise a ele, meu pai, José Arnóbio do Amaral, que desde a minha tenra infância tive sempre como o exemplo de um grande narrador oral. Sempre ouvi dele as diversas muitas histórias sobre acontecimentos que ele vivenciou ou presenciou, relatadas com talento ímpar, no tom e na medida certa, com um humor dosado pela ingenuidade e pelo sarcasmo.

Ele disse, inclusive, na oportunidade, que já havia começado a leitura do livro, o que me deixou perplexo, pois, há muito, por razões malacafentas, meu pai não lia nem notícias de jornal. Faltava-lhe a paciência, a concentração, o ânimo, enfim, para entregar-se a essa atividade tão vital a qualquer ser humano que é o ato de ler.

Mas no nosso bate-papo de hoje, ele disse mais, que estava avançando na leitura, que estava gostando muito e, curiosamente, chamou a minha atenção para uma palavra que leu em certa passagem: "atoleimado".

Ele disse:

— Roberto, você me ajudou a lembrar dessa palavra que julguei apagada de minha memória. Quando criança, lembro de meu pai, sempre que eu entrava correndo em casa, esbarrando nas coisas, derrubando algo, ralhar comigo: Ô menino atoleimado!

Eu disse:

— Que coisa, impressionante, pai! Nunca soube disso, nem imaginava que você conhecesse tal palavra.

Ficamos assim, tomados por alegre conversa, toda ela girando em torno das lembranças que o termo "atoleimado" suscitou.

Depois que desliguei o telefone fui tomar café com a querida poeta Adriane Garcia, hospedada em minha casa por conta de sua apresentação no Café Literário.

Contei para ela o acontecido, da minha alegria em ver que a literatura mais uma vez nos surpreende com o seu alcance inesperado, com sua capacidade de provocar efeitos os mais inusitados nos leitores, para os quais, nós, escritores somos inúteis, posto que, depois de a obra lançada, esta não mais nos pertence, dela não teremos mais noção quanto à sua receptividade e controle.

O trecho do romance a que meu paizinho se refere é este: "Silenciei por um momento, ainda que não reprisando aquele seu desconfortável semblante atoleimado diante de situações inquiridoras".

Confesso, o termo "atoleimado" utilizado por mim nessa passagem é uma mera solução literária, um mero recurso estético, pois tal palavra não possuía para mim, até então, nenhum valor ou sentido afetivo, tratava-se, portanto, de pura linguagem.

Já conhecia a expressão "toleima" desde Grande Sertão: Veredas, que tem o sentido de "tolice", "inépcia". Porém, tal palavra não foi a motivadora — e não vou discutir aqui o aspecto inconsciente da coisa — para que eu utilizasse "atoleimado" em meu romance. Não de forma intencional. De todo modo, o recurso à palavra não foi afetivo, mas linguístico.

No finalzinho de nossa conversa ao telefone, meu pai me surpreendeu com a seguinte pergunta:

— Roberto, mas o que "atoleimado" quer dizer mesmo?

Veja-se que coisa mais interessante! Meu pai já conhecia o sentido afetivo da palavra "atoleimado", mas desconhecia o seu significado linguístico. E eu, ao contrário, conhecia o significado linguístico, mas estava distanciado de qualquer relação afetiva com tal termo, até então, diga-se de passagem.

Daí vêm desdobramentos incríveis.

A palavra "atoleimado" que estava escondida em algum recôndito da memória de meu pai, ao ser lida na passagem mencionada de meu romance, ressurgiu com força redobrada: com o sentido afetivo resguardado pela lembrança do ralho de seu pai e, em decorrência, de forma metonímica, do ralho para o pai em sua inteireza; e com o sentido linguístico, o significado do verbete que nunca antes compusera o universo vocabular do Sr. José Arnóbio do Amaral.

A palavra "atoleimado", que tinha para mim apenas um valor linguístico, o significado dicionarizado, o recurso literário e estético, passou a ter um forte peso afetivo, passou a habitar a minha memória de forma inusitada, como uma lembrança que nunca vivi, mas que foi preenchida pela matéria da invenção, a de imaginar meu avô ralhando com meu pai na longínqua, no tempo e no espaço, Santa Cruz, no Rio Grande do Norte.

Ouso dizer que a literatura proporcionou, a meu pai e a mim, muito mais que uma mera coincidência literária, mas uma epifania.

A minha querida Adriane Garcia disse mais, talvez inspirada em seu novo livro de poemas O nome do mundo:

— Erre, o que houve foi um encontro que é proporcionado pela arte em todas as suas manifestações, mas, em especial, pela literatura. O termo "atoleimado" pertencia ao mundo de seu pai de uma forma e pertencia ao seu mundo de outra. Quando ele a leu em seu romance e lhe falou sobre a lembrança por ela suscitada, seus mundos, o seu e o dele, se encontraram. Mediadas pela palavra literária, memória e invenção fizeram de dois mundos, o seu e o dele, um só, um mundo novo, que revitalizou a relação de vocês dois, tornando-a una, ou seja, para além do aspecto consanguíneo, para além da relação pai-e-filho e toda a sua complexidade. Una, porque reuniu tempos e espaços diversos por meio de realizações, sua e dele: a sua, consumada na criação literária, a dele, reavivada pela memória das "artes" de sua criancice. A palavra "atoleimado" reuniu a ambos não necessariamente pelo que ela significa: "pouco habilidoso", "meio atrapalhado", mas pelo sentido, pelo conserto concertado realizado pela literatura.

Claro que, traído pela memória e mobilizado pela invenção, muito do que foi dito acima foram palavras que coloquei na boca da Adriane, que ela me perdoe por isso. Mas mesmo isso é artimanha da literatura. O fato de ela e eu termos conversado sobre o arranjo a que a literatura nos lançou, meu pai e eu, a partir de uma simples palavra lida na miríade de linhas de um romance, também fez dela, da Adriane, uma copartícipe, aliás, mais que isso, uma cúmplice da trama que nossas memória e inventividade teceram, por meio de nossa conversa, e que hão de tecer por meio de nossas criações literárias.

A mim me basta saber que o romance que escrevi e dediquei ao meu querido e lindo pai, chegou às mãos dele, que ele o está lendo, que uma palavra o alcançou, que tal palavra, como diz a Adriane, replicando um certo mestre de parábolas, encontrou nele terra fértil, e o fruto vingou. A palavra, a literária, venceu novamente, amém!

 

 

 

 

dezembro, 2014