Quer pela originalidade, miscigenação e atmosfera conflitual, O Ritual dos Chrysântemos evidencia alguns dos dramas trágicos pós-modernos

 

 

         O romance O Ritual dos Chrysântemos — de Celso Kallarrari, professor universitário, pesquisador e sacerdote ortodoxo — lançado em 2013, pela editora Reflexão, constrói-se, numa atmosfera de mistério, tragédia e morte, onde o que prevalece é a tentativa de o leitor crítico, treinado, ir desvendando o desfecho desta narrativa histórica, regionalista, ficcional e policial, que se revela, no momento, como um espaço mentalmente possível de poder dizer e de poder ouvir. O próprio narrador, respaldado na metalinguagem do autor, define sua tipologia textual como uma "quase psicografia de Eurico", permitindo a presença de outros gêneros e vozes textuais, que dialogam entre si. Na trajetória literária do autor, este livro é seu romance de estreia, precedido por três livros de poemas: A Porta Remenda (2003), As Últimas Horas (2009) e As Últimas Palavras (2013).

Na verdade, o caráter plural de O Ritual dos Chrysântemos deixa-nos, a princípio, em dúvidas, pois, a partir das primeiras páginas — mescladas pela introdução de textos históricos com a história familiar de Eurico —, não se sabe, a princípio, se se trata de um romance memorialista ou autobiográfico, introspectivo ou, essencialmente, moderno, híbrido? De fato, o próprio narrador, respaldado na metalinguagem do autor, define sua tipologia textual como uma quase psicografia de Eurico, permitindo a presença de outros gêneros e vozes textuais, que dialogam entre si. Num primeiro momento, o narrador nos informa que: "'Euricus, entre o épico e o moderno, entre o primitivo e o civilizado, apresenta-se um jeito novo de ser' (p. 30). Num segundo momento, 'Eu, narrador e Euliricus, testemunha quase ocular daqueles acontecimentos que anotei cuidadosamente'" (grifos nossos, p. 31). Ou seja, o romance é multifacetado, polifônico, de diversos gêneros e vozes, imbricado de características de outros estilos é generosamente flexível à pluralidade de culturas, etnias que arquitetam a composição da obra e dos personagens complexos.

Nesse sentido, O Ritual dos Chrysântemos quebra, sobretudo, o confronto entre o épico e o romance, entre a poesia e a prosa, pois nele há convivência harmônica de traços romanescos e líricos, uma vez que o autor faz com maestria o entrecruzamento entre poesia e prosa, a fim de apresentar, documentalmente, a realidade estética de seu romance ou poemas em prosa:

 

 

Outrora, Ponta Porã, tinha todos esses rios e era maior que Portugal, do tamanho do pantanal, pois

 

Nestas terras, em tempo de guerra,

O Lança do Império, homem de coragem e bravura

E Antônio João, figura destemida da colônia de Dourados, derramaram sangue, sangue das blusas cor de carmim, de um povo sofrido, heroico e amante da pátria.

Deixaram, pois, seu sangue, nestes campos de sangue (KALLARRARI, p. 24).

 

 

Ao recorrer a História, percebemos evidências de uma descrição histórica precisa, numa linguagem madura, culta, destacando tanto a imigração sírio-libanesa, dentre outras, do final do século XIX e início do século XX, quanto alguns acontecimentos da política brasileira contemporânea. Ao fazer uso do gênero épico, busca representar os acontecimentos históricos com certa fidelidade, servindo como pano de fundo ao desenrolar da trama narrativa e do drama trágico de amor entre Eurico e Poliana que, somente após a morte desses dois personagens principais, tornam-se "deuses e/ou heróis", atribuindo-lhes, no desfecho do livro, um caráter quase divino (Rupave e Sipave, da mitologia guarani) — uma espécie de mediadores entre a esfera celeste e terrena, entre os deuses e os índios, vítimas das atrocidades humanas.

 

 

Euricus não morreu.

Ele não está morto,

Ele não se descaracterizou

Apenas ausentou-se por instantes.

Euricus não morreu, subsiste, virtualmente.

Ele somente ocupa o lugar e o espaço de todos nós.

Ele é o autor da sua própria morte,

do seu próprio corpus, do seu próprio textus.

 

Somos muitos Euricus,

iguais em tudo na vida,

na mesma morte morrida,

na mesma vida vivida, 

na mesma amálgama crescidos

sobre a mesma pedra, amortecidos,

e iguais também no mesmo sangue

porque somos essa mistura de cores:

cores de índio, branco e negro (KALLARRARI, 2013, p. 246).

 

No romance, prevalece a tentativa de voltar ao passado, isto é, voltar ao tempo e ao espaço de antes, pois os dias atuais tem promovido a desunião, a ruptura com o outro, a "desterritorização" que, aliás, é um estado contínuo de Eurico, provocado pela desilusão aos ideais pós-modernos, de globalização, terrorismo e neocapitalismo desacerbado. Para tanto, o autor utiliza-se da metáfora "subir a montanha", uma espécie de tentativa de absolutização dos seus sentimentos, desejo interior de Eurico que o acompanha desde a sua infância:

 

 

Na época em que eram ainda adolescentes na cidadezinha, haviam gravado seus nomes num pé pequeno de erva-mate que ficava quase no centro do morro. Daquele pequeno morro da princesinha dos ervais, só conseguiam avistar, à esquerda, alguns casebres e algumas construções antigas. [...] Naqueles instantes, naqueles desvarios, naquelas loucuras, eram felizes. Depois disso, pararam à frente do paredão do edifício Gazeta. Ficaram, por alguns minutos ali, distraindo-se, sem nenhum pensamento, com a noite. Nesse momento, Eurico sugeriu subir ao terraço iluminado do Gazeta (KALLARRARI, p. 170 e 153).

        

 

E ainda:

 

Assim, os homens, de fato, só poderão subir o morro da sua própria existência e alcançar, um dia, perpetuo mobile, a verdade, o bem e a justiça quando usar dos seus próprios meios, se entenderem que navigare necesse est sicut vivere est necesse. Eurico sentia-se um homo mobilis, um solitário, atento, suficientemente, ao seu interlocutor, mas isolado do mundo. [...]  Ele agora deveria escalar todas as alturas no intuito de atingir a morada celeste e, para tal propósito, deveria, definitivamente, ali morrer para se encontrar consigo mesmo, para se encontrar, para sempre, com Poliana. "Era preciso, pois, subir, subir, subir cada vez mais alto, e ficar entre o Nepal e o Tibet. Atingir, enfim, a morada celeste", dizia Eurico em pensamento (KALLARRARI, p. 179-71).

 

Frente aos dilemas culturais raciais e religiosos — temática que perpassa os conflitos familiares, desde o início do século XX, com a chegada dos imigrantes orientais e, consequentemente, a mistura de etnia árabe e credo oriental da família Ibrahim com uma índia guarani (caso atípico no Brasil) e, além disso, a mistura da religião — novos conflitos vão se instaurando no relacionamento entre os pais (o pai árabe e a mãe índia-guarani) de Eurico (mestiço: descendência árabe e indígena) e, respectivamente no seu relacionamento com Poliana (descendência japonesa e paraguaia), durante a década de 80, 90 e início do séc. XXI. Em relação à mistura de etnias dos pais de Eurico, observe o excerto abaixo:

 

Nessa época, Euhana, quando ambulava e perambulava com o pai, vendendo panos, roupas e bugigangas, pelas ruas, vilarejos e aldeias indígenas, desentoou a solidão, apaixonando-se por uma catita graciosa, uma índia guarani, Porãsy. A princípio, e, em nome da tradição oriental, Euhana procurou resistir, debalde, aquela cunhã-taí, indiazinha paraguaia, irresistível, de pele morena feito jambo, cabelos lisos, negros e olhos amendoados, filha de dona Juçara e de seus antepassados indígenas, mas se perdeu, no mundo ínfimo dela, na sua cultura, na sua tradição, na sua pele de jambo (KALLARRARI, 2013, p. 129).

 

Por este ângulo, o romance O Ritual dos Chrysântemos representa uma mescla de tradições distintas, tanto culturais quanto religiosas (oriental e ocidental), uma mistura, uma amálgama entre a mitologia regionalista e a mimesis (drama, enquanto imitação de uma ação); entre a imaginação (literatura) e a realidade (História), entre o passado traumático do índio e seu processo de "desindianização", desintegração e reintegração e, atualmente, exterminação diante da sociedade moderna, consequência do êxodo às periferias das cidades e a vida sem trabalho e sem sentido, resultado do grande número de suicídios e homicídios. Eurico — assim como a maioria dos índios guarani e uma imensidão de pessoas marginalizadas — encontra-se, no contexto hodierno, "deslocado", sendo obrigado não só a usar roupas de brancos, mas trocar de nome e até mesmo adquirir a religião dos brancos. O desenvolvimento das cidades e o avanço das metrópoles — freando e impedindo o crescimento das aldeias guarani Tekoa Pyau e Jaraguá-Itú, em São Paulo e Jaguaripê, nos limites de Ponta Porã, descrita no romance — faz com que os índios (e boa parte da população) se sintam periféricos, isolados, ilhados pela modernidade, num mundo sem "matas" e sem "bicho".

A proposta subjacente no livro não só é uma tentativa de retorno a uma época anterior, utópica, perpassada de sonhos mentais, contra o imediatismo, materialismo e do preconceito linguístico, étnico e religioso, mas traz também como pano de fundo, a temática da doença (esquizofrenia), tão comum e não tão presente e pouco perceptível em nossa sociedade. Entram, pois, em conflito, nesse romance, as antigas convicções do pensamento cartesiano e racionalista, em detrimento ao discurso do sentimento, da emoção, da loucura e da alienação, formas legítimas de estar no mundo caótico em que vivemos não estando nele e, ao mesmo tempo, fazendo parte dele. À luz da filosofia da literatura, o romance em questão levanta vários questionamentos que desafiaram o projeto dos novos tempos, das novas tecnologias, do imediatismo, da fluidez líquida, temporal, abrindo espaço para a crítica ao extermínio (que continua na indiferença, no descaso, na desapropriação, no não reconhecimento dos seus direitos, etc.) moderno, tanto de índios quanto da natureza, em contraposição a aceleração caótica do mundo e a contingência da vida. Ao se encarregarem de uma disposição existencial mais lúgubre, suicida para seus personagens, Kallarrari, aberto à imaginação criativa, abre caminho para uma análise comportamental do ser humano atual, que se encontra cada vez mais doente, individualista, preconceituoso e "deslocado". Daí o romance poder dialogar com Jung, pois com o surgimento da psicanálise do século XXI, amparada nos estudos desse autor — vertente que divergia da psicanálise Freudiana porque Jung, diferentemente de Freud, não reduzia os males psíquicos à sexualidade. A Teoria psicanalítica de Jung visa, portanto, uma terapia através da individuação, isto é, um processo de autoconhecimento em que o paciente integra as facetas de sua psique (todos nós temos muitas) para se tornar um indivíduo completo.

 

         Kallarrari busca — a partir de uma linguagem, arquiteticamente, extensa, elegante e sedutora — fazer com que o leitor se debruce no livro e saia dele somente ao desfecho da narrativa, pois, à medida que o narrador-personagem inominável vai apresentando a história de Eurico — isto é, o que, supostamente, sabe acerca dele, com base nas informações colhidas das parcas memórias que o próprio Eurico lhe contou e daquilo que, segundo ele, presenciou —, o leitor é incentivado por textos e intertextos, no espaço do tempo, espaço e História, a construir, juntamente, com o autor, o desfecho da obra. 

         A narrativa se desenvolve sem uma ordem contínua, sem linearidade de evolução, mas com saltos descontínuos, cortes, vaivéns, retrospectivas e antecipações e protelamentos da sequência lógica da história. Na verdade, Kallarrari escreve, numa perspectiva de desconstrução da tradição, às temáticas do "deslocamento", do "sexo", do "preconceito religioso e cultural", seus valores, concepções e referências em relação ao mundo, a exemplo do personagem, apropriado pelo narrador "quase psicográfico", que expõe os impulsos violentos de Eurico, bem como suas alucinações e traumas que o acompanham desde a infância, proporcionando ao leitor um ambiente propício de interação com a obra.   

Kallarrari discute, metalinguisticamente, a partir do seu texto, a própria espécie narrativa, o fazimento do próprio textus, do qual se utiliza. O personagem-narrador, na verdade, busca enganar o leitor, trapacear com ele, tentando levá-lo ao que "outros", supostamente, "dizem" sobre o episódio da morte de Poliana e seu possível assassinato ou suicídio e, daí, levantar hipóteses, sem, contudo, delas opinar. Desse modo, em alguns momentos, quando o narrador não assume a história, joga o tempo todo com o leitor, fazendo com que a percepção dos acontecimentos seja condicionada pelo mistério, pela dúvida, pela incerteza.

 

Depois de algumas semanas, dizem que o delegado Mckinleu teve de libertar Eurico da prisão preventiva por conta do resultado do laudo médico, realizado nele, o principal acusado (KALLARRARI, p. 199).

 

Dizem, eu não pude, sinceramente, ver; e não se sabe, ao certo, que — naquela noite, véspera do último Natal de Poliana, no momento em que comiam da última ceia —, Eurico se convenceu que Poliana estava grávida de um possível envolvimento com alguém em Campo Grande (KALLARRARI, p. 229).

 

Dizem que, antes de Poliana vir, pela penúltima vez, ao encontro de Eurico, a São Paulo, quando as suas emoções se afloravam, Alfeu aproximou-se, definitivamente, de Poliana, tornando-lhe íntimo, muito afeito, um confidente, no momento em que ela, por conta das incertezas, dos problemas familiares e pessoais, acabou revelando a ele algumas coisas, algumas palavras, alguns segredos que eram, até aquele momento, só dela e de Eurico (grifos nossos, KALLARRARI, p. 231).

 

O autor monta sua narrativa valendo-se, intertextualmente, de pequenos discursos de outros autores, tais como Carlos Drummond de Andrade, Rousseau e menções a um livro fictício Erasmo de Roterdã. Além de buscar discutir isso com o leitor, e ir fornecendo, aos poucos, as pistas, as chaves para o desenvolvimento do mistério da morte de Poliana e, consequentemente, das outras seis mortas, possibilita ao leitor crítico,  não tão somente, ler as entrelinhas, as lacunas deixadas pelo autor, mas também investir num diálogo promissor com o leitor, não se sentindo nem mais nem menos que este, a fim de estabelecer conexões, combinações possíveis para o desvendamento do "textos".  Na verdade, o autor constrói o leitor desconstruindo o "textus" ou desconstrói as expectativas do leitor, construindo o "textus", jogando, tratando a escritura e seu processo como um jogo, uma peça estratégica capaz de se materializar com um dos personagens. Ao adiar o desfecho com as divagações mentais de e sobre Eurico e de um possível crime, o autor constrói, através do narrador, a vontade, o desejo e uma cumplicidade com o leitor, e este de chegar ao final, enquanto aquele abusa do seu poder de "possuir e fazer parar" os fios condutores da narrativa.

De certo modo, poderíamos dizer que, à medida que Kallarrari vai compondo sua tessitura textual, descreve também esse labor, a feitura do próprio texto com o auxílio de uma diversidade de outros gêneros textuais (jornalístico, poético, receituário, laudo médico, faixas, anúncios de murais, título e autor de livro, homenagem pos-mortem e a imagem mental das meninas de guarus) que servem de alicerce e de dialogismo, cuja narrativa se apropria para dar forma ao seu texto ou povoá-lo de outros gêneros e vozes, a fim de melhor reproduzir a sua mensagem e sentidos literários, a partir dos recursos da metalinguagem. Desse modo, evidencia-se uma mistura não só de etnias, mas também de línguas, linguagem (português, espanhol, guarani e latim), apresentando uma espécie de língua literária fronteiriça do Brasil/Paraguai, com base na inovação e pesquisa linguística.

Nesse sentido, o narrador não se identifica com um narrador absoluto, mas como "ausente" em algumas situações. Por essa razão, ele, na conversa com o leitor, dá palpite, emite opinião, omite informações, dá sugestões e apresenta o que os "outros" (inomináveis) "dizem" na tentativa de subverter, convencer e surpreender o leitor. Todavia, mostra que não sabe tudo, que não tem todas as verdades, porque "a única verdade, a única verdade está na literatura, pois scriptura scripturam interpretatur. Não, não. A verdade não está nos best-sellers efêmeros, mercantis e massificadores" (KALLARRARI, p. 242), uma vez que o texto, enquanto jogo, trapaça, está nas mãos do autor e leitor, figuras imprescindíveis no processo de composição e recomposição da obra. O primeiro tenta dirigir o segundo e, dependendo deste — a partir do jogo textual — poderá sair vencido ou vencedor, principalmente porque "O autor não é mais que a testemunha, o fiador da própria falta na obra em que foi jogado; e o leitor não pode deixar de soletar o testemunho, não pode, por sua vez, deixar de transformar-se em fiador do próprio inexausto ato de jogar de não se ser suficiente" (AGAMBEN, 2007, p. 63).

 

De acordo com Agamben (2007), vivemos, atualmente, a impossibilidade de usar certas coisas ou de viver certos costumes que estão defasados, porque "algumas coisas" e "certas práticas" já não comportam mais no mundo moderno e, por isso, pode se tornar ou se deslocar para o museu.  Nesse sentido, segundo este autor, tudo hoje pode tornar-se Museu, isto é, uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência, porque

 

Museu não designa, nesse caso, um lugar ou espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. O Museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza, declaradas por isso mesmo patrimônio da humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural), e até mesmo com um grupo de indivíduos (enquanto representa uma forma de vida que desapareceu) (p. 73).

 

Talvez, seja essa a razão da necessidade que Eurico tem de "subir à Montanha", à Montanha do medo, da dor, do deslocamento, da morte e tentar, ao menos, vencê-la porque, segundo o narrador, "ninguém pode ser, exclusivamente, dono da verdade ou adquiri-la em sua plenitude e que ela, muitas vezes, se impõe, em nossas vidas, como uma imensa montanha" (p. 148). Do excerto abaixo, podemos extrair que muitos, hoje em dia, não conseguem, por si só, sair do quisto em que se encontram, das verdades transitórias e supérfluas e sobem tanto que podem cair,  precipitar-se — assim como muitos Euricos (muitos índios) — perdidos e vítimas no mar da indiferença, da intolerância e do individualismo exacerbados, buscam subir a montanha e dela se lançar ao precipício.

 

Esses sentimentos instauravam uma necessidade intrínseca ao desejo de Eurico. Então, ele precisava subir, subir cada vez mais alto à grande montanha. Depois daquela tarde, quando a noite desvanecia, naquela aurora matutina, que se ensolarava, polidamente, de pardais gorjeantes, quando quase todos e quase tudo estavam dormindo, Eurico chegou, enfim, ao cume da sua Grande Montanha. E acreditava que aquela luz amarelada do alvorecer, divina e deslumbrante, cobriria, com as múltiplas cores, seu mundo cinzento, suas imperfeições, seu semblante compungido, seus sentidos pêsames (KALLARRARI, 2013, p. 252).

 

Quer pela originalidade, influência, miscigenação e atmosfera conflitual, O Ritual dos Chrysântemos espelha esse drama pós-moderno das etnias que se aproximam, do deslocamento humano, das doenças modernas, da necessidade de absolutização. Nesse ambiente de metrópoles e megalópoles, desfiguração do homem do campo e quisto pós-moderno, não se torna difícil perceber, nesse romance, os ecos ressoantes dos romances O Guarani e Sagarana. Nestes dois, entretanto, as fronteiras entre o campo e a cidade eram mais perceptíveis, se estabeleciam, rigorosamente, entre rural e urbano. NO Ritual dos Chrysântemos, as fronteiras geográficas desapareceram, se mesclaram nas zonas periféricas dos grandes centros, oportunizando uma nova configuração e reconfiguração, um amálgama brasileiro, tornando-se trechos de um continuum, em contraposição à falsa extensão uniforme, pois não comunga da linguagem unidimensional. Porque mesmo perdendo algo de alguns aspectos importantes de sua singularidade, de sua diferença, a cultura indígena ainda resiste, ou seja, nada contra a correnteza pós-moderna, globalizada.

 

O romance O Guarani está longe, física, moral e psicologicamente, de corresponder à dura realidade etnográfica dos índios brasileiros daquele contexto de domínio do colonizador e deste contexto hodierno, marcados pelo isolamento dos índios, que se encontram recuados, mergulhados e ilhados pelas megalópoles.  Antagonicamente às angústias de Peri e a infeliz decisão de se armar, belicosamente, de coragem e heroísmo, contra o seu próprio povo — Eurico, em O Ritual dos Chrysântemos, se aproxima dos índios guarani, da sua origem, dos seus conflitos, da sua realidade. Ele, mesmo, enquanto um herói fracassado, volta — diferentemente de Peri — às suas origens; não foge da cultura e dos costumes do seu povo, mas tenta subir, subir, subir à "montanha" pós-moderna do medo, da insegurança, que a modernidade impõe, não somente aos índios, mas também à maioria dos brancos. Por isso, o autor, em seu processo criativo, pinta um quadro mais real, pintado com o óleo etnográfico dos guarani. Mostra-nos que o suicídio é comum, tanto entre aqueles (Jandira, ex-cacique e Eurico) que buscam, sem êxito, aculturar-se, integrar-se, costumeiramente, à cultura tanto dos índios, quanto dos próprios brancos (Poliana, poli + ana: uma variedade de anas), que — ainda não integrados à sociedade atual — se multifacetam nas suas individualidades, quanto da presença dos "eus" (egos), presentes nos nominativos poéticos "Euricos" —

 

Alfeu

Rafaeu,

Mckinleu,

Euhana, Celeuma,

Eurídice, Júlia Amadeu,

Massareuki, Elizeu, Idomeu,

Eurídenes, Euzicléia, Amadeu,

Euvira, Eudes, Euschwitz, Zaqueu,

Euristoclides Medeiros, Eurásia, Romeu,

Eustáquio, Eulália, Eucana, Eufrânio, Micheu

Keuwarau, Emmanoeu, Euriberto, Eugênia, Euzébio,

Euclides da Cunha, Eumereciana, Bartolomeu e Irineu.

                                   (KALLARRARI, p. 246) —

 

que sobem também à montanha e dela se precipitam todos os dias, porque não se identificaram com essa civilização dominada pela máquina, pelo individualismo, indiferentismo e intolerância.

 

Eurico — índio e mestiço — atravessou as duas fronteiras: da aldeia e da megalópole, do rural e do urbano; os dois mundos, do físico e metafísico, as fronteiras da vida e morte. Em O Ritual dos Chrysântemos, essas fronteiras étnicas, culturais, religiosas, políticas são expostas como ponto de encontro e conflitos, de preconceitos de intolerância, refletindo alguns comportamentos e moralidades presentes em nossa sociedade; às vezes, contrárias, outras, alheias à tradição brasileira. Eis aqui um excelente livro, história  misturada à ficção, miscigenada de etnias e cores humanas.

 

 

Referências

 

KALLARRARI, Celso. O Ritual dos Chrysântemos. São Paulo: Reflexão, 2013.

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.

 

 

 

 

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O livro: Celso Kallarrari. O Ritual dos Chrysântemos

São Paulo: Reflexão, 2013, 280 págs., R$ 35,00

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agosto, 2014
 

 

 

 
 
Valci Vieira dos Santos. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense — UFF, mestre em Literatura de Língua Portuguesa pela PUC-Minas, advogado e pedagogo. Pesquisador da linha de Pesquisa Literatura: Crítica, memória, cultura e sociedade. Mais: clique aqui.