SALA DE ESTAR

 

A própria visita esconde o lugar puído.

Escapam muitos incômodos dos sorrisos.

 

Acham graça do enfeite. Sacodem até a

neve dançar desesperada na paisagem

 

de pinheiros. Cenas soltas, que desprego e entrego.

Pernas cruzadas. Comento os flocos de luz.

 

O ar que adentra dispersa alguns mal-entendidos,

focos de luz. Saio pela escada de incêndio.

 

 

 

 

 

ESTAÇÃO

 

Começa a migração das naves de asas

insensatas. Um rastro prateado

 

rasga nuvens de estrelas, a fumaça

do amor que pouco a pouco se desfaz.

 

 

 

 

 

PREAMAR

 

O Rio de Janeiro assa. Vai

chover. Meninas fervem pelas bordas.

Há quem voe no afã da fuga. Nada.

Mamíferas emergem dando corda:

não senti o arpão bífido daqueles

olhos. Nem me afastei de nenhum barco

por amor. A malina encobre meus

desejos incompletos. Pelo mar

deslocam-se surpresas. Venta mais.

Vai chover e a cidade arde demais.

Experimento as bordas das meninas.

O pescador imita a minha cria

com gemido eletrônico. Confundo-me

com os gritos. Despeço-me de tudo.

 

 

 

 

 

EXTENSORA

 

Deus proteja esse táxi. Da cadeira

adutora defino alguns percursos

normais. Belezaonline. Laranjeiras

suas flores e dores nos meus músculos

frontais. Eu amo minha mulher. Amo

minhas filhas. Mas como reter ritmos

quase abdutores sempre transitando

nesse táxi e alongando os apetites

de Ipanema Leblon Nova Iguaçu?

Veloz correr na esteira dos encontros.

Almoçar a cidade. Jantar rúcula

com tomate e parar justo no ponto.

 

Na cadeira extensora te alcançar.

Deus proteja e abençoe nosso lar.

 

 

 

[Do livro Nave. São Paulo: Lumme Editor, 2010]

 

 

 

 

PAVILHÃO

 

Um pavimento inteiro de sentido.

O espaço decorre livre em tudo.

Olhos duplicam a superfície

de água fina ou transparência

sem cor, sem resíduo do corpo.

Palavra alguma pela passagem.

 

 

 

 

 

LAMPEJO

 

Despencou daquela altura porque

quis. Estava bem ferida. Sangrava

há horas. Podia acabar ali mesmo,

sozinha no alto do prédio,

a respiração difícil despregando,

a escuridão entrando pela boca.

 

Talvez quisesse experimentar o voo

de asas vermelhas que nunca vira.

 

 

 

[Da plaquete Algo do gênero. São Paulo: Arqueria Editorial, 2010]

 

 

 

 
 
 

LUZES

 

Tarde a vitrola almofadas

incenso a escorrer almíscar

o primeiro bode em seda

gin gin limonada gin eu

queria apagar as luzes doeu

quando ele entrou em mim.

 

Foi tarde mas esclareci.

 

 

 

 

 

MATIZES

 

Sargaço, sargaços,

não sei se ao longe

passo ou aos passos de bailarina ao encalço

do exato limite

 

 

entre

 

 

"água beirando areia" nitidamente replicável ao infinito

 

 

e

 

 

o que de fato se passa,

até ali e

já não mais,

sob impressões que tensamente fixo nalgum desses apelos arredios de

existência.

 

 

 

 

 

*

 

Ela me cobra um veludo. O poema feito para comer.

Minto sobre o que vou falar. Indico até o andamento. Empresto o metrônomo. Mas lembro que, eu mesma, ando evitando o açúcar.

 

A outra quer pendurar estrofes na parede. E o cara conseguiu uma pintura contemporânea, o conceito dentro, e sem moldura. Observo por três horas. Digo que gosto. Até que gosto. Combina com o sofá.

 

Só que estou aflita. Um poeta ressuscitou ainda agora. Sinto algo que não conseguiria explicar. Um poema feito para ler, imagino. While my guittar

 

 

[Do livro Som. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005]

 

 

[imagens ©francesca woodman]

 

Lígia Dabul (Rio de Janeiro/RJ, 1959). Publicou os livros Som (Editora Bem-Te-Vi, 2005) e Nave (Lumme Editor, 2010), e a plaquete Algo do Gênero (Arqueria Editorial, 2010). Em 2015, publica Arame. Seus poemas também estão em blogues, antologias, revistas literárias e outras publicações digitais e impressas, brasileiras e de outros países, às vezes traduzidos. Em 2007, recebeu bolsa de criação literária da Fundação Biblioteca Nacional e em 2012 foi selecionada para o Programa Poetas em Residência de Monsanto da Universidade de Coimbra. Dá aulas e faz pesquisas em sociologia e antropologia da arte na Universidade Federal Fluminense.