Vermelho

 

 

Sinal flagrou.

À margem os carros,

emergem os pedestres.

 

Um esbarro trivial,

não fosse o soluço no peito.

 

O coração disparou —

era uma promessa de mal sério.

 

Uma pisadela,

um beliscão.

 

Dos males o menor: o amor

 

 

 

 

 

 

Paz almada

 

 

Primeiro fiz a paz.

Depois me aproximei dela,

trancei-lhe os cabelos,

e fizemos as pazes.

 

A casa expulsou

seu desalinho.

 

Mas

não sei se pazes são

nossas filhas,

nossos rapazes

esquecidos das sílabas,

ou minhas guelras.

 

 

 

 

 

 

Íngua

 

 

Há tempos ela sentia aquela tarde no peito,

como se

houvesse engolido algum tipo de imensidão admirada.

 

Passaram a suspeitar da sua voz,

tão parecida com lugar que olhavam até aquele soluço.

 

Ela sentia-se o próprio dialeto extinto.

Tão só

que falava língua de ninguém.

Nem dela era —

aprendera com um velho

que desconfia não ter existido.

 

E ela maldisse o velho —

que talvez seja ela —

por dar-lhe as fardas de

falar a ninguém.

 

Não podia errar,

porque não sabia desculpar-se naquela língua.

 

Experimentou a tragédia de ser olhada.

 

A multidão passou a vê-la como

viam o horizonte engolido.

 

Ela era imensa agora.

E digna de prece.

Ainda não entendia.

Mas assim era melhor.

 

 

 

 

 

 

Balcão

 

 

— Mágoa

não é drágea

dispersível

em líquido,

Ébrio.

 

— Se minha lástima

não lateja,

é porque

distraiu-se.

 

 — Conforme-se,

dente não se engessa.

 

 

 

 

 

 

Saque

 

 

O caos ensacado

na cesta —

o impresso sem vertigem

atirado no

fígado da manhã.

 

trapaça o portão

e a herdade do sonho.

 

Arrasta-se pelo quinto:

a pantufa,

o bafo,

a consciência.

 

Lê pela manhã

para amargar coa fé.

 

Um golpe de manchete:

o dia morre pela boca.

 

 

 

 

 

 

Em: vê, lê, ser

 

 

Um banco no tempo.

Um tampo no branco:

uma pausa naminésia:.

a poesia refrescou a sem hora.

 

Senhora escoou

em pó há pouco.

É nova na moléstia,

recém-esquecida.

 

A deusa obediência da voz,

as vértebras do beira-século,

a pele fina

que não separa

a carne do frio:

uma senhora fresca.

 

Gosto de ouvir os cabelos crescerem.

Porém,

prefiro ouvi-los

esquecidos,

enrugados,

esforçados.

 

 

 

 

 

 

2010

 

 

Por ter membros, eu era rei.

Rei em um reino de deformados.

 

A secura, verve das edificações,

pintou os seres em camuflo,

que agora são oficiais

moradores do invisível.

Talvez eles estejam passando pelos meus olhos agora.

Mas pra mim,

é só pó.

 

Tudo na mesma altura:

a do chão.

 

Eu, em pé,

parecia não me solidarizar com a morte.

 

Sentia-me uma barata

que sobreviveu ao fim do mundo.

E

não há sequer um cajado,

em que eu possa me apoiar,

para imaginarem que sou deus.

 

 

 

 

 

 

Caco

 

 

há lma

trinca na p

orta.

 

Infiltra

ção dolor

ida.

 

Que dilac

era.

 

O pretérito é meu cárcere —

 

en

clausura

do na d

erradeira

cláusula:

se não vier a visita que me destranque,

que venha amor te que me arrombe.

 

 

 

 

 

 

Mensageiro

 

 

O pico do pássaro era o pouso no fio.

Estava livre a trabalho:

 

A ave leva,

no bico,

o céu para as surdas Aves.

 

Toda pressa do chão,

é prece no céu.

 

 

 

 

 

 

Palmo

 

 

Abraça o casaco, em descrucifixo.

Abaixa a cabeça, franzindo a testa.

As mãos seguram o espaço

entre o braço e o corpo,

cada qual no lado oposto,

em guarda fechada.

Esconde as folhas.

Amarra os cadarços.

 

Em dia de chuva,

os toldos são trincheiras,

que guardam soldados em iminente combate.

 

Eu, em sopa, rio.

E leiteio a memória da morte:

só quem nunca esteve na guerra

pode fugir da chuva

como se fosse holocausto.

 

Ouça.

A chuva bate no chão feito aplauso.

 

O som da guerra é outro.

 

 

 

 

 

 

Através das grades

 

 

A folha em branco não abarca os s

eios da poesia. Toda prisão é quest

ão de geometria. O poema é livre n

o limite de seus muros. Jamais escr

everei redondo em lauda quadrada

sem deixar vogais na estação. O cá

rcere é qualquer coisa menor que ho

mem. É todo lugar que ele não cabe

todo. A liberdade esparrama-se do la

do de fora- posso vê-la mas não alcan

ça-la: um prometeu entre dois sonho

s. Já que não posso tê-la, contento-m

e com o ser que descende das tuas co

stas: a licença.

 

 

 

 

 

 

A terça fresta

 

 

O suor era endêmico daquela derme.

Todo retrato de memória,

ela tinha as molduras molhadas.

 

As mãos inchadas

grossas e pequenas

sem tato

alternavam tarefas

como fossem da mesma sorte das coisas que tocavam:

Seus dez primeiros dedos

iam ao animal.

Os vigésimos,

àquilo que descendera.

E os trigésimos

à lavagem deles.

E estavam calejados

como nasceram.

Sem engrossar nem afinar,

como uma enxada.

 

E fediam,

lustrados pela tripa

de uma caça ou de uma morte.

 

Usou o mesmo vestido florido,

sem gola nem braço,

por quatro filhos.

 

Não houve quem cresse na gestação.

Mas ela sabia

de olhar os porcos.

 

Morreu sem unha

e com a mesma fome

que nasceu.

 

Mas deixou uma vaca,

que dava leite e que não tinha antes.

 

A miséria era longa,

mas eles morriam só até ali. 

 

[imagem ©elizaveta porodina]

 
 
 
 
 
Isabela Romeiro Vannucchi nasceu em maio de 1994, em Dourado/SP, cidade em que viveu a infância. Em 2009, mudou-se para São Carlos/SP. Atualmente, mora no Rio de Janeiro, onde cursa Direito, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2015, aos 20 anos, publica pela Patuá A terça fresta, seu livro de estreia.