[ imagem original ©hugo lucas ]
 
 
 
 
 

 

 

A briga teve início no meio da tarde. Logo após dona Clara ouvir o grito de Lázaro: Venham merendar. Já vou. Dom Pedro não esperou por novo chamado, pulou da cama e correu na direção da copa. Antes de atravessar a porta, a senhora se voltou para o interior do aposento e ditou mais uma ordem: Comportem-se, senhores. Saibam que aqui no Reino da Dinamarca não há nenhuma podridão. Sós no quarto, Max e Glady entraram a cochichar. O primeiro queria sair da residência, o outro preferia dormir um pouco. Talvez até a noite. Sentia-se muito cansado. A ama não o deixava sossegado por um minuto, enquanto ela mesma não pegava no sono. E aquele danado do amo quanto mais eufórico mais sádico.

Deitados no catre, Max e Glady falavam sem parar. Você não vai porque lá fora está muito quente? Tem medo do sol? Não, não é isso. Mas gosto desse quartinho, dessa cama. Então vai viver o resto da vida nessa pocilga, nesse catre cheio de pulgas? Ora, aprecio muito essa casa, esse ambiente, essa sombra.

Lá pela cozinha falavam em café, suco, bolinho. E faziam barulho. Comam direito, para não terem fome antes da noite. Clara encheu a boca de bolo e quase perdeu o fôlego. Não vá morrer feito peixe, dona Clarinha. Pedro gargalhou. Comporte-se, dom Pedrito.

No quarto, Max e Glady se engalfinhavam com palavras. Vamos aproveitar a distração deles e fugir. Deixe de ser mole, preguiçoso, medroso. Max se sentiu ofendido. Mole é você, seu pançudo. E deu um murro na barriga do outro. Agarraram-se e rojaram no meio do leito. O cheiro de café quente lhes chegava às narinas. Não faziam zoada, por mais que se esmurrassem, pulassem na cama, rolassem no chão. Da cozinha, ninguém ouviria nada. Nem da sala vizinha. Vamos acertar as contas lá fora. Pois então vamos. E saíram do quarto, passaram pela sala, alcançaram a porta entreaberta e chegaram ao campo ao redor da vivenda. Aqui mesmo perto destas árvores está bom. Max não esperou por mais conversa e deu um chute forte entre as pernas do amigo. Passarinhos voaram dos galhos, em revoada, aos pios. Longe, andava um homem com uma enxada ao ombro. Olhava para o horizonte, como se esperasse chuva. Junto à cerca, um boneco de pano, malfeito, mirava o mundo sem se espantar com nada.

Caído ao chão, Glady se preparava para saltar ao pescoço do outro. Formigas passeavam nas proximidades da árvore diante da qual o lutador se estendera, a gemer. Vou te mostrar como se doma um covarde. Pois me acertaste sem aviso. E se lançou com as pernas abertas na direção do pescoço do inimigo. Vou te estrangular. Tua alma vai voar pelos ares, maldito.

Na cozinha, Clara se empanturrava de bolinhos e suco de graviola. Pedro se lambuzava de café com pão e manteiga. Lázaro se impacientava com tanta imundície. Vocês são uns capetas esfomeados. Capeta é você. Vou dizer a mamãe que você nos chamou de capetas. É modo de dizer. Desculpem. Pedro olhou para o avental do mordomo: Você tem alma, Lázaro? Clara deu risada. Ora, ele tem alma, sim. Se não tivesse alma, não falava, porque só quem tem alma fala, seu bobão. O senhor engoliu um pedaço de pão e se engasgou. E tentava ser sabido: Tudo tem alma. Até os bichos têm alma.

No campo, ao lado da moradia, Max e Glady se matavam. As vestes já pareciam trapos. Ao redor da árvore, formigas mortas, folhas secas quebradas, chão chafurdado. Lá longe, o homem suado com a enxada ao ombro caminhava para lá e para cá. O espantalho parecia chorar debaixo daquele sol desgraçado.

Na copa, a conversa se estendia feito pano sobre a mesa. Por descuido, Clara derramou café no vestido e ainda viu a xícara de vidro resvalar e se espatifar no chão. Lázaro se zangou. Vou contar tudo a sua mãe, dona Clara. Irritada, a menina fez ameaça. E ela ficará sabendo que você deixou o seu príncipe encantado, muito másculo, se introduzir aqui. E quase nos seduzir.

No terreiro, os dois valentes não se entendiam. Você vai ver quem é o melhor, murmurava Max, ofegante, atado a Glady. Quebravam-se, feito feras. Mordiam-se, feriam-se, mutilavam-se. Um braço resvalou para um lado, uma perna voou para longe, a cabeça de um rolou no chão. Depois a cabeça do outro. E ainda falavam, se amaldiçoavam, se insultavam, se prometiam vingança, morte. Não volto para aquela pocilga. Nem morto. Vou mandar tua alma para o inferno. E, aos poucos, se foram calando, exaustos, retorcidos, mutilados, espedaçados.

De volta ao quarto, Clarinha e Pedrinho deram pela ausência dos dois pequenos seres. Onde estariam? Debaixo do leito? Abaixaram-se, sujaram-se. Nada encontraram. Dentro do armário? Também não. Algum buraco no chão, nas paredes? Estariam no teto? Olharam para o alto. Ninguém colado lá. Fugiram pela janela? Por quê? Nervosos, os dois correram para a sala, arquejantes, raivosos e com muito medo. Quiseram gritar por Lázara. Não, ela só os atrapalharia.

Ao chegarem ao local da refrega, encontraram os restos de Max e Glady espalhados pelo chão. Apenas pedaços deles aqui e ali. Clarinha chorava, desesperada. Pedrinho pulava, sem compreender aquilo. Para onde foram as almas dos bonecos?

 

 

 

Fortaleza, 4 de outubro de 2010.

 
 
março, 2014