"as mães são filhas das filhas

e as filhas são mães das mães

uma mãe lava a cabeça da outra

e todas têm cabelos de crianças loiras

para chorar não podemos usar mais shampoo"

(Adília Lopes – "No more tears")

 

Como mulher eu não acredito no discurso vago da terceira pessoa do plural e, lembrando a leitura de Margareth Rago, o escrever-se a si é, para a literatura de uma mulher, praticamente um gênero discursivo. A história da própria existência é o que descreve a História pelo outro social, suprindo a suposta falta. A nossa história é, portanto, o que guia inclusive nossa arte, onde as experiências subjetivas são elevadas ao patamar de objeto de arte. Se a literatura de uma mulher é ela mesma, mesmo eu, como mulher, não poderia, enfim, me ater somente ao discurso vago da terceira pessoa do plural e ignorar, nesta caravana por Caravana, minha própria impressão, minha voz em consonância com a voz de Carina Castro nestes poemas de "areia do tempo molhada" (em "Marulho") em sua própria impressão do mundo e de si, literalmente.

Não acreditando no discurso vago da terceira pessoa do plural, acrescento primeiramente que convivi com Carina durante algum tempo de aula no curso de Árabe que nós duas cursamos. Não foi, porém, o curso desse rio que nos aproximou, inicialmente, mas posteriormente, o travar conhecimento da poesia de Carina revelou-nos uma proximidade que sempre existiu, o fazer poético, mas que até ali resistiu, velada sob o véu do desconhecido. Assim, impregnando a tudo aqui com subjetividade, aconselho, literariamente, a leitura das Caravanas de Carina.

Lendo como qualquer uma, nos rápidos manuelinos contemporâneos, o metrô, fui apresentada à poesia de Carina, às suas imagens poéticas, o tecido, a linha contínua da Caravana que costura-compõe tanto o tecido como o fio elétrico, a unidade entre o movimento de "crinas" e o tempo parado e seco de "ruínas", a Caravana que atravessa opostos tão plásticos que se pode sentir o atrito da areia na boca que anseia por água em "Desterro". O atravessar o tempo de leitura deste livro que une opostos por todos os lados, remetendo às travessias roseanas, no narrar poético da própria existência, desde a mais remota ancestralidade, na tradição da "senhora que abençoa o neto na saída" convivendo no mesmo poema com a contemporaneidade do "faz de conta/ televisivo das ruas" (em "Passo Comum"). A poesia de Caravana é um caminhar que primeiro descostura a realidade da sua própria poesia, separa-a em opostos e olha para ambos com "olhos lavados", para depois reconciliá-los na unidade, simbolizada pela linha que compõe o tecido.

 

"borda a beira dos rios, cor de rio

saindo dos olhos de céu, cor de céu

descendo a cor das montanhas

vai molhando em cor de terra, em cor de cara

colorindo até cobrir as costas das montanhas

um manto imenso, com as cores do mundo"

 

A dança entre opostos que, como numa miragem, parecem se opor, mas na verdade, são unidos numa lógica sabedoria ancestral é a base do fazer poético que se lê ao longo da Caravana. Carina explica seu fazer poético em "Colírio" de forma exata, traduzindo-se em poesia como Adília Lopes o faz, sobre seu próprio fazer poético, em "Arte Poética" (no livro Um jogo bastante perigoso). A arte poética de Carina é liquida.

 

"meu pai me ensinou a pôr colírio nos olhos

e com os olhos lavados ver

 

a teia tão frágil como um tecido roto no portão de alumínio

ruína da casa aracnídea

 

os cacos coloridos que viraram pedra no porto

a vida que há por sobre as rochas, sob as ondas

 

como uma garça repousar na beira

e mirar, mirar, mirar e mirar

 

até ter a palavra peixe na boca

 

mover os olhos em  translação

fixar a rotação do espaço, do lugar, do dentro"

 

O olhar paciente da autora espera até que a poesia seja. Mas sendo, olha-a também questionando-a e questionando o conjunto da realidade que a cerca e compõe também a sua poesia. Carina se pergunta das tradições de seu tempo, das imagens que escrevem as lendas de seu tempo, cria a um só tempo seu tempo e sua lenda. Em Passo comum, o prosaico quase despercebido das ruas de uma cidade quase não urbana, mas urbanizada, é elevado à condição de lenda. Opostos conviventes. As imagens que fazem da rua a imagem de todas as ruas:

 

"um par de tênis pendurado nos fios elétricos

os pés invisíveis pairam

e que presságio, que história traz?"

 

Imagens que parecem distanciadas, mas estão mesmo ligadas entre si pelos fios elétricos que conduzem.

 

"a energia vai para os destinos impregnada do mistério

do comum das ruas"

 

A travessia da Caravana também percorre espaços de tempo passado, na ancestralidade da própria poesia brasileira modernista, os clássicos do início do outro século. Evocação evoca não somente a Recife de hoje, atualizando Manuel Bandeira, mas o próprio é convocado a sair da tumba, em pleno carnaval. As máscaras são as mesmas e ainda, outras. Os pulmões do poeta foram respeitados, sua memória passada de um passado ainda mais longínquo também, conseguindo Carina rever tal clássico sem o anacronismo perigoso que nos ronda quando somos nostálgicos. A poesia de Carina não é nostálgica ao presentear o passado, mas investigante das raízes de si mesma e da sua literatura. Atualiza-se a si sem desconsiderar-se composta também de passado. Mais uma vez, a imagem do desmembramento da realidade, passado-presente, para posteriormente atá-la em unidade.

A costura dos opostos em unidade, esse verdadeiro Trabalho de agulha que revive antigos costumes ancestrais, nestes versos tão circunscritos às mulheres, relendo-os, atualizando-os como aos antigos poetas — da semântica à linguagem. A mesma linha que desfia e, desfazendo o tecido, descontrola é a linha que reata o rombo do fio que se puxou. O costurar, esse habito tão arcaicamente feminino, aqui é o fio condutor da superação de uma condição essencialmente humana, o medo. O fio que conduz e, puxado, revela-se humano é o mesmo que remenda os opostos explícitos e a unidade posterior. Lembrando em algo as antigas cantigas trovadorescas, a agulha que fura o dedo e a orelha para o conhecimento das agruras do amor, costura a alma abandonada, remenda a ferida e faz dela renda, renasce então o tecido. Lembrando também as raízes de uma cultura também ocidental, Ariadne revive para guiar Carina em seu próprio labirinto, desta vez com um fio de telefone. Passado e presente, tecido e fios soltos, inocência e marcas, o "Trabalho da agulha" é atar o tecido, compô-lo:

 

não quer aposentar a vitrola

e vai se desmanchando com o passar do dia

à noite teceu mil conjecturas, enquanto trançava o cabelo

pra se deitar

 

espetou o dedo, dormiu até tarde

bordou uma rosa no braço

agora espera o cobertor de orelha

 

incursionou no patchwork

agora tem renda, bala na agulha

finalmente furou a orelha

e se rendeu ao amor

 

mas no dia do primeiro encontro

puxou o fio da blusinha de crochê

puxou o fio da meia-calça de seda

se sentiu perdida

 

do orelhão bateu um fio pra Ariadne

a voz entrou pelo labirinto

achou uma saída

mas na volta ele já não estava

 

coração levou cinco pontos

 

agora faz renda com os têxteis, poetisa.

 

A forma aqui também assume-se hibrida, e a Caravana transita entre o explorar de formas de composição e versos absolutamente livres. Em "Rubro dentro do peito", a busca é clara como a própria poesia de olhos lavados e o leitor é solicitado pelo poema a viajar e reencenar a poesia, quebrando a quarta parede do papel — e remetendo ao cerne de um teatro — quebrando o silêncio da leitura, unindo o que fora separado, seguindo a linha do tempo num poema quase prosa de versos longos e extenuados da caminhada da Caravana. Ao mesmo tempo, mostra a língua literalmente, no final do poema. A língua física e sua umidade aliviante da sede e a linguagem são o mesmo conjunto de versos que tecem a noite enquanto o tempo passa arenoso nas ondas de uma ampulheta.

 
 

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O livro: Carina Castro. Caravana.

São Paulo: Patuá, 2012, 96 págs.

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dezembro, 2014
 

 

 

 
Beatriz Troncone: sou bióloga e estudante de Letras Português/Árabe, estudo Feminismo Pós-Colonialista através da Questão Palestina e da História das Mulheres Árabes, escrevo poesia desde os 15 anos, e desde 2010 as registro, timidamente n'O Covarde.