O homem que veio do frio ataca outra vez. No bom sentido, desafiando-nos com uma amostra do seu talento que muito cedo se revelou. Incluindo o seu despertar para este mundo submerso e complexo. Novos poemas indevassáveis, à primeira vista. Uma Antologia, o que pressupõe seleção de páginas diversas, no assunto ou no tempo da sua composição. Mas é sempre o mesmo poeta sensível, em cujos versos se percebe uma carga intensa de lirismo. Hiperbóreo, sempre, Ahasverus caminhante de muitos caminhos, de muitas paisagens, carrega consigo ainda um excesso de conteúdo de que precisa livrar-se, distribuindo-o em belíssimos, quanto estranhos, comunicados poéticos. Não nos parece que se esgote tão cedo esta fonte generosa. Ele ainda tem muito a nos revelar. Um certo desespero atravessa este ar glacial com que procura se defender do inexplicável peso da vida. A realidade o agride, e o desconforto não o pode calar.

Sua poesia tem muitas formas. E o sentido? Ao compasso do pensamento, formando um clima, será assim tão simples? Haverá linearidade? Vejamos. É necessário percorrer detidamente estes fragmentos que compõem a sua tão precoce Antologia. Precocidade que atribuímos, com certa estranheza, a quem tanto tem, ainda, a dizer: é apenas um jovem, amadurecido pelas experiências fortes.

Para despistar, localiza sua posição: circunstâncias normais de lugar habitado, vida pululando ao redor, a chuva (como leitmotiv) e o frio, uma antiga música de obsoleto realejo provocando particular angústia, movimento e vida (conversando, as pessoas se entendem), e então decide partir, enfrentar a lembrança do passado onde encontrará o amigo, sempre observado pelos que já não estão, condicionado pela chuva que molha a roupa e a alma.

Num primeiro olhar, esta especial Antologia (de si mesmo?) expressa sentimentos en train de libération. Como viver com esse acúmulo que quase o sufoca? Mas sua poesia tem diversas camadas. Uma imediata, exterior, que se mostra através da significação denotativa de palavras escolhidas e suas combinações semânticas; enganadora, porque imediatamente se percebe outra, mais profunda, que detém, esta sim, o sentido verdadeiro que não se desvenda à primeira vista. Escamoteável, sob disfarce coerente, ela jaz, submersa, sob o peso das palavras expressivas. Nada gratuito. É preciso ter certa habilidade e prática para penetrar os labirintos e descobrir aquele território comprometido, adivinhado ali, onde as imagens se descortinam, medrosas, ocultando o signo do vero significado. Neste novo desvelar-se procuramos em vão uma pista que nos leve até ele. Como? Se a poesia é a única via, e ela tem tantas formas? E quantos sentidos? O pensamento se esvazia, pois a linguagem humana é inábil para traduzir estes expedientes de que ele se serve para escapar ao nosso olho crítico.

Temos que partir, certamente, das unidades frasais que nos desvendam um caminho tortuoso onde iniciar esta jornada em busca da verdadeira intenção do poeta que constrói e utiliza seus esconderijos. Desde uma inocente mesa de bar, onde um homem evoca suas lembranças, até uma escura furna, onde preserva suas emoções. Seu amigo já não está ali; deixou somente sua aura e o reflexo de sua personalidade, uma forte impressão de momentos que partilharam, desde a brincadeira de se passarem por "dois gringos desocupados", e por isso o brinde aos que igualmente já não estão: Gardel, Borges, Alfonsina, perplexos, dentro da sua esfera metafísica.

Nesta "Grande elegia portenha", realizada a catarse, seria um novo homem, cheio de vida, pronto para o instante que virá. O encontro marcado há tanto tempo naquele bar em Buenos Aires, dois amigos y una botella de viño, e demais referências locais de calles famosas e música típica, fazem o assunto deste primeiro poema. Mas uma pergunta se impõe: a poesia requer assunto? Não lhe basta a ela, e ao poeta, a conjugação de um desejo forte de transmitir um momento único de beleza, uma necessidade de expressão, talvez um tenaz imperativo? Como expressar este momento de emoção profunda, transcendente?

Esse encontro que não se deu, marcado "a las cinco en punto de la tarde", vigiado por "olhares empedernidos" de ilustres figuras, a exibir todas as impossibilidades, como era de se esperar, não lhe pacifica o coração, muito menos ameniza a saudade. Porque o amigo jamais será encontrado. É necessário "mapear as plagas de onde não se retorna". Ele avisara que não é possível livrar-se da infância, enquanto o nosso poeta, que não é limitado por empecilhos, espera em vão, observado por seres que também já habitam o Hades. A poesia poderia ultrapassar os limites da sua especificidade e pressupor uma história? Deixar entrever no ar um resquício de episódio acontecido ou a acontecer, um drama, como motivação à sua resistência? Não, decerto, mas ela consubstancia seus significados, e o pensamento criador é território tão livre como os limites da própria ação, jamais contido por fronteiras. Ensaiando uma busca, o poeta inserido no clima do encontro que não se deu realiza suas lucubrações questionadoras que tentam desesperadamente apreender um tempo já enquadrado num espaço transcendente, portanto, não mais passível de acontecimentos, talvez só se permitindo ser observado através da vitrine, sob "uma chuva gélida e tristonha" que reflete o seu estado de espírito.

Ele transita do estado de sonho para a concretude do momento de intensa vida, e nisso talvez esteja a maior habilidade deste poeta estranho: o circunstancial e o transcendente observados nas imagens comuns. A capacidade de concretização do ideal. A chuva a enlamear, a esfriar, os dedos cruzados, as mãos que se tocam, ávidas de doação (detalhes apreendidos, também, em "O inferno"). Os contrários convivem; sabe-se que qualquer sofrimento há de se recolher, a vida é feita de altos e baixos, mas aí é que reside o encanto do que não se espera, e nem se pense no momento mau, simplesmente, viva-se. O amigo, que não volta, estará presente na ciência que permite utilizar-se de vários planos temporais.

É preciso descascar estas estruturas para chegar à fruta protegida por tão rugosas escarpas. Porque esta poesia não se mostra, como constatamos, à primeira vista. O poeta defende-se quanto pode, protegido por metáforas ousadas a dar conta do elemento fantástico que atravessa o texto como uma afiada navalha a antecipar a tragédia. Tragédia que está diluída no ar, cerne das músicas "milongueras" que se espalham nos ares bons da cidade ao Sul. Não, entretanto, livre de um certo ar de mistério ao lidar com o fantástico, e não há como não curtir a doçura de um outono suave e manso, doce, entretanto atravessado pela rudeza da vida em convulsões sociais, ciclopes a galopar nas nuvens, os deuses sempre pacientes à espreita. Ninguém será poupado.

Poesia é imagem, e ele nos descerra o outono que torna lindas as folhas, a mais bela estação do ano, que possui uma luz diáfana e torna dourados os parques numa gradação de cores quentes, e o mais singular espetáculo da Natureza, aquelas folhas vermelhas, macias ao pisar, espalhadas pelo vento que oferece, como o mais encantador aspecto, as árvores que se tornam inesquecíveis pela beleza que explode em cores. O poeta observa, atento, mas para sua musa a visão não é a mesma — ela olhará pela janela e, aborrecida, ficará desgostosa e triste com a poesia do abandono que lhe comunica à alma a visão da realidade. O que para um é um espetáculo plástico de beleza ímpar, para outro(a) pode ser uma paisagem aborrecível, tediosa — folhas douradas X céus cinzentos; a temperatura fria do seu coração X o orgulho do súdito que prefere esperar por dias melhores, de vez que somente uma pobre ave, a asa ferida, se "anicha na cornija escorregável". E sua persistência falha na tentativa de dobrar sua musa na expectativa do futuro (que logo será presente!), a conclusão é que a palavra não vale nada perante o jogo denso da natureza, pois "tudo ainda está por vir" (a volta do objeto amado?), um clímax da solidão extrema. Ele transita do sonho para o concreto dos momentos de intensa vida circunstancial das imagens plasmadas: o horror bíblico do inferno é apresentado em terríveis pinceladas. Mas o poeta precisa surfar acima de todas as estâncias, preservando-se para coisas mais altas, evitando o risco de se "atolar em banalidades". É surpreendido, então, pelo surgimento de um elemento estranho, que faz uma estranha previsão que se concretizará, enigmática e definitiva, fazendo o contraponto à beleza. O mundo em si é terrificante — a angústia e a impotência, marcas do ser vivo a conviver com o clímax do amor e a banalidade do fato corriqueiro; tudo é registrado em linguagem poética que só deveria expressar o encanto das coisas eternas.

O clímax é sempre original, nunca repetível, quando há a afinidade que torna os amantes únicos e faz combinar a eternidade do tempo e a criação do mundo num momento único. Menos propício ao romântico interlúdio, o sentimento pode explodir tanto numa tarde clara como numa noite infernal, quando as potências celestes assombram, ameaçam com a feroz intempérie, e a mão delicada procura a proteção da mão mais forte que lhe dará segurança e conforto, embora a proximidade desencadeie a fúria insana do sentimento a exigir pacificação. Necessária a voz que diz "estou contigo, nada temas", qualquer circunstância existencial ou mesmo temporal nos instantes de medo e/ou insegurança que o crescimento traz e que a maternidade controlará, breve, colado na pele, no hálito e no pensamento, mostrando sempre a devoção dos que verdadeiramente amam. É a eternização de um momento de intimidade desencadeando uma expectativa desgostosa de final de sonho. Usufruir da vida, já que não podemos mudá-la na sua dinâmica intranquila, com acontecimentos extremos, violentos na maioria; dias que já amanhecem vermelhos, com "anjos tocando trombetas", anunciando o Armageddon... A solução talvez seja, à maneira da conclusão de Manuel Bandeira diante de uma situação insolúvel: tocar um tango argentino.

Constituir-se-á matéria poética a observação de pessoas que gastam o tempo com coisas de somenos? A vida cinzenta de seres amorfos cumprindo rituais de vida exterior, o tédio dos servidores, a mesmice das coisas que não mudam; e uma mulher vulgar o bastante para atrair olhares fesceninos: são flagrantes que intrigam o pensamento de quem deveria estar ainda entregue aos seus jogos infantis...

Consequência e recompensa: a afirmação do ser em estado de vigília poética. Que de nada necessita, senão desta sensibilidade que lhe permitirá o devaneio sem perigo de alienar-se, desfrutar de um direito dos reis! Voltar ao mundo e inserir-se numa realidade palpável. Concessão que lhe é feita a partir da perfeita noção do seu destino livre de posses, embora possuindo o mundo inteiro, representado por (apenas) "um grão de lirismo" que extravasará no direito que o amor lhe concede de dirigir-se à amada, a qual em troca, ingratamente, só demonstrará indiferença à sua devoção. E são tão bonitos estes versos, dentro do seu mistério, desfilando momentos de êxtase amoroso, numa cerimônia antiga e delicada sob forma de cadência e ritmo e assonâncias ocasionais, revelando trato na escolha consciente de palavras, no artesanato cuidadoso que é apanágio de uma escritura sofisticada.

"Balada da minha infância" é um romance construído em redondilha maior, apropriado à recitação, dotado de ritmo e métrica regulares. Avalia-se a perda da descontração a que não é possível entregar-se. Em seguimento, um curioso exercício construído em versos de dez e de sete sílabas demonstrando a mestria de quem domina a arte do versejar tradicional, cuja temática é a insurgência contra os regimes políticos a dispor dos destinos humanos: participação de um jovem nos problemas do mundo de seu tempo, afinal de todos os tempos, é o papel da poesia social.

Nessa mesma temática, "O soneto solar" é um interessante exercício em décimas e septílias que reflete sobre a precariedade e insensatez dos regimes políticos que dispõem sobre a trajetória das criaturas.

Segue com o curioso "Ladra d’almas": o voyeur curioso a observar um casal que pratica o antiquíssimo ritual do relacionamento amoroso; tentativa de conhecerem-se em profundidade, ameaçados pela fúria de uma chuva que ainda mais os distancia de si mesmos, ao aproximá-los. A chuva é imagem recorrente nestes exercícios poéticos, poemas da juventude que sinalizam tão precocemente a maturidade do pensamento, fato incomum nos tempos em que pairamos, ao mesmo tempo que exprimem dúvidas e preocupações sobre a permanência da poesia em face do poder e focalizam a precariedade da vida e da liberdade de ser. Vivo fosse Cícero, clamaria: Ó tempora! Ó mores! Calímaco, Asclepíades, Sótades, Apolônio, o que vindes fazer, oh mentes privilegiadas, nestes poemas de um quase menino que há pouco deixou seus brinquedos, abandonados a um canto, e ousa questionar os limites do poder, o alcance da palavra e a glória do reconhecimento do mérito?!

"Palestra de botequim" é outro romance onde ocorrem consonâncias fônicas representando expectativas de poeta precoce, ponderando o futuro da escrita. E belo poema é este: A noite, amada, não vai acabar tão cedo. Exibindo uma admirável técnica, Oleg escreve, em francês, o "Apólogo sobre um mendigo", a inclusão de um elemento real da vida a fazer parte do elenco de preocupações de quem desejaria mudar o mundo.

Seus "Ciberpoemas" são obras da primeira juventude. Mas já reveladoras da segurança e de todas as qualidades que se confirmariam no quase menino. Ele se entrega ao julgamento do leitor, e seus amigos tiveram liberdade para se expressar. Como poderia viver, pergunta, sem a sinceridade dos amigos? E elenca uma série de questionamentos a demonstrar sua conscientização: como o amor se implantou no mundo? O mundo é mais interessante, quando se crê, não importa a qualidade da fantasia a nos iludir; realizar o amor faz olvidar, por um momento, a terrível profecia que se realizará: a sombra da morte pairando, alertando para a realidade contundente: memento homo..., tornando frágil e incerta toda a alegria que poderia provocar a união perfeita sob o signo de Eros, que diante deste imponderável perde seu mistério e seu encanto.

A habilidade de lidar com várias estâncias poéticas é demonstrada nestes poemas escritos em francês, e reveladoramente sua língua materna surge. Afirmando sua individualidade preservada, apesar de todas as vivências necessárias ao exercício da introspecção a que se dedica, surge com a força criativa da verdade que está dentro dele. Com toda a beleza e originalidade do alfabeto cirílico utilizado, o que estabelece uma ponte em que se isola, pela impossibilidade que não nos permite a travessia. Generoso e doador, ele traduz esta "Rapsódia outonal", certamente deseja nossa participação, mas adivinhamos nela um terreno pessoal, ressonâncias inesperadas e inalcançáveis que se espalharão por essa longa reflexão que seria, segundo suas próprias palavras, "sua biografia lírica"...

E o Outono caminha trazendo suas belas cores; o poeta fecha aquele recinto onde estão guardadas suas lembranças, mas agora sente-se bem melhor. Seus olhos nos fitam, a luz aparece neles, e o sentimos de volta ao nosso lado e à vida que o preservou de tantas ciladas e, podemos afirmar, lhe trará outras alegrias, outras sensações, embora seu destino esteja traçado, marcado por intensa sensibilidade, jamais poderá fugir de si mesmo.

A ele cabe carregar a bandeira da poesia. Desse antigo gênero ameaçado por mudanças, pelo tempo, pelas visões, por tentativas infelizes de originalidade, por tantos fatores que tentam em vão proclamar seu esgotamento, sua morte e, pior, sua inutilidade num mundo tão dominado por uma sofisticadíssima tecnologia, que tenta em vão igualar as pessoas como maçãs ou cerejas num cesto. Terão todas elas o mesmo gosto?  Desprovidas das cascas, não serão, por acaso, diferentes na textura, no sabor, na doçura?

É preciso prová-las uma a uma. E descobrir, como na poesia de Oleg, a novidade, a frescura, o perfume do velho gênero que lhe revelou seus segredos. Não esqueçamos que este homem, que veio do frio, trouxe consigo a flauta de Orfeu. E poucos, na verdade, saberão tão bem extrair dela as notas mais harmoniosas, revelando — se é possível?! — uma realidade nova, de puro encanto poético, aos nossos olhos cansados...

 

 

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O livro: Oleg Almeida. Antologia Cosmopolita.

Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, 98 págs.

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março, 2014

 

 

 

Rejane Machado (Rio de Janeiro/RJ). Escritora, crítica literária e professora, com Licenciatura em Português/Literatura/UFRJ, Mestrado em Literatura Brasileira/UFF, Atualização em Literatura Brasileira/UFRJ, Doutorado em Linguística e Filologia Românica/UFRJ e vários cursos de extensão. Redatora da Revista do Sindicato dos Bancários/RJ, redatora do Jornal de Letras/RJ e colaboradora de diversos jornais e revistas. Publicou os livros de contos A dimensão das Pedras (1973) e O outro lado das coisas (2009); os romances Informação a um desconhecido (2000) e Réquiem para Mário (2010); os livros de literatura infantil A festa da Sardinha (1999), O médico das flores (2013) e Viagem aos tempos do vovô (2013); de ensaios O livro de Oswaldo: retrato de um contista esquecido (2000), Aluízio de Azevedo e o naturalismo literário (2013), O momento mais bonito da literatura brasileira — Gonçalves Dias e outros (2013); de crônicas Contando até dez (2012). Prepara o livro de ensaios A literatura colonial brasileira: uma trindade santíssima. Vive no Rio de Janeiro.