Primeira

 

Borda começa pelas beiradas. Como o mingau da vingança, aquele que se come devagar e frio. De início, os poemas surgem como quadros que se poderia pendurar nas paredes. São fotografias feitas de imagens do dia a dia em cores verdadeiras. Não há efeitos especiais: "traçado / pelo pincel do vento / o cinza prata denso / da nuvem / natureza viva". Páginas depois é que esses retratos sugerem enigmas, como em um jogo de esconde-esconde: "de que me vale / engrossar a pele / e a carne / se o que me corta vem de dentro?". Fotografia ou espelho, o mesmo embaraço. Uma poesia inconformada com a passagem do tempo, que a poeta, insolente, detém em seus versos, seja pelo resgate da memória familiar, pelo desprezo à subserviência da ancestralidade indígena ou pela lembrança de amores levados a nocaute: "Natal inaugurou-me / décadas de rejeição".

 

 

Segunda

 

Toda mulher dói. Há versos neste tear que foram bordados com fiapos da dor de todas as mulheres que sabem enfrentá-la. Não se trata de poesia feminina, no sentido pejorativo que alguns críticos literários costumam atribuir à poesia escrita por seres do "sexo frágil". São poemas valentes, que transmitem a força de Eva, a mais débil de nós, no desmoronamento do paraíso. Com humor cáustico, a poeta Norma chama a atenção para temas complexos como a relação mãe/filhos — "na próxima maternidade juro que perco o juízo / e trato de parir um tamborim" —, a prostituição, que em contraponto à repressão sexual, ganha cores mais acesas — "não fosse esse péssimo hábito / (...) eu bem que queria / ser mulher da vida" —, os amores reinventados — "nunca tocam minha pele febril / tantos cuidados, assepsia / e eu à espera de arranhões", e o próprio fato de ser mulher (seu assunto mais recorrente): "o corte no clitóris / sangue na terra / na cama / preço pago / pela honra dos homens".

 

 

Terceira

 

Esta coleção de poemas é uma sucessão vertiginosa de ações, sensações e emoções, encadeadas de maneira aparentemente leve. Poesia feita de puro cotidiano e delicadezas, mesmo quando se mostra comprometida e indignada com a realidade social. Capaz de pegar o leitor pela mão, sem pressa, e deixá-lo à borda de um abismo, em que ele mergulha, enfeitiçado pelos mistérios do espanto. O óbvio revelado com certa crueldade: "minha mãe foi pega no laço / por precaução perambulo nua". Poemas que são ovinhos de Colombo: "tatuou um gato preto / sobre o nome do amor / com gatos o lance é outro / amor eterno é para cães". Mais um belo feito da Patuá, cujos amuletos (ou publicações), rapidamente esgotados, desafiam a lógica do mercado editorial brasileiro, orientada — segundo as estatísticas oficiais — por parcos leitores de poesia: um livro onde toda mulher se reconhece. E todo homem aprende.

  

 

 

Belo Horizonte, 18 de outubro de 2014.

 

 

 

 

[Posfácio do livro Borda, de Norma de Souza Lopes]

 

 

 

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O livro: Norma de Souza Lopes. Borda. São Paulo: Patuá, 2014.
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dezembro, 2014
 

 

 

 
 
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