Significativo, histórico, este ano — nele, o 175º aniversário de nascimento da maior figura da literatura brasileira. Predestinado foi Machado de Assis naquele 21 junho 1839, quando vindo ao mundo dos homens, na chácara do Livramento, no Rio de Janeiro, abria as portas da posteridade que se configuraria pelo supremo quilate de sua obra.

[Para comemorar tão relevante efeméride, esmerei-me na produção do livro Machado de Assis: inéditos em livro — uma crônica, um editorial, um conto, duas traduções —, publicado pela Academia Brasileira de Letras e de dois e-books, Machado de Assis: contos de mulher, pelo KDP Amazon, e Estranhas Fantasias de Eleazar, na Nuvem de Livros.]

 

 

 

I - Machado de Assis,  esfinge de transcendência literária

 

 

"Decifra-me — mas não te devoro" (sic): parece dizer Machado de Assis, dirigindo-se ao leitor. Brincadeira, talvez, mas expressa uma espécie de lema machadiano a pautar as relações com aquele que o lê. Machado, na verdade, "brinca" (no bom sentido), essencialmente na crônica, no conto, até no romance, com aquele que o lê. Em seus textos, às características de leveza de tom, fluência textual e estilística muito próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora e paródia, alia-se a presença incisiva dos admiráveis elementos machadianos do disfarce, da dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, postos como desafios ao leitor.

A nem sempre linear narrativa, ficcional ou não-ficcional — na crônica, por exemplo, nela predominante a "arte das transições", levada a extremos ao unir tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado surpreendente; no conto, oferecidas explícitas ou veladas armadilhas retóricas e  significados ocultos — tem seu  trajeto  "amenizado" para o leitor. Primeiro, desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o, numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir — o conhecido narrador machadiano, o "narrador volúvel", presente tanto na ficção quanto na não ficção.

Descobrir inéditos de Machado, portanto, insere-se e integra-se nesse contexto, ou diapasão, ou cenário. Sua obra parece sempre "pronta" a oferecer e revelar surpresas — não fosse ele autêntico mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, inclusive por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo: foram quase 40 assinaturas em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma assinatura diferente para cada capítulo) e em crônicas.

Um ou o Machado "misterioso" fez seu debut literário, por assim dizer, logo em seu primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm pelos tolos, em 1861  (antes, nesse mesmo ano, veiculado em folhetins em A Marmota). Obra de extrema representatividade histórico-literária na produção machadiana, revestida de características especiais de definição genérica, conotação autoral, geradora de polêmica entre machadianos e de fundamental, crucial relevância pelo que contém, e projeta, de elementos e concepções que pautariam toda a sua ficção literária. Além de abrigar um conjunto de peculiaridades que a fazem única e diferenciada.

A primeira de suas peculiaridades refere-se ao fato de  ter despertado dúvidas ao longo do tempo — não tanto quando de sua publicação — daí uma salutar (culturalmente falando) polêmica, quanto à sua condição de criação original ou tradução de Machado de Assis, contendo em si, portanto, uma conotação de mistério, dúvida e polêmica, que de resto apenas corroboram, por assim dizer, o "espírito" machadiano de fazer literatura.

Outra das particularidades que se percebe de imediato — reside em não constituir-se em um gênero definido, difícil de classificar nos moldes tradicionais, aproximando-se mais de uma sátira e menos de um ensaio, muito longe de ser um romance, uma novela, um conto ou uma crônica.

Sobretudo a multiplicidade da representatividade histórica de Queda que as mulheres têm para os tolos expressa-se em especial por deflagrar um elo de interações, afinidades e intertextualidades, prenunciando, anunciando, antecipando e consubstanciando em sua forma, linguagem, estilo e conteúdo muito  do que viria a seguir na lavra ficcional do autor. Que elos de intertextualização são esses?

 

▪ como suposta tradução, inserida na produção machadiana, constitui manifestação pioneira do conceito da tradução, a incorporar a célebre "teoria do molho", reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo, elaboradas por ele  próprio, em muitos aspectos, antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada;

▪ a "teoria amorosa", desenvolvida  em "Desencantos", em Ressurreição, e chegando a Dom Casmurro — o livro inaugural interagindo com a primeira peça teatral, com o primeiro romance e  com a  opera-mater: em todas elas, a "ideologia" da  dubiedade, da ambiguidade, da dicotomia;

▪ a mulher como protagonista primordial da ficção machadiana, que traz para o centro das discussões o feminino e a questão da sexualidade feminina : nenhum escritor de seu tempo "edificou" tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado, que escrevia sobre mulheres e para mulher;

▪ a tríade tolo + mulher + homem de espírito, que permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado, transportando a "ideologia" de Queda que as mulheres têm para os tolos para muitas das obras posteriores.

 

Em se tratando de Machado, sabemos tudo ser possível — o feito pelo não feito, o criado pelo traduzido, o escrito pelo não escrito. A alimentarem especulações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda que as mulheres têm pelos tolos — a rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de Machado — mas de várias outras obras, entre dúvidas, sutilezas e enigmas, disfarces e subterfúgios, que não faltam na obra e na carreira literária machadiana.

"Mistérios", subterfúgios, disfarces, "jogos com o leitor" à parte, na verdade, sempre existiram em Machado, um notável e meticuloso experimentador —  mutável na utilização de formas, estilos e modelos —, mas absolutamente seguro, determinado e consciente. Ao longo do tempo, sempre preocupou-se com configurações para sua obra — essencialmente, tanto o conto quanto a crônica foram notáveis e eficazes terrenos de experimentações narrativas, nelas se revelando uma sequência notável de exercícios formais, estilísticos, de linguagem e de enfoque ao longo de sua produção e evolução literárias.

A evolução literária machadiana desenvolveu-se ao longo de sua vida literária (e pessoal) como um todo coerente e consistente — obediente a escalas e estágios — mediada por um período de marcante inflexão que antecede o que se convencionou denominar "o grande salto", a grande mudança — que tanto instiga estudiosos, pesquisadores, historiadores, críticos e leitores, claro. Inflexão que, a par de contribuir positivamente para a análise e interpretação adequadas da trajetória machadiana, em  contrapartida, serve para sedimentar um conceito, ou avaliação, de muitas formas discutível: a divisão da obra — ficcional e não ficcional — de Machado em duas fases, o "aprendizado" versus a "maturidade", a "formação"  versus a "radicalização".

Para de uma vez por todas reformular o conceito estabelecido sobre tal  dicotomia:  a obra machadiana submete-se a estruturas básicas que se superpõem, se interligam e se renovam "como um todo coerentemente organizado (...) à medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas", sentencia Silviano Santiago. Na verdade, a estética ficcional e não ficcional e o pensamento literário machadianos não podem nem devem ser tão facilmente encaixados nesses dois blocos distintos, até porque se desenvolvem e se coadunam concomitantemente, seguindo, ambos, vis-à-vis, a mesma linha no decorrer de toda sua carreira, apenas sedimentando-se e amadurecendo consistentemente pós-1880 e nas obras sequentes — o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e a coletânea de contos Papéis avulsos (1882), como incontestáveis epígonos da transformação.

Nítida e lídima é a relação-interação entre a mudança do contexto político-social do Brasil do século XIX — notadamente a partir de 1871 — e as transformações formais e de conteúdo da obra machadiana, em cujo cerne encontrava-se o pensamento político-histórico sobre o Brasil — haja vista a extrema "presença" da política, e do lúcido olhar para ela — que permeou e sedimentou a totalidade quer da ficção quer da não ficção, numa espécie de espinha-dorsal, no decorrer de todas as "fases" e estágios de sua trajetória literária. Machado percebeu nitidamente a necessidade de fazer algo mais diferenciado — no plano estritamente literário, tanto do Romantismo ainda vigente (para ele, já "acabado") quanto do Realismo-Naturalismo, que então impunha narrativas e descrições ao mesmo tempo minuciosas e contundentes da vida real (via de regra surpreendendo, e muitas vezes "assustando", o público leitor); no plano histórico, em função da própria mutação política e social que o país experimentava.

"Dinâmico" na construção e sedimentação de sua vida literária, obediente a um consciente, coerente e consistente processo evolutivo, de "camadas" superpostas, interligadas e re-articuladas; "misterioso", "enigmático", disfarces e subterfúgios postos a serviço e uso da criação ficcional e não ficcional — sempre "pronta" a revelar surpresas (e inéditos) — Machado de Assis e sua magnífica obra exemplificam e emblematizam à perfeição a sentença do crítico e ensaísta Alcides Villaça: "É papel da Literatura dar expressão ao que não a tem, revelar disfarçadamente o que se disfarça de fato". A relativização de valores constituía-se numa estratégica de Machado para levar adiante seu projeto literário, e certa contundência de suas relativizações, não conclusivas em si mesmas, propicia e estimula, de resto, reflexões e interpretações que servem para valorizar e enriquecer mais e mais, através dos tempos, sua grandiosa obra literária. Na qual evidencia-se e sedimenta-se o vaticínio que ele mesmo formulou: "A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de sua vitalidade.

 

 

 

 

II - Gonçalves Dias: mais do que romantismo poético,

etnia e alteridade, erotismo e sátira

 

 

Dele, sabe-se ser considerado ícone do romantismo poético brasileiro, quem aliás o inaugurou temática e efetivamente: o poeta, ensaísta e intelectual Antonio Carlos Secchin sentencia que "Canção do exílio" é o "documento de identidade da história literária do Brasil" (segundo ele, a carta de Caminha seria a "certidão de nascimento da história institucional brasileira").

Gonçalves Dias teve vida curta — morreu aos 41 anos, a 03 de novembro de 1864, vítima de naufrágio, já em águas brasileiras, próximo à costa, quando voltava da Europa — mas o suficiente para merecer, com todas as honrarias, um posto no Olimpo literário do país, ainda que com poucas obras, produzidas entre seus 23 e 29 anos: Primeiros cantos, Leonor de Mendonça (teatro), Segundos cantos, Meditação, Últimos cantos, Os Timbiras (inacabado) , Dicionário da Língua Tupi.

O que pouco se conhece, e talvez muitos não sabem, é o quanto em Gonçalves Dias existe o "alterofilista" (sem o h...), na expressão de Secchin, no sentido de sua dedicação, extremamente relevante para a historiografia literária brasileira, em estudos, reflexões e produção poética e em prosa, inclusive em discursos e depoimentos, às questões de alteridade e de etnia, ele mesmo mestiço, filho de um português com uma índia — apondo-as e expressando-as, sempre fazendo do índio o elemento da identidade fundadora do Brasil, nos poemas "Marabá", em "I-Juca Pirama" — em que inaugura, por assim dizer, o ethnoslogos da literatura e da cultura brasileiras — e em diversos outros, não fosse Dias o indianista por excelência, e precursor, na literatura brasileira.

Assim como, e do mesmo modo provavelmente menos conhecida, duas outras facetas, também importantes historiograficamente e literariamente: o erotismo e a sátira — o primeiro presente, p. ex., em "Leito de folhas verdes", em "Marabá", em "O canto do índio"; o Gonçalves Dias satírico em "Sextilhas de Frei Antão" e em "Que coisa é um ministro?" — valendo aqui, uma observação pertinente: na linha/via reversa, o indianismo gonçalviano  teria sido satirizado ou parodiado, por Bernardo Guimarães no "Elixir do Pajé" (de resto, peça "clássica" fescenina do romantismo brasileiro); e por Múcio Teixeira em "Canto da bugra", paródia a "O canto do tamoio".

 

 

 

III - A outra faceta de Coelho Neto

 

 

Coelho Neto (1864-1934) abriga duas marcas de efemérides, neste 2014: sesquicentenário de seu nascimento (1864), 80 anos de morte (1934).

[Por essa dupla significância, publico pela Academia Brasileira de Letras a coletânea de contos, na verdade, quase crônicas, A cidade maravilhosa, rigorosamente a última obra ficcional do escritor. De edição original, pode-se dizer rara, pois publicada apenas em 1928; do mesmo modo, algo inusitada, pois  revela em Coelho Neto um afastamento definitivo das linhas do naturalismo e do regionalismo que conferiu e com as quais pautou e pontuou os contos escritos em períodos e fases imediatamente anteriores a esses. Nos contos denotam-se nitidamente, uns mais outros menos, claros vieses e cunhos essencialmente reflexivos, mais discursivos e dialéticos e menos descritivos, sob um fluxo algo filosófico de expressão e formalização de pensamentos, interpretações, especulações intelectuais — ainda que exibam e sejam permeados por manifestações do "parnasianismo", marcantes genericamente de sua escrita, desde sempre.]

Ao pesquisar e estudar Coelho Neto para o livro que publiquei em 2010, acerca do antagonismo com Lima Barreto, já tivera a atenção despertada — sem poder então dedicar-me e aprofundar-me nisso — para as crônicas do escritor, bem mais conhecido (e pouco valorizado) por romances, contos, teatro e mesmo artigos na imprensa pautados pelos estilo e escrita que tão "ácidos" comentários críticos, desairosos mesmo, provocaram, p. ex., em Lima Barreto durante a "convivência" dos dois — década de 1910 (e os dois primeiros anos dos 20, uma vez que Lima morreu em 1922) — nos modernistas, a partir da década de 1920, e nos analistas e leitores de hoje.

O que pouco, muito pouco se conhece — até porque raramente é divulgado e estudado — é justamente o Coelho Neto cronista, "fértil" cronista diga-se, pois  é bastante alentado o acervo de sua produção em jornais e revistas ao longo de quase 50 anos.

E o que menos, muito menos ainda se sabe, é o quanto e como, Coelho Neto tratou, em determinadas séries de crônicas, da... política de seu tempo.  Registrou e legou importante testemunho textual sobre momentos e processos de grande importância na história brasileira do final do século XIX e primeiras décadas do século XX — e relevante observar: face a seu grande poder de comunicação, por via de uma linguagem assimilável pelo leitor e mercê do prestígio que foi angariando no decorrer dos anos, procurou levar a camadas de público normalmente distantes dos fatos políticos não apenas registros e retratos, mas sobretudo comentários pessoais sobre a realidade então vigente. Coelho Neto, a propósito, expressou em entrelinhas logo na primeira das séries seu entendimento de que somente pela crônica — deixava então de se dedicar apenas à ficção (antes, publicara alguns contos no mesmo veículo no qual se iniciaria na crônica) poderia levar a literatura a "um meio despreparado para recebê-la e entendê-la, face ao atraso e ignorância de um público distante das letras" (sic), ao mesmo tempo fazendo da crônica um canal direto de intervenção social.

Basicamente, são quatro os conjuntos cronísticos nos quais Coelho Neto tratou de temas e questões políticas, poemas e contos de verdadeiros libelos contra a escravidão e a favor da República: a par de muitas considerações e apreciações passíveis — e necessárias — de a eles se fazerem, esses  conjuntos  cronísticos, com seus respectivos enfoques político e social, afastam-se sensivelmente das características mais marcantes  da prosa de Coelho Neto.

De modo geral, os  estudiosos da literatura brasileira concordam que ninguém como Coelho Neto encarnou "mais dramaticamente" o problema da forma. Romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto, na verdade, nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu: somente no fim da vida rebelou-se contra a moda e os modismos.

Coelho Neto incorporou e personificou como nenhum outro, múltiplas e indubitavelmente conflitantes características e propósitos, "querendo ser primitivo e heleno, colher motivos  em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onamotopaicos", sentenciou Lúcia Miguel Pereira.

Por força do culto ao virtuosismo, "deixou-se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la", observou ela em artigo publicado na Gazeta de Notícias, de 9 de dezembro de 1934, exatos 10 dias depois da morte do escritor: "Sua obra visava à fruição estética e, mesmo quando incluía um conteúdo social, pendia para o artificialismo, porque tomou o meio pelo fim, confundiu expressão e ideia; suas fases prolixas, difusas, onde a função do adjetivo é muito mais importante que a do substantivo, revelam a tendência a impressionar-se excessivamente com os detalhes, a sentir mais o aspecto exterior das coisas que a sua essência, ao mesmo tempo em que seus vocábulos raros traduzem o gosto pelo bonito, pelo brilhante; a força interior, a obedecer enfim a todas as exigências da moda".

 

 

 

iv - Laurindo Rabelo: ultra-romântico,

"poeta lagartixa", "o Bocage brasileiro"

 

 

"Que homem é esse?", assim exclamou, surpreendido, Antônio Álvares da Silva ao ver Laurindo Rabelo pela primeira vez. E então observou: "Língua desempeçada a cortar pelo mundo com um desembaraço; com o maior sangue frio saltava por cima de certos respeitos e deferências, em uma linguagem que eu nunca tinha ouvido. O mais é que eu, tal era a minha comoção, não podia deixar de ouvi-lo, preso, encadeado, como me achava, a uma palavra rápida, correta, fluentíssima e cáustica que fascinava".

Quem foi, enfim, Laurindo Rabelo?

Foi renomado poeta romântico — embora no delineamento dos autores e obras representativos do romantismo literário brasileiro, normalmente não esteja incluído como dos grandes nomes, ao lado de Gonçalves Dias, Gonçalves Magalhães, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu, Castro Alves, por exemplo. Mas  deveria, sob todos os aspectos, sentidos e pontos de vista, ter lugar honroso nos manuais canônicos de literatura brasileira.

Laurindo foi dos mais famosos e estimados poetas brasileiros do seu tempo, mercê de acentuado teor de crítica social e diversidade temática nos variados estilos  lírico, burlesco, épico, satírico, presentes em suas composições. Notabilizou-se também pela habilidade para atacar e satirizar poeticamente as autoridades, e pelos exercícios poéticos de cunho obsceno — nos Poemas livres, editados postumamente em 1882 , daí cognominado "o Bocage brasileiro", assim designado pelo fértil acervo poético de cunho obsceno, erótico, pornográfico, fescenino, produzido mesmo em pleno romantismo literário brasileiro, de resto "púdico", "sisudo", rigorosamente balizado pela moral oitocentista. O autor desses impactantes poemas, vítima de leituras no mínimo incompletas de sua produção literária, teve esse grupo sumariamente expurgado das sucessivas edições de suas obras.

A par do próprio quilate de sua poética romântica, de grande e qualitativa, diversidade temática, nos  variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, erótico e obsceno, aliada a acentuado teor de crítica social,  presentes em suas composições, o atributo que mais impressionava seus contemporâneos era o seu talento para os improvisos — repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus,  bem recebido e aclamado em todos os salões, "o desejado de todas as reuniões sociais e musicais".

Laurindo Rabelo tocava piano e violão, e sua popularidade estendeu-se por toda a cidade do Rio de Janeiro, era a figura principal da época, em torno de quem por cerca de 20 anos "girou o movimento harmonioso de nossas canções". Daí carinhosamente apelidado "o poeta lagartixa", pela maneira espontânea e alegre de viver, o jeito desengonçado de se trajar, andar e comportar.

Tamanha a sua importância literária e intelectual, que foi profunda e intensamente comentado por críticos proeminentes como, entre outros, Sílvio Romero, José Veríssimo, Alfredo Bosi, Antonio Candido. Tal a sua relevância bibliográfica, formidável é o volume de sua produção poética, seja assim propriamente dita, seja em composições musicais, publicadas, notadamente pos-mortem: são 13 obras poéticas, 11 antologias específicas, uma seleta e 16 coletâneas de modinhas, lundus e canções — além do conjunto fescenino, reunido nos Poemas livres.

Depois de morrer — em 1864, estamos pois no sesquicentenário de sua morte — pouco a pouco, o nome de Laurindo Rabelo embaçou-se e caiu no esquecimento, por vezes, recebendo apenas menção de um estudioso, ou crítico, ou historiador da literatura brasileira.

[Justamente por tal sesquicentenário, preparei duas obras (ainda a editar e publicar): Inéditos de Laurindo Rabelo, abrigando cinco poemas, um folhetim, uma modinha e um lundu, e Laurindo Rabelo fescenino (este, na verdade o primeiro volume de um conjunto de obras e textos de mesmos teor, timbre e tom, escritos por renomados, consagrados, canônicos, "comportados" escritores brasileiros clássicos), expondo 38 poemas "licenciosos, voluptuosos, obscenos". Dupla homenagem, portanto: de um lado, serão dados ao conhecimento público os textos, até então inéditos em livro ou outro suporte, apenas publicados originalmente em periódicos de época. De outro, que se faça conhecer — e entreter os Poemas livres, publicados postumamente (1882) e, de imediato, colocada esta até então única e restrita edição no limbo das obras proibidas, censuradas, escondidas, confinadas aos porões do esquecimento literário.]

 

 

dezembro, 2014