No livro Os dois corpos do rei, o historiador Ernst Kantorowicz analisa a perspectiva, largamente difundida na Inglaterra do século XVI, de que o soberano possuía tanto um corpo físico, basicamente igual ao de qualquer pessoa, com fraquezas e limitações, quanto um corpo místico, que representava em si o sentido último do reino que governava. Quando o rei morria, quem partia não era o Rei em si, o Rei com R maiúsculo, mas o indivíduo que estava, naquele momento, imbuído de seus atributos. Seu sucessor herdaria, para além dos privilégios e responsabilidades burocráticas e de corte, sobretudo seu corpo místico. Rei morto, Rei posto. O Rei está morto, vida longa ao Rei. 

Esses "dois corpos do rei" podem ser interpretados artisticamente de diferentes formas. Por exemplo: na adaptação cinematográfica da peça Henrique V, de Shakespeare, dirigida por Laurence Olivier na década de 1950, o célebre monólogo do protagonista é uma apologia a instituição da monarquia, exaltando o rei como uma figura, por definição, acima do homem comum. O corpo místico é o foco. Na versão de 1989, dirigida por Kenneth Branagh, a mesma cena é usada para humanizar Henrique V, colocando em perspectiva o papel social que lhe coube desempenhar, em função das circunstâncias. O corpo real, de carne e osso, domina. As mesmas palavras, interpretações diferentes. O mesmo personagem, personagens diferentes.   

Henrique V foi uma figura que existiu no tempo e no espaço; mas Shakespeare o pôs numa outra esfera quando criou o personagem Henrique V, colocando-o na dimensão da alta literatura, tornando-o múltiplo, aristotelicamente salvaguardando-o da pressuposta objetividade do relato histórico, possibilitando que Olivier e Branagh o interpretassem de diferentes formas, sem deixar de ser o Henrique V de Shakespeare e mantendo o eco do homem que nasceu em 16 de setembro de 1386, na Inglaterra, e morreu em 31 de agosto de 1422, na França.  

Na novela O retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém, de 2014, o escritor Lima Trindade propõe uma interessante visão acerca dos dois corpos do rei Dom Carlos I de Portugal. Lima Trindade é um dos mais interessantes prosadores da nova geração brasileira, tendo lançado a novela Supermercado da solidão (LGE, 2005), os volumes de contos Todo sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005) e Corações, Blues e Serpentinas (Arte Pau Brasil, 2007), figurou em diversas antologias de contos e trabalha atualmente no romance A cidade e os nomes, premiado pelo Edital para Criação Literária da SECULT/BA (2012). Além de consistente atuação literária, Lima Trindade também é editor da revista eletrônica Verbo21, uma das mais conceituadas da internet brasileira com foco em literatura.

O retrato recebeu um belo trabalho gráfico da editora P55. Na forma de envelope (o livro faz parte da coleção Cartas Bahianas), trata-se de uma peculiar e elegante edição de bolso, contendo belas ilustrações e fotos. Em suas 46 páginas, Lima Trindade transita por diversos gêneros. O livro começa no melhor estilo de Henry James, como propõe seu subtítulo, partindo de uma divertida narrativa de viagem que subitamente se transforma em um mistério com ares sobrenaturais, literalmente uma "volta do parafuso". Em seguida, torna-se um romance histórico, amparado em apurada pesquisa, que habilmente o autor vai transformando em uma história de amor proibido. Todas essas mudanças de eixo narrativo são realizadas de maneira suave e convincente, embora eu tenha sentido falta de um maior desenvolvimento do "mistério" da primeira parte, que se revela, aparentemente, fruto de mera coincidência. Realmente, um pouco de Henry James não faz mal a ninguém e, nesse caso em particular, eu queria mais. 

Estando claro o sentido do subtítulo, de quem é "o retrato" do título? Na verdade, trata-se de um retrato que não houve. O retrato de uma pessoa que, no universo de ficção proposto pelo autor, ficou escondido pela história.

A novela é composta por duas narrativas em primeira pessoa que se mesclam sem se misturar. Os dois narradores possuem o mesmo nome: António Dias de Oliveira. O primeiro, que traça a primeira camada narrativa, é um escritor contemporâneo, que faz uma viagem turística a Portugal com seu companheiro, Simão. O segundo António Dias de Oliveira foi um empregado no Palácio de Verão da Família Real Portuguesa, falecido em 12 de agosto de 1911. A visão do túmulo de seu homônimo no dia 12 de agosto de 2011 fez com que o António contemporâneo buscasse informações sobre essa obscura figura do passado.

Descobre que se tratou de um jovem sensível e letrado que manteve uma longeva relação amorosa com Dom Carlos I, um rei conhecido por sua inteligência, interesse pelas artes, ciências e por sua grande capacidade diplomática. As sequências onde Lima Trindade desenvolve o processo de sedução do grande rei ao jovem plebeu são sutis e, sendo narradas do ponto de vista de António, plenas de inocência. Compartilhamos com António as dúvidas sobre os reais sentimentos do monarca, se ele foi apenas mais um seduzido de uma longa lista ou se Carlos I de fato lhe tinha afeto, um afeto que socialmente não poderia ser demonstrado ou revelado, jamais fica claro. Essa incerteza enriquece a narrativa, que do contrário poderia sucumbir ao sentimentalismo barato. Mas, longe disso, Lima teve a habilidade de mostrar que ao mesmo tempo em que Carlos I era um homem pleno de desejos era também um rei, um rei enfrentando um momento de crise de Estado, sobrando-lhe pouquíssimo tempo para sua vida pessoal. Essa dubiedade o enriquece enquanto personagem, tornando a angustia de António mais real. Tornando pungente seu impossível desejo de aparecer em um retrato tirado pelo rei.      

Em determinado momento da narrativa, António desabafa que "Nunca ninguém fez meu retrato. El-Rei tinha uma máquina fotográfica. No ano passado, fotografou os filhos. Bem que poderia me fotografar um dia" (p. 23). Mas essa foto se revelaria impossível. António estava condenado a ficar nas sombras.

Ficou? Aparentemente não. Carlos I foi assassinado por simpatizantes da República no dia 1º de fevereiro de 1908. Seu amante, inconsolado, escreveu que "morreu aquele de quem só tive o exemplo da coragem e do amor". Mas como sabemos que escreveu? De acordo com a narrativa, o António contemporâneo encontrou sua história em um blog obscuro chamado apelativamente de "Segredos de Alcova". Como os autores do blog tiveram acesso a tais informações? Simplesmente inventaram? Parece pouco provável. O texto em primeira pessoa do António do passado, embora tenha uma ou outra expressão arcaica, é escrito em português brasileiro e moderno, dando a entender que se trata da atualização de um documento de época. Considerando todas essas informações, é possível que o amante do rei assassinado, sendo um jovem letrado e culto, apreciador de literatura, tenha decidido exorcizar suas angústias escrevendo sua história secreta em um diário, como era comum se fazer no século XIX e início do XX, antes da cultura da exposição extrema que vivemos hoje.

Esse diário, depois de sua morte, pode ter sido incorporado ao acervo de algum arquivo, em função do fato de pertencer a alguém próximo da Corte. Tempos depois, eventualmente, foi encontrado por um historiador acadêmico que incluiu a descoberta em alguma nota de rodapé de seu trabalho científico, na condição de curiosidade acerca das práticas eróticas dos monarcas portugueses. É possível ainda que o detalhe tenha chamado atenção de neófitos, certamente brasileiros, que adaptaram as informações originais e as divulgaram para o grande público no blog de fofocas históricas. Surge aqui a terceira camada narrativa. A primeira é a do António contemporâneo que lê num blog, que é a segunda camada narrativa, a história do outro António, sendo que o texto do blog foi inspirado em um diário antigo. Um manuscrito, naturalmente, diria Umberto Eco. Parece crível, mas, reforço, sou eu refletindo a partir das propostas de Lima Trindade. Apenas isso.

Na verdade, é preferível que o mistério continue. Explicar demais pode tirar o encanto da estória, sem H. Afinal, Henry James foi mestre em instigar nossa imaginação com mistérios que encantam mais pela sugestão do que pelo explícito. Lima Trindade soube fazer sua parte. Seu O retrato é um livro sobre múltiplos corpos e múltiplos pontos de vista, que podem ser históricos ou ficcionais (como o autor faz questão de deixar claro ao final do volume). Dois corpos do Rei, dois corpos de dois Antónios diferentes, mas curiosamente próximos, ou aproximados, na vida e na morte.

 

 
 

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O livro: Lima Trindade. O retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém.

Salvador: P55 Edições, 2014.

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agosto, 2014
 

 

 

 
Ademir Luiz é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), doutor em História e pós-doutor em Poéticas Visuais e Processos de Criação.