Perdemos os mitos, mas mitos não desaparecem, eles estão em contínua transformação, assim os jovens os atuam através de códigos verbais, escritos e imagéticos. Recriam-se os instrumentos e as químicas, o ritual de passagem é uma cancela obrigatória na evolução do sujeito. Quantas vezes necessitamos retornar das cinzas para vasculhar o silêncio, os perdidos que permaneceram na invisibilidade. Alguns necessitam de artifícios químicos, outros do exercício da arte, uma delas a literatura, para rastelar os mistérios do sensível. E o fazer literário, para mim, passa obrigatoriamente pela experiência mí(s)tica das cartografias atemporais dos arquivos e das sinapses neuronais. Por isso literatura não pode ser ecolalia, repetição infinita do mesmo, mas um desassossego pessoal que a todo o momento deseja destramar qualquer textura que carregue um traço que seja da mesmice dos discursos lineares da história, da sociologia ou da psicologia.

 

Logicamente a literatura da qual falo tocará territórios absolutamente individuais e que nos levará a mergulhar dentro de uma cartografia atemporal do Eu. Com certeza, encontraremos estranheza e mistério em tal obra. Ao pensarmos literatura como instrumento de mobilização e mudanças possíveis no leitor, estamos propondo uma parceria ritualística ativa, uma viagem transformadora, uma morte simbólica que permita ao sujeito retornar das cinzas para sonhar com silêncios, como nos aponta o título do livro de Marcelo Ariel. Atingido esse ponto, não conseguiremos separar o autor de sua obra. Podemos verificar isso no momento atual em uma poética tão sutil quanto a de Manoel de Barros ou numa prosa, se me permite, mí(s)tica-barroca, como a do Marcelo Ariel.

 

Na obra não há separações acadêmicas quanto à forma, mesmo o autor não é ele, mas uma turgescência surgida de invisibilidades quase canônicas de n autores e atores que passaram por sua vida e precisam ressuscitar como outros modos de silêncio. E assim o autor recria ‘Beasts of the Southern Wild’, outra cidade-símile a Serra manda lembranças para o mar, um aleijado em uma rua alagada canta sorrindo com as muletas dentro da água: ‘Onda, olha a Onda| Onda, olha a onda...’ em volta dele, centenas de cadáveres vivos no supermercado, um poema termina sem ênfase e sem emoção, porque não pode se ler através de você, do mesmo modo a morte não pode morrer, se você não viver.

 

Nesse fragmento apresentado, a realidade se transforma, transmuta-se, emergem imagens do cotidiano, há uma recriação do pensar o comportamento humano, se você não retorna das cinzas e não sonha o silêncio, como viver? Mas, ao ler o (Movimento Final), vejo o autor renovar as imagens vividas pelos moradores de Vila Socó e por ele mesmo e que sobreviveram ao incêndio, ou seja, estamos diante de uma mesma imagem outra, um dos surtos de (re)criação, de um (des)tramar contínuo de linguagem e imagens. E o autor já avisa no (Sétimo Movimento): A unidade da tragédia unifica a nadificação da essência separa seu poema é difícil você fala rápido demais... e termina o movimento: O museu de arte contemporânea do lixão incluirá todas as cidades.

 

Marcelo Ariel é escritor-vento Onde não existe nenhum rosto vivo. Ele dialoga com outros autores, repensa o papel da linguagem e a vê divorciada da vida. Em sua obra a aura está presente em vários momentos. E o que é a aura senão um instante muito particular que é cristalizado pela experiência individual? Uma obra naturalista sem o ser, psicológica sem o ser, sociológica sem o ser, filosófica sem o ser, enfim, um ser sem o ser, como a resposta numa entrevista imaginária de Rimbaud: no comércio de drogas, armas e putas brancas encontrei um lugar mais verdadeiro e seres que carregavam dentro do olhar toda a tristeza do mundo, como os bois e os cavalos... no meio literário só encontrei casulos ocos recheados de lama dourada. Solitário é o caminhar nas estradas noctâmbulas de borboletas ausentes, mas assim a literatura maior.

 

Não posso deixar de registrar o posfácio de António Cabrita, jornalista, crítico, poeta e editor Português, assim como, a Capa de Leonardo Mathias, duas obras dentro da obra.

 

 
 

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O livro: Marcelo Ariel. Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio.

São Paulo: Patuá, 2014.

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agosto, 2014
 

 

 

 

Carlos Pessoa Rosa, poeta e contista, escreveu Cor e a textura de uma folha de papel em branco, prêmio Ficção Nacional, UBE/CEPE; Poemas viscerais, prêmio Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, entre outros. É editor do site Meiotom Poesia & Prosa. Assina o blogue Meiotom.

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