©ellen von unwerth
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Poema confessional


aquele desencontro

não foi nada para você,  mas para mim foi
 
novembro acabou
dezembro caminha para a mesma ordem
o ano vai terminar
a vida está por um fio
e você suspende as horas
 
o tempo é coisa a ser levada a sério
embora  eu faça poemas anarquistas
subvertendo a manhã, a tarde, a noite
não consigo subverter seu corpo
seu olhar translúcido
os passos a caminho do que desconheço
a esperança de uma revelação que nem sequer suponho
por isso é importante pegar o tempo
com você dentro dele
como o gênio na garrafa
e deter o princípio do encantamento 
 
as mágicas que se passam entre mim e você
quando nossos corpos se colam
são como as margens de um rio estrangulado
que une as pontas
para depois, na sequência,
bifurcar-se novamente num rumo estiolado
como a outra ilha
 
nunca te pedi mapas
nem bússolas
nem qualquer instrumento de precisão
que aponte o norte, o sul, os pontos incertos 
se te peço algumas horas é porque novembro acabou
dezembro desaba 
e sei que nada será igual
quando os minutos romperem o prazo
de ficar ali, naquele instante,
como dois bichos 
que se interpõem aos pelos do outro
num hábito tão estranho quanto este
de trocar frases entrecortadas por milênios
 
o tempo do corpo é breve
está sempre em suspensão
por isso as letras
as cartas que não obedecem ao passado, presente, futuro
não me metem medo
as cartas, como os oráculos, são eternas
 
já a ausência é um baque
porque dissolve a presença
a certeza que você existe
fantasia que devo resgatar 
como um pescador que atira linhas
incessantemente
para ver o milagre saltar com a forma breve e líquida
de tudo o que está de passagem
 
mais que em palavras
eu acredito em cenas

 

 

 

 

 

 

Mon diable


cruza o ponto em que as pernas fecham 
o côncavo disfarce do convexo
o pomo emaranhado em plumas
o bico feminino inflama 
a ponta do chicote em línguas
o gozo do sacana em chamas
o luxo é um demônio gris
j’ai toujours aimé entre toutes cette lueur perverse

 

 

 

 

 

 

O poema se chama Claudio Willer


o poema se chama Claudio Willer
e tem campos magnéticos

símbolos são constelações 
palavras
signos móveis não adaptados a nenhuma circunstância
espirais que se recolhem
quando desejo a forma perfeita e desaparecem
matéria imprecisa
cintilância galáctica

o poema se chama Claudio Willer
quando vem em ondas
com Iemanjá e o azul das dobras de seu vestido
estrelas desenhando a Ursa Maior
o grande brilho impresso sobre o tempo

o poema se chama Claudio Willer
quando a linguagem recusa o signo
explode como Lautréamont em formato de cometa
desses que passam a cada mil anos
deixando um rastro
um rastro-luz
insígnia que nenhuma semiologia mastiga
ou devora

agora os dentes da compreensão
são as engrenagens das palavras doces
das expressões que não existem
mas o poeta as visita
como o deus do vocabulário 
que liberto como um raio
eletricidade do campo semântico
aprendizagem das sutilezas
que me convidam a espiar o mundo
com outros olhos
quando o poema se chama Claudio Willer
e dele vem a pergunta da esfinge:

do que se alimenta a palavra?

 

 

 

 

 

 

Silábica

 

 

ela ave

ela voa

ela nave

ela via 

ela vulva

ela vulnerável  lia

em sânscrito: 
"a lua de magritte é uma fêmea de sílex 
que só põe ovos de noite"


na suspensão da palavra
nasce a beleza da pedra

 

 

 

 

 

 

Biscoito Fino

 

 

pegar uma palavra como lata
bater para que ganhe ritmo
cortar para que vire roda
por ao sol para que se ilumine
por na chuva para que cante
dar tempo para que enferruje
lixar para que se renove
narrar para que seja livro
quebrar para mudar a forma
mastigar para que machuque
fazer dela um carro
uma arma mortal
uma panela de cozinhar miolos
um utensílio de culturas primitivas
um verbo inquieto a cada dia
*
isso é apenas palavra
tambor de deuses malucos
xamanismo poético
passagem para mundos e fundos
de latas de biscoito fino

 

 

 

 

 

 

A narrativa pelos seus olhos

 

 

O passeio pela cidade. Você me mostrando o ponto em que Walter Hugo Khouri colocou a câmera na Praça Roosevelt para fazer Noite Vazia. A lâmina do chão, um campo aberto na horizontal, vi São Paulo em plongê pelos seus olhos numa montagem paralela.


Só você é capaz de encenar tudo novo, o zoom de volta a 1964. Do alto dos prédios o brilho das luzes, pelos seus olhos. A chuva incessante, pelos seus olhos. O footing na avenida, pelos seus olhos. Um emaranhado de folhas e roteiros.


Nunca fomos tão personagens, nunca fomos tão surrealistas, nunca inventamos tantas pontes e túneis, como quando andamos pela metrópole numa espécie de sonho em que todas as vidas se cruzam.


Guardei a fotografia em preto-e-branco. O relato luxuoso que transforma a rua num cenário de saias justas e fios elétricos. Corpos colados e diálogos que retornam pelo celular ao tempo de tomadas circulares, narrativas audiovisuais enquanto marcamos um novo encontro, embora quase tudo tenha dado errado naquele filme. 


Aqui faço um corte.


Novembro de 2014, sábado à noite, fecho seu rosto em close. Os tambaquis servidos nos bares são peixes sonoros. Uma dose de vodka com frutas vermelhas, pelos seus olhos. Na Praça Rossevelt, pelos meus olhos, o amor nunca será um contraplano.

 

 

 

 

 

 

Tudo me lembra seu cheiro

 

 

Oriente na pele

especiaria profunda

resina de veias abertas

sêmen dos homens da Terra

nota de cravo da Índia

lótus no espelho d’água

língua submersa

linguagem essencial

vara de sândalo

tubérculo

mandrágora

gosto de leite

fluxo da Via Láctea

neblina

barco que vem do leste

invadindo minha narina direita

depois a esquerda

sinapse olfativa

sinestesia poética

amor sensorial

um exercício hindu

prana y ama

a excitação e o mergulho âmbar

na calma

 

 

 

 

 

 

Delicadezas doem

 

 

Porque há canções de chegada

e canções de partida

o coração eu tomo pela mão

quebrável

 

no último beijo

transversal de línguas

poliglota

falo de amor

delicadezas doem

 

não sei se já disseram

mas você sabe matar pássaros

 

 

 

 

 

 

Meditação da Rosa

 

 

Eterna umidade láctea, sangue e líquen das veias impalpáveis, entrada e saída das lutas mitológicas, fertiliza o desejo, a criação, o parto, entre as pernas abertas de várias gerações, no campo vertiginoso do cio.

 

Senhora volátil, nuvem, ninfa, gota, flor, serpente, penetra com seus óvulos os segredos da linguagem, revela a delicadeza, a arte, o milagre que espalha o canto. Pó e ouro na rima do inconsciente, alquimia entre o almíscar e a calêndula.

 

Rosa mística da carne, nas mãos trêmulas do espírito concede-me a matéria-prima do verso, que fura os olhos do misterioso verbo astral e tinge as pétalas. Palavras de vermelho vivo.

 

 

 

 

 

 

Oração 

 

 

Água, orgasmo da terra, saliva, fluido, fluxo, poema. Sereia de prata, espelho de Oxum, a languidez de um substantivo feminino. Água, a dança da gestação. Minha atração pelo profundo que corre se não como linfa, ninfa. Mãe da umidade entre as coxas, do sexo ao mar, livrai-nos das securas sem erotismo e da ciência sem H2O. Amém.

 

 

 

 

 

 

Marítima

 

 

Saio da concha, quebro o silêncio, vou te falar das ondas. Elas têm som de blues, o cheiro de todas as espécies. A sua é Homem, desses sem idade que capturam fêmeas, golfinhos, sereias, com olhar elétrico. Eu penso em planctuns, mantras secretos, biologias marinhas que nos ligam como células. O amor neste instante é uma rede, pequenos seixos, lagostas, cardumes. Pescaria nestes olhos claros onde vejo minúsculos poemas, sílabas de língua estranha que me lambem. Lâmina prateada como o sexo de um peixe. Espada.

 

 

 

 

 

 

Sem concordância

 

 

Na noite em que li Cortázar, vi pessoas que ele embaralha como cartas: "eu viram subir a lua" ou "tu mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos rostos". Fiquei pensando nas vezes em que meu nosso vosso olhar se encontraram. O céu escuro, uma luz opalina, uma estrela como referência daquilo que fez sentido e depois se desmanchou como um meteoro. Erráticos como nuvens, nossos olhos se dispersaram num ponto, num vago ponto, onde não foi possível segurar cílios, pálpebras e pupilas alinhadas. Ah! meus afetos estrábicos.

 

Seus olhos foram para a direita, os meus para a esquerda, como uma dessas gravuras em que os personagens se deslocam para pólos diferentes. Eu tu nós vós tomaram caminhos opostos como um peixe pulando do aquário enquanto o outro fica. Reunir lembranças é então a última tarefa árdua e cheia de escamas, melindres de peixe dourado e mulher sereia, uma vontade de dormir sob uma pedra onde a memória desaparece como um monstro marinho. A solidão será sempre abissal.

 

Fico ali bem quieta com meu par de olhos sem compartilhamentos, embora seu silêncio seja ainda uma presença e bata à minha porta para chegar, talvez, um ano atrasada. Um, dois, três dias, meses inteiros. Quanto tempo levará a dissipação total dos olhares que se perderam num ponto morto? Nossos olhares ainda se encontrarão por aí quando virmos a lua? Ou vamos guardar a saudade como um guarda-chuva sem uso?

 

Chego de um conto de Cortázar como quem abre a porta e não tem para quem contar que "tu eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos rostos". Imaginando os múltiplos pronomes, desembarco numa transversal do tempo com meus eus todos sozinhos. Teus seus vossos pronomes foram engolidos pela Via Láctea numa linguagem sem concordância. 

 

 

 
 
dezembro, 2014
 
 

 

 
Célia Musilli. Jornalista, cronista e poeta, mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp. Publicou Sensível Desafio (Atrito Arte, 2006) e Todas as Mulheres em Mim (Atrito Arte/Editora Kan, 2010), além de ter contos e poemas nas seguintes coletâneas e antologias: O Fio de Ariadne (Atrito Arte, 2014); 101 Poetas Paranaenses (Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Org. Ademir Demarchi); É Duro Ser Cabra na Etiópia (Editora Agir, 2013. Org. Maitê Proença). Tem ensaios, crônicas, contos e poemas publicados nas revistas literárias Agulha, Germina, Polichinello, Zunái, Mallarmargens, Celuzlose e Diversos e Afins. Escreve crônicas aos domingos na Folha de Londrina e é colaboradora do site Carta Campinas. Gosta de livros, gente, gatos, céu estrelado, verão e jardins, não necessariamente nessa ordem.
 
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